sábado, 10 de novembro de 2012

Os dois fechamentos do 'Jornal da Tarde'


Eugênio Bucci
Para quem ainda não admite que o sentido das palavras muda conforme a classe social do cidadão que a pronuncia, aí vai mais uma: o verbo fechar, ou, se você preferir, o substantivo fechamento.
Se um jornalista diz que vai fechar o jornal, nada de novo sob o Sol. Após o fechamento (feito pelo jornalista), o diário vai para as rotativas e, depois de impresso, dobrado, refilado e encadernado, cairá, exemplar por exemplar, naqueles saquinhos plásticos alongados, dentro dos quais voarão por cima dos muros das casas dos assinantes, com notícias supostamente frescas. Quando o jornalista fecha, estamos em vida normal. E boa. Antigamente o fechamento era até comemorado, noite após noite. No tempo em que se fumava em cima da máquina de escrever, o pessoal fechava a edição e depois esticava a conversa em torno de um chope.
Hoje, como antes, fechamentos fazem subir o estresse e têm aquele tom ameaçador da "vitória do caos sobre a vontade augusta de ordenar a criatura", mas, invariavelmente, terminam mais ou menos bem. Não se tem registro de um fechamento que não tenha, por assim dizer, fechado. O que faz a diferença, o que distingue um bom editor, é saber fechar bem. Saber fechar está para o profissional de imprensa assim como saber "finalizar" - no jargão do futebolismo pós-moderno - está para o artilheiro. Embora a qualidade editorial resida não no fim, mas no início do processo, com pautas bem concebidas e bem planejadas, os jornalistas vangloriam-se de ser grandes fechadores, mesmo quando não o são. O verbo fechar, enfim, é constitutivo da profissão, como um verbo positivo.
Agora, se a gente se afasta da redação e se aproxima dos escritórios da chamada gestão empresarial, a pior coisa que pode existir é um patrão que gosta de fechar. Quando o dono anuncia que vai fechar um jornal, até as rotativas empalidecem. O sentido do verbo se inverte, mortalmente. Jornalista, quando fecha, faz o jornal viver, mas o empresário, ao fechar, mata.
Infelizmente, é desse fechamento (fechamento no sentido empresarial) que se tem falado cada vez mais. Nos países que eram chamados de "ricos" até há dois ou três anos, alastra-se uma crise drástica: veículos impressos caem como frutos cujo tempo já foi, num morticínio sem recurso. Nos Estados Unidos, a partir da quebradeira de 2008, a devastação afetou principalmente os diários locais (que viviam dos classificados do mercado imobiliário, nada menos que o cerne do desastre financeiro daquele ano), numa derrocada que foi imediata e minuciosamente descrita no relatório The Reconstruction of American Journalism (um nome otimista para um cenário tétrico), escrito pelos professores Michael Schudson e Leonard Downie Jr. e editado pela Escola de Jornalismo de Columbia em 2009 (disponível na internet). Desde então o quadro só piorou. Recentemente a revista Newsweek avisou que depois de dezembro de 2012 suas edições impressas serão extintas. Quanto à Time, não anda passando muito bem, mais fina que um folheto de missa dominical.
No Brasil, onde os números parecem saudáveis e a circulação dos diários cresce, os sinais do estrangulamento vão pipocando. Ontem pudemos sentir mais um desses, com o fechamento do Jornal da Tarde. A última edição do JT circulou exatamente ontem, dia 31 de outubro de 2012. "No mundo todo, a competição das novas mídias digitais têm afetado os seus jornais", explicou o texto Missão cumprida, publicado na página 6A da edição de ontem. "Nesse contexto, o JT teve sua circulação reduzida, assim como seu número de anúncios. O Grupo Estado tentou diversas medidas para revitalizar o JT, mas decidiu focar sua estratégia para o futuro no seu principal título, O Estado de S. Paulo."
Aqui, a palavra fechamento vira sinônimo de falecimento. O JT está morto. Morreu aos 46 anos de idade. Os jornalistas de São Paulo estão de luto, como de luto estão os leitores, ainda que poucos. Um jornal que se fecha é uma voz que se cala, ou, mais ainda, como uma língua que desaparece, seja porque os falantes minguaram, seja por força das guerras, que dizimam a memória e a identidade dos povos conquistados. Bons jornais são uma cultura à parte, têm um léxico próprio, um "idioma" inconfundível.
Bem sabemos que jornais e revistas abrem e fecham (no sentido empresarial) o tempo todo; nascimentos e mortes são normais, corriqueiros, tanto para os seres humanos como para os órgãos de imprensa, embora nestes a mortalidade infantil seja bem mais alta (dos novos veículos são lançados nas bancas todos os meses, a maioria não sobrevive aos dois ou três primeiros anos). Mas o falecimento do JT não cabe na categoria das trivialidades. Trata-se de um passamento de outra ordem. Nas suas páginas se deu uma renovação jornalística que irrigou todo o ambiente da imprensa, em texto, no design e no uso da fotografia (no JT, uma única foto, imensa, sem que fossem necessárias palavras, era capaz de sintetizar sozinha a notícia e seu sentido). A sua redação ficará como um ponto de luz na história da imprensa paulistana, apesar das sombras que o levaram a desaparecer melancolicamente. Estamos realmente de luto.
No fim da tarde de terça-feira, por volta das 18 horas, um longo aplauso (longo mesmo, longo de três minutos) ecoou no sexto andar do prédio do Estadão, na Marginal do Tietê. Eram os jornalistas de todas as redações do grupo aplaudindo o último fechamento (no sentido jornalístico) do jornal que seria fechado (no sentido empresarial) no dia seguinte. Eram palmas de um funeral. Nos próximos dias os cronistas se ocuparão de lembrar os talentos que por ali criaram peças memoráveis e os episódios folclóricos do JT. Agora, fiquemos apenas com isto aqui, que não é nem um obituário; talvez seja apenas um lamento metalinguístico, um réquiem sem nomes próprios. O nosso mundo está menor e eu penso nisso enquanto fecho mais este artigo.
* JORNALISTA,  É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM

Cooperativismo e bem-estar



ROBERTO RODRIGUES
Já há algum tempo a academia discute a eficiência do PIB como indicador adequado do desenvolvimento, bem como o uso das médias. A renda per capita brasileira é R$ 668. Mas o brasiliense tem uma renda de R$ 1.404. O piauiense, de R$ 367. De que vale para este último a média do país se ele recebe 55% dela?
É o mesmo que dizer que a precipitação pluviométrica do norte do país é boa. No Amazonas chove por volta de 2500 mm ao ano. No Ceará, cerca de 800 mm. A média é excelente, mas o Ceará continua seco.
Estudiosos se debruçam sobre essas questões em busca de um índice equilibrado que associe o progresso ao bem-estar da população.
Renda alta, claro, ajuda: as pessoas se alimentam e se vestem bem, tem acesso a boa educação e planos de saúde, moram bem, têm carro e os aparatos eletrônicos e de comunicação contemporâneos, tiram férias na praia, vão ao cinema e ao teatro, têm lazer. Tudo isso torna a vida mais leve e fácil, embora não garanta automaticamente bem-estar.
Esse só é real --sobretudo coletivamente-- quando existe coesão entre os cidadãos, confiança recíproca, tranquilidade nas relações humanas, justiça e equidade.
Esses itens compõem o que Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia (1998) chamou de capital social.
Antes dele, o grau de desenvolvimento de um país era dado pelo quadrilátero dos capitais: o natural (terra, água, clima), o físico (bens imóveis e duráveis como construções, veículos), o financeiro (dinheiro, ações) e o humano (educação, saúde).
Examinando países em que esses quatro capitais eram distribuídos com harmonia, Sen e seus companheiros verificaram que em algumas regiões havia mais progresso, pois lá havia maior capital social.
Talvez seja esse o modo para medir o bem-estar de um povo, o seu capital social. Não basta o PIB, não basta o IDH, não bastam os esforços para avaliar a felicidade de uma sociedade. Bem-estar é a soma de desenvolvimento econômico com o social e todas as variáveis que interferem com ambos e entre ambos.
Bom, e as cooperativas com isso?
Desde a fundação da primeira cooperativa, em Rochdale (Inglaterra), em 1844, como resposta à exclusão social da revolução industrial, o cooperativismo (enquanto doutrina) foi chamado de terceira via para o desenvolvimento socioeconômico, entre o capitalismo e o socialismo.
Isso durou até que caiu o muro de Berlim, em 1989. As profundas mudanças no socialismo e no capitalismo eliminaram a ideia de terceira via, e por um bom tempo o cooperativismo ficou perplexo procurando sua nova identidade.
Por isso, em 1995, a Aliança Cooperativa Internacional (que representa mais de um bilhão de cooperados no mundo) realizou uma conferência para revisar seus princípios.
Criou um novo princípio, o seu sétimo: a preocupação com a comunidade. Desde então, as cooperativas, empresas baseadas em valores, transcendem a prestação de serviços apenas a seus associados para servir também às pessoas da localidade onde se encontra. O conceito é claro: não existe uma ilha de bem estar cercada de iniquidade.
Isso mudou a representação gráfica de cooperativismo. Até a queda do muro, era um rio fluindo entre duas margens, o socialismo e o capitalismo. Depois, virou uma ponte unindo outras margens: o mercado, onde as cooperativas devem estar inseridas com eficiência de gestão, competitivas e focadas, e o bem-estar da coletividade. E isso só acontece por causa do capital social, matéria prima essencial para o sucesso de uma cooperativa.
Em outras palavras: cooperativa é a síntese do capital social, base do bem-estar coletivo.
ROBERTO RODRIGUES, 70, é coordenador do Centro de Agronegócio da FGV e embaixador da FAO para o Ano Internacional do Cooperativismo. Foi ministro da Agricultura (governo Lula)
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domingo, 4 de novembro de 2012

Transparência Tributária


O Estado de S.Paulo Opinião 4 nov 2012
Cada vez que entra em um cinema, o brasileiro paga 30% de imposto ao governo - e, com o perdão do trocadilho, fica "no escuro" sobre essa incidência. No Brasil, o consumidor não sabe que tributos paga quando vai às compras ou adquire um serviço, pela simples razão de que eles não são discriminados nem na etiqueta de preço nem na nota fiscal. Para ajudar o consumidor a saber qual é a real dimensão da carga tributária do País, tramita no Congresso desde 2007 o Projeto de Lei 1.472, fruto de iniciativa popular, que torna obrigatória a discriminação do peso dos impostos sobre o valor da compra. Apesar do declarado apoio de diversos parlamentares, o projeto, já aprovado no Senado, está parado na Câmara, situação que fere direitos do consumidor previstos na Constituição - no parágrafo 5.º do artigo 150 está escrito que "a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços".
O projeto, ao qual foram apensados outros textos semelhantes, resulta de um movimento das associações comerciais de São Paulo, capitaneado pela campanha "Hora de Agir", cujo objetivo é engajar o consumidor comum na missão de pressionar o governo a reduzir a carga tributária, que supera 35% e é uma das maiores do mundo. Para isso, os idealizadores da iniciativa entendem que a transparência é essencial. A expectativa é de que, uma vez ciente do quanto paga de impostos no ato da compra, o consumidor terá ciência do peso dos tributos na formação dos preços, mesmo das compras mais simples - mais de 50% do preço de uma pilha ou da embreagem do carro, por exemplo, é formado por impostos.
Nos Estados Unidos e na União Europeia, o imposto que incide sobre os produtos e serviços é discriminado na nota de venda e nas etiquetas de preço. A diferença é que, nesses países, não há a profusão de tributos que aqui são cobrados. Na maior parte dos países incide somente um "imposto sobre o valor agregado". Parece prosaico, mas os impostos no Brasil são tantos que se discute até a viabilidade técnica de discriminá-los na nota fiscal, cuja área física é, em muitos casos, pequena demais para isso. A intenção, portanto, é mostrar na nota apenas um valor aproximado dos vários impostos.
São cobrados três tipos de tributo sobre o consumo: o federal (Imposto sobre Produtos Industrializados), o estadual (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e o municipal (Imposto Sobre Serviços). Mas há tributos indiretos, como a Cofins, cobrada pela União, cuja alíquota nominal é de 7,6% sobre o faturamento das empresas. Mas o maior imposto indireto - e o maior entrave para transformar essa miríade de taxas num único tributo sobre o valor agregado - é o ICMS, cujas alíquotas variam de 17% a 30% e que está sujeito a decisões estratégicas de cada Estado para atrair investimentos. Além disso, o ICMS é também o tributo mais complexo na formação dos preços. No caso do consumo de energia elétrica, por exemplo, a alíquota nominal é de 25%, mas os Estados aplicam uma alíquota real de 33,3%. É improvável que os Estados aceitem abrir mão de seu poder de tributação e de sua autonomia como entes federativos em nome da uniformização da cobrança.
Não há, é claro, nenhum problema em arrecadar impostos - pelo contrário, trata-se de dever do Estado, razão pela qual é louvável que a Receita Federal e as Secretarias Estaduais da Fazenda se esmerem em flagrar sonegadores e sofisticar a cobrança. O problema é quando a carga é sufocante, o dinheiro público é mal administrado - e tal situação só fica explícita quando há transparência tributária. "O Estado brasileiro não pode mais escamotear da população a quantia que lhe tributa cotidianamente", diz a justificativa do último requerimento para incluir o tema na pauta de votação da Câmara. Ao tomar conhecimento do quanto paga de impostos, o consumidor terá consciência de que também é contribuinte. Nessa condição, ele poderá avaliar melhor se os serviços públicos oferecidos pelo Estado têm qualidade compatível com o imenso volume de recursos arrecadados pelo Fisco.