sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Balaio 200

13/02/2009 - 09:25

Imprensa: os dois lados do balcão

Qual a diferença entre trabalhar como repórter numa redação e exercer a função de assessor de imprensa?

 

Já fiz dezenas de palestras nos últimos anos para falar da minha experiência profissional nestes diferentes campos do jornalismo _ ou seja, sobre “os dois lados do balcão”, como se costuma dizer no jargão das redações.

 

A convite do meu colega Alcides Ferreira, diretor de comunicação da BM&FBovespa, estive lá na terça-feira para falar aos dirigentes desta instituição num pequeno seminário do qual participaram também os jornalistas Milton Gamez, da IstoÉ Dinheiro, Cristiane Perini Luchesi, do Valor Econômico, e Marcelo Mendonça, da TAM.

 

Tivemos todos uma bela aula sobre as origens e os desdobramentos da chamada crise econômica mundial dada pela Cristiane Luchesi, jornalista da maior competência, que fala de assuntos sérios sem nunca perder o bom humor.

 

Em apenas 15 minutos, aprendi mais com a palestra dela sobre o tema do que em todas as matérias e análises que já havia lido nos últimos meses em toda a nossa imprensa (tenho o péssimo hábito de não ler o Valor).

 

Descobri que para entender o que está acontecendo no Brasil e no mundo neste momento é preciso ler este jornal, principalmente as matérias da Cristiane.

 

Abaixo, autorizado pelo Alcides Ferreira, a quem agradeço, reproduzo a minha palestra, baseada em quatro pontos que ele me sugeriu, por entender que este é um assunto que interessa a todos os leitores e não apenas às fontes e aos profissionais de imprensa.

 

OS DOIS LADOS DO BALCÃO

 

1.   De repórter a assessor, o que demandava, que demandas atendeu.

 

Não tinha nenhuma experiência anterior como assessor de imprensa.

 

Quando exerci este papel, pela primeira vez, na campanha presidencial de 1989, depois de trabalhar por mais de duas décadas como repórter, tive que começar do zero.

 

E, como não sabia fazer de outro jeito, procurei fazer na assessoria exatamente o que fazia nas redações: garimpar informações e divulgá-las da forma mais correta possível.

 

 

A única diferença é que estas informações, em lugar de serem publicadas num jornal ou revista, eram fornecidas aos meus colegas jornalistas, de viva voz ou por escrito.

 

Uma das minhas primeiras tarefas foi acompanhar, por mais de um mês, as viagens internacionais do então candidato à Europa e América Latina, no início de 1989.

 

Nos países onde não havia correspondentes _ e, portanto, não havia como organizar coletivas _, eu preparava um texto sobre o dia do candidato, exatamente como se estivesse escrevendo para o jornal e o enviava para um colega no comitê, que o retransmitia por telex para as redações.

 

Alguns jornais regionais chegaram a assinar estas matérias/releases e reclamavam quando eu atrasava o dead-line…

 

Faria o mesmo ao longo da campanha em algumas regiões mais remotas do Brasil, pois, no início, poucos veículos mandavam enviados especiais para acompanhar o candidato do PT.

 

Como o próprio Lula é seu melhor porta-voz e excelente comunicador, embora não tenha diploma, meu trabalho no final da campanha consistia, basicamente, em marcar entrevistas e convencê-lo a atender à minha agenda de imprensa.

 

Assim seria também nas campanhas de 1994 e 2002, e nos dois anos em que trabalhei como Secretário de Imprensa da Presidência da República, em 2003 e 2004.

 

Para mim, tudo é jornalismo, tudo tem que ser bem feito, tem que ser honesto _ e não importa se estou trabalhando numa redação ou numa assessoria de imprensa.

 

A matéria prima é a mesma: a informação de qualidade, quer dizer, bem checada e confiável para divulgação.

 

Caso contrário, meu trabalho não serviria nem para o governo, nem para a imprensa.

 

Tanto isso é verdade, que, a certa altura do campeonato, o então candidato e depois presidente chegou a reclamar comigo, brincando:

 

“Você parece mais assessor da imprensa do que meu assessor de imprensa”.

 

Foi o maior elogio que recebi na minha breve carreira de assessor…

 

2.   Como é a relação com a imprensa: procedimentos, cuidados, focos.

 

No governo, procurava atender às demandas dos repórteres que faziam a cobertura da Presidência _ e são dezenas _ , indo atrás de informações nas diferentes áreas do governo e repassando-as à imprensa.

 

Desde o primeiro dia, tomei a decisão de não falar em “off”, nem dar informações exclusivas a ninguém.

 

Atendia a todos os jornalistas de qualquer veículo da mesma forma. Corria atrás de respostas para as perguntas que me faziam ou colocava-os em contato com quem no governo pudesse fornecer estas informações.

 

 

Na função de Secretário de Imprensa e Divulgação, procurei agir exatamente como esperava que os assessores agissem comigo quando era repórter: nunca tirá-los do caminho certo, mesmo quando a pauta era inconveniente ao governo, e ajudá-los na apuração das suas matérias.

 

Posso não ter sido muito eficiente neste meu papel de assessor-repórter, não fornecendo todas as informações que eles queriam, mas posso garantir a vocês que nunca passei uma informação errada a nenhum deles.

 

O problema é que muitos repórteres não iam atrás de informações em “on”, mas apenas de futricas em “off”, e tenho verdadeira ojeriza a este tipo de jornalismo, tanto como assessor como enquanto repórter.

 

Isto me causou problemas com alguns colunistas e repórteres especiais, antes habituados a falar diretamente com os presidentes, conversando por telefone ou sendo convidados a tomar um cafezinho no final da tarde no gabinete, onde garimpavam suas informações exclusivas.

 

O presidente Lula não fazia isso e, pelo menos nos primeiros tempos de governo, dificultou muito meu trabalho de agendar compromissos com a imprensa, especialmente entrevistas exclusivas.

 

Quando as coisas iam bem, ele achava que não precisava falar muito com a imprensa. E, quando iam mal, simplesmente não queria falar.

 

Como chegava a fazer dois ou três discursos por dia, achava que não precisava disso.

 

Neste ponto, o Franklin Martins teve mais sorte ou mais competência do que eu. Desde o início do segundo mandato, o presidente desandou a falar com a imprensa e já concedeu algumas centenas de entrevistas a Deus, ao diabo e a todo mundo.

 

E tenho certeza de que isso foi bom para o governo, bom para a imprensa e, portanto, bom para o país. Parabéns para os dois.

 

3.   A crise: a relação com a imprensa

 

No período em que trabalhei no governo, até não posso reclamar de grandes crises, diante do que viria depois, a partir de 2005.

 

Mas me lembro que sempre procurava me antecipar a elas, evitando, se possível, que acontecessem (conto alguns episódios no meu livro “Do Golpe ao Planalto _ Uma vida de repórter”, da Companhia das Letras).

 

Meu trabalho não se limitava a passar informações do governo para a imprensa, mas também conversar com os jornalistas para informar o governo sobre possíveis problemas que poderiam acontecer.

 

Naquela época, o grande Chico Buarque deu uma idéia muito boa, que, infelizmente, não foi levada adiante: a criação do Ministério do Vai dar Merda.

 

Tem certas coisas tão óbvias, como a gente vê muito nas vídeo-cassetadas do Faustão, que alguém precisa alertar os governantes sobre os perigos que correm de graça ao tomar certas decisões precipitadas.

 

Foi o caso, por exemplo, do episódio Larry Rother, que causou um enorme desgaste ao governo e, simplesmente, não precisaria ter acontecido.

 

Hoje já existem até rentáveis empresas especializadas em gerenciamento de crises, mas ainda acho que o principal papel de um assessor de imprensa é trabalhar até o limite do bom senso para evitar que estas crises aconteçam.

 

Por isso, defendo que os assessores de imprensa, em governos ou empresas, participem sempre do processo de decisão e não sejam chamados apenas para apagar incêndios depois que o estrago já foi feito.

 

 

4.   Regras de ouro para uma boa divulgação.

 

Não sei se o meu tempo já está estourando, mas este último item do roteiro me permite falar de uma regra de ouro que aprendi para uma boa divulgação.

 

Vale não só para o governo, mas para qualquer empresa ou instituição.

Não devemos nunca confundir divulgação jornalística com propaganda, um erro muito comum em todos os meios e latitudes.

 

Certa vez, até brinquei com meus colegas de governo, dizendo que a diferença entre jornalismo e propaganda é bem simples.

 

Jornalismo é tudo aquilo que a imprensa divulga e a gente acha ruim.

 

Propaganda é tudo aquilo que a imprensa divulga e a gente gosta.

 

Jornalismo é, por natureza, uma atividade crítica, investigativa, que procura denunciar o que há de errado para que seja consertado.

 

É fato jornalístico tudo aquilo que foge à normalidade, seja em qual campo for, como acontece nas tragédias naturais ou nas grandes crises econômicas.

 

Sei que isto varia de um veículo para outro, e hoje já não se respeita tanto aquela velha separação entre Igreja e Estado _ ou seja, entre a redação e o departamento comercial. As coisas mudaram muito neste campo.

 

Mas, se os dois lados do balcão estiverem agindo de boa-fé, é perda de tempo vender propaganda para jornalista e jornalismo para publicitário.

 

O que quero dizer com isso? Toda informação passada a um jornalista não pode ser de interesse apenas do governo ou da empresa.

 

Esta informação tem que ser, necessariamente, de interesse de toda a sociedade. Precisa apresentar um fato de interesse jornalístico.

 

Se o assessor não tiver esta informação, que busque alguém da instituição que lhe paga o salário para fornecê-la ao jornalista _ ou, então, simplesmente, diga que não está autorizado a falar sobre este assunto.

 

Antes que me perguntem se no governo poderia fornecer todas as informações de que dispunha, inclusive as que eram contra os interesses do governo, já vou logo respondendo que não.

 

Também nunca escrevi nada contra os interesses do Estadão, do JB, da revista Istoé, da Folha, da Globo, da Bandeirantes, do SBT, da revista Época, nem de nenhum outro veículo onde já tenha trabalhado.

 

Por isso é que continuo amigo de todo mundo dos dois lados do balcão e sei que tenho as portas abertas para voltar quando quiser.

 

 

Em tempo:

só depois de publicar o texto, me dei conta de que este é o post de número 200 do Balaio.

 

Na quarta-feira, dia 11, completamos cinco meses no ar, o que dá a média de 40 matérias por mês, mais de uma por dia, um recorde na minha já longeva carreira, que em outubro completa 45 anos.

A todos os leitores e colegas do iG, meu muito obrigado. 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Um outro mundo é possível ou jogo de cena

2/02/2009 - 12h02
Fórum Social Mundial: Tudo está como era antes

Por Lúcio Flávio Pinto*

Belém, fevereiro/2009 – Belém é uma das cidades com menor área verde do Brasil, apesar de ser a porta de entrada para a Amazônia, que possui um terço das florestas tropicais do planeta. As áreas verdes mais extensas da cidade ficam nos campi das duas universidades federais que, por uma semana, hospedaram a nona edição do Fórum Social Mundial (FSM), concluído no dia 1º deste mês. Os prados dos campi estão cercados pelos dois bairros mais povoados e perigosos da cidade, Gaumá e Terra Firme, onde vivem 10% dos 1,4 milhão de habitantes de Belém e 14% da criminalidade é registrada.

Guamá se expandiu com a chegada de imigrantes do interior, expulsos de suas terras nativas pela súbita invasão de novos colonos que introduziram a exploração pecuária e florestal, principal causadora da maior destruição de florestas da história da humanidade: uma superfície equivalente a três vezes a extensão do Estado de São Paulo em apenas quatro décadas. Terra Firme inchou com a instalação de miseráveis pensões que abrigam os peões e trabalhadores braçais, contratados para desmatar os campos arrebatados dos indígenas.

Em Terra Firme foram feitas reuniões preparatórias do FSM e organizado um encontro para dar participação aos seus moradores. Mas esse propósito foi desvirtuado pela falta de pessoal de apoio e pela cara taxa de inscrição, em torno de R$ 10,00. No FSM não foi discutido nenhum dos problemas da enorme e caótica periferia de Belém, onde fica Paar, a maior favela horizontal do país, com 140 mil habitantes, e que, depois do Recife, é a capital estadual mais violenta do Brasil.

Embora o encontro temático internacional do FSM, realizado em Belém para dar destaque à quetão amazônica, não tenha vencido a barreira policial que o separava dos dois temidos bairros, em sentido contrário houve deslocamento de uma multidão. Não para intervir nas centenas de encontros programados ou para interagir com visitantes, mas para vender-lhes alguma coisa. Impulso explicável, já que Belém figura entre as cidades brasileiras onde são maiores o desemprego e a economia informal.

Já desde a fase preparatória do Fórum, os vizinhos atravessavam como podiam os muros que isolam os campi universitários com mesas, pratos, cobertas e comida para oferecer ao público. Depois, com o aumento da vigilância, os interessados começaram a roubar, principalmente dos dois mil voluntários que prestaram seus serviços ao FSM, as credenciais e as camisetas. As camisetas eram outro elemento de controle da entrada no Fórum, e em alguns casos foram vendidas por voluntários que não podiam pagar a passagem de ônibus.

Dessa forma a periferia da metrópole amazônica obteve um beneficio com o acontecimento do ano, que teria reunido, segundo seus organizadores, 90 mil pessoas, um número questionado pelas milhares de camisetas que sobraram. Em razão das necessidades alimentícias de milhares de assistentes, houve uma ligação entre o empenho de solidariedade com o mundo marginalizado pela globalização e a confiança em outro mundo melhor e aqueles que deveriam ser a materialização dessas utopias.

O governo federal destinou 300 policiais e US$ 22 milhões (de um orçamento total para o FSM de US$ 70 milhões) à segurança, enquanto o governo do Estado, do PT, concentrou sete mil policiais em Belém e montou um cordão sanitário em torno dos dois bairros limítrofes para preservar o público presente no FSM da rotina dos 200 atos criminosos diários que ocorrem na cidade. Milhares de moradores foram revistados todos os dias pelas patrulhas, os bares tiveram de fechar às 22 horas e reinou um clima de confinamento.

Graças a essas precauções, a violência não chegou ao ambiente do FSM durante suas sessões. Reclusos dessa maneira, os participantes do monumental encontro puderam intercambiar sem contratempos suas idéias e propostas sobre a construção de um mundo melhor e de uma Amazônia autosustentável. A realidade incômoda precedente ao encontro pode voltar a instalar-se agora que profetas, gurus, discípulos e demais assistentes de boa vontade voltaram para suas casas, levando consigo os mesmos pensamentos e imagens que trouxeram a Belém. 

(*) Lúcio Flávio Pinto é diretor do Jornal Pessoal, que denuncia a corrupção, a impunidade e as consequências econômicas e ecológicas da exploração da Amazônia; e enfrenta dezenas de processos judiciais e numerosas agressões físicas e ameaças de morte.


(Envolverde/IPS)


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

06-02-2009


Dr Gurgel. Foi-se o homem, começa o mito


A noção de nacionalismo e o sonho do carro nacional simples e prático baixaram de nível desde o início da semana. O eng João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, o dr Gurgel, passou. Libertou-se da longa doença que o desligou da realidade, da criatividade, do raciocínio claro.

Visionário, corajoso, tinha o estofo da criatividade e as laúreas de engenheiro mecânico e de pioneira pós graduação em engenharia automobilística. Seria solução mas era problema ao início da indústria do automóvel no Brasil. Havia pouco a engenheirar, pouca autonomia para criar. Deixou as multi nacionais do ramo, apostou na desconhecida fibra de vidro, material que descobriu ao estudar no General Motors Institute, nos EUA, acompanhando o desenvolvimento e construção do Corvette, construído neste material.

Independente, e com fé na fibra de vidro, foi fazer carrinhos motorizados para crianças, depois karts e, finalmente, como revendedor Volkswagen, os jipes Ipanema, montados sobre plataformas VW. Ao perceber que fazendeiros os utilizavam para aproveitar capacidade de vencer dificuldades graças à sua altura, deixou a concessão VW – coisa inimaginável àquele tempo – e foi criar jipes.

Desenvolveu o chassi resistente, revestido em fibra de vidro, dito Plasteel, com inacreditável garantia de 100 mil km, numa época em tal cobertura era de 6 meses. A expansão dos negócios levou-o a implantar fábrica. Quase foi para Brasília, mas escolheu Rio Claro, SP.

Fez muitos veículos e muito movimento. Foi a única montadora brasileira a expor em salões internacionais: Londres, Genebra, e em mercados pontuais como Bolívia e Colômbia. Dos 40 mil veículos produzidos, cerca de 25% foi exportados. 

Pioneiramente mandou-os a lugares então desconhecidos aos brasileiros: Aruba, Ilhas Mauricio, Seychelles. Onde houvesse areia e maresia, os Gurgel mantinham-se incólumes. 

Manteve a pesquisa em dia, criou o carro elétrico – desincentivado pelos governos; o Transtubo, sistema de alta velocidade para transporte urbano; a bateria tetrapolar, nacional, com autonomia superior às então existentes. Desenvolveu transmissão por polias – aprimorado, o sistema é empregado no Audi A6 e era no Honda Fit.

A noção prática norteava ações e sua indústria. Nela, por exemplo, a encomenda de uma peça metálica para reposição, não provocava a busca de um desenho técnico, várias pessoas, inúmeras providências. Era simples: um ferreiro pegava a peça matriz pendurada na parede e duas porradas, três furos e quatro soldas depois a cópia estava pronta para ser enviada ao cliente. Simples, prático e rápido. Para vender os Gurgel, à clientela governamental, ele mesmo os conduzia, usualmente apavorando os convidados, a sair da estrada e saltar morros e inclinações.

Mandão, fazia. Era difícil convencê-lo de alguma coisa diferente do que pensara. Para trabalhar com ele havia necessidade de infinda paciência. Para gente comum não servia, e não se pode esperar comportamento normal de gente acima do normal.

Entretanto, o pioneirismo, a coragem e a noção nacionalista foram menores que as forças maiores. Atrevido, projetou e construiu o motor do BR 800. Combatia o programa do álcool com argumentos lógicos e cartesianos. Um deles, encerrou a audiência com executivo do Ministério de Minas e Energia: a área necessária ao plantio da cana, para produzir álcool e fazer um carro andar durante um ano, dá para produzir alimento para 50 pessoas. Foi o ano em que o Brasil importou grãos e, até, milho para ração animal. 

Tinha uma chácara perto da fábrica. A cerca era em arame liso. Como esticador, o arame soldado num parafuso. Uma porca dava tensão. Simples e distante das soluções usuais. Levava visitantes para tomar café, comer bolo, e olhar o panorama: uma barreira de cana verde oprimindo os limites da área. Um exemplo de como a lavoura de cana era mal administrada pelos governos, tomando áreas de produção de alimentos, em vez de fazer conquista sobre espaços não agricultados.

Com ele assisti à cena marcante: contratara o meu escritório para tentar reduzir o IPI incidente sobre seu carrinho, e viabilizá-lo. Eram 35%. Ele calculava que o BR 800 somente seria viável se pagasse 5%.  Que distância. 

Fizemos um arrazoado bem fundamentado, e avisei: “ Neste país que só recolhe impostos, abrir esta exceção, só com arma de grosso calibre. “ Prático, resolveu: “ Marca uma audiência com o Sarney. “ José Sarney era o político e literato na Presidência da República. Audiência concedida, o Dr Gurgel veio a Brasília e informou: “ Então, 15h45 na porta do Palácio “. E sumiu. 

Meu carro naqueles tempos pré celulares, era um Opala Diplomata  com telefone a rádio. Sem notícias, estacionei na área privativa do Planalto. Carro e ar ligados, esperei. À hora do encontro, chamou pelo telefone:

“ – Zé, é o João”.
“- Pois não Dr Gurgel, estamos em cima da hora “.

“ – Avisa para o Zé que não posso ir hoje. Marque para amanhã “.
“ – Dr Gurgel, o Zé é o Presidente da República. Não se desmarca encontro com Presidente da República, e nem ele terá agenda disponível, ao nosso gosto “.

“ – Você diz a ele que eu estou na Embaixada da União Soviética, numa conversa muito interessante sobre o motor Elko ( um motor capaz de queimar quase todo líquido combustível ).”

Subi ao terceiro andar com cara de lâmpada, de paisagem. Ao professor Antonio Alves, administrador da agenda do Presidente iniciei conversa sem graça, para a qual sorriu e perguntou: “ Nosso gênio não veio ? “

“ – Não, ligou pedindo desculpas, mas está nuns entendimentos de exportação para a União Soviética – projetei a conversa. “
“ – Quando ele pode vir ? Amanhã ?  “ ouvi, incrédulo.
 
Dia seguinte dediquei-me a não deixar o Dr. Gurgel só e com autonomia. À hora certa estávamos no gabinete presidencial.
Saudações, acomodações, fiz a introdução de praxe, criando o cenário para que o dr Gurgel explicasse e defendesse a proposta.

O presidente Sarney inverteu o cerimonial. Tratou-o com reverência palpável, sensível, como se recebesse o Einstein ou um prêmio Nobel. Ouviu interessado, com atenção, o tema tão distante da sua realidade e formação de intelectual das letras. Perguntou se aquilo realmente viabilizaria o sonho do carro brasileiro, e disse com calma: “ Pode deixar, vou resolver. “  

Nada de consultar, estudar, submeter a análises, formar um grupo de trabalho. Apenas resolver. E resolveu. 

A exclusividade durou pouco. Com o governo Collor a Fiat convenceu a extensão do benefício ao carro com motor 1.000. Era a única montadora a produzi-lo para exportação, e rapidamente colocou-o no mercado. Pagava um pouquinho mais de imposto, mas, como produto, o Uno era muito superior ao BR e ao sucessor Supermini. Logo vieram os 1.0 de outras marcas, afunilando o mercado para a Gurgel. 

Impossível concorrer com as grande multis no preço, tirou duas cartas da manga: o carro barato, o Delta, feito em placas de fibra e plástico, numa usina central para ser distribuído finalizado nos mercados terminais, criando inúmeras fabriquetas disseminadas pelo país. O Ceará garantiu apoios para ter a usina-mãe na cidade de Eusébio. 

A segunda carta era a construção das caixas de câmbio no Brasil. Independeria da indústria de auto-peças e o custo seria menor. Comprou a fábrica de transmissões do 2 CV Citroën, de produção recém finalizada, e levou-a para o Ceará. Pregava a industrialização do Nordeste para dar emprego aos locais.

Aí veio a sucessão de nãos. O Ceará desistiu, empréstimos não foram liberados. Greve na Receita Federal bloqueou a internação das transmissões então importadas da Argentina. 60 dias sem produzir e vender – mas suportando os custos da fábrica, e de empregados.

A desenfreada noção de nacionalidade levou-o a publicar carta aberta ao presidente Fernando Collor instando-o a “implodir o Proálcool”. No governo Itamar pediu empréstimo ao BNDES, garantindo com seu patrimônio pessoal. Quase tudo certo, o financiamento não saiu. 

Aí reuniram-se os fatores negativos e seus agentes: concordata, desentendimento e despreparo do Sindicato dos Metalúrgicos de Rio Claro, insensibilidade da Justiça. Enfim, um funil. Gurgel ainda tentou vender a fábrica e a idéia ao empresário Eike Batista, sem se fazer entender. Foi alcançado pelo maldito alemão.

Foi-se o dr Gurgel. Será sempre a referência da coragem do desafiar e do fazer, de dar cara nacional às soluções, de ter o raciocínio claro e prático. Neste país besta e sem projeto, quinto do mundo em produção, não há, sequer, acredite, um carro nacional. Todos são boas adequações de produtos estrangeiros, ideais para outros mercados, com outras estradas e condições.

Ficaram – nem se sabe se ainda estão por aí – os detratores anti nacionalistas, os criadores de dificuldades, os assessores engravatados e sem idéias, os políticos sem visão de estado ou futuro. Agora mito, o Dr. Gurgel gravita sobre estes indigentes mentais, anônimos, reles.

Como disse o Guinle, atuando membro do sítio www.simca.com.br, quando se fala em Tiradentes, alguém sabe o nome do seu carrasco ?