O Estado de S.Paulo - 27/10
"Por que Deus é horrendo em seu amor?", indagou Drummond, petrificado ante a santa sem nariz que fazia milagres. É o que também eu, com minha prosa chinfrim, me pego outra vez perguntando, em face de duas perdas recentes.
Não, não acabo de descobrir que por aqui se nasce e se morre, como qualquer outro bicho; a esta altura dos acontecimentos, não tenho direito de me espantar com a gratuidade, com a ausência de sentido do perpétuo nascer e morrer a que alguém, a que alguma coisa nos condenou. Mas não me canso de me espantar com a insondável desrazão com que opera a máquina de engendrar e triturar criaturas. Não me canso também de me indagar por que injusto critério um retalho da superfície da Terra vira praça da Étoile, em Paris, espalhando raios e beleza a partir do Arco do Triunfo, enquanto a outro cabe ser algum infecto chão de favela.
Infantilidade de senhor maduro a deblaterar diante do inelutável? Pode ser. O fato é que aqui estou escalavrado pela supressão de dois amigos, levados de mim não com os bons modos que se poderia esperar de um deus misericordioso, não com a delicadeza que lhes era própria, não com a justiça pela qual lutaram sempre, mas com os safanões do que Manuel Bandeira chamaria de "morte de mau gosto", lenta e perversamente roídos por pavorosos sofrimentos. Diria meu tio Jorge, ateu de imenso coração: "Mais uma sacanagem do bom Deus..."
Não era isso o que merecia a Mariângela, em minha vida desde os nossos longínquos 20 anos, que desde o começo me habituei a ver devotada também à causa do bem estar dos animais. Aposentada na universidade, nem por isso sossegou. Em meio a empreitadas esparsas - como ajudar, com seu saber de linguista, na feitura do dicionário Houaiss -, pelo menos uma vez por semana a minha amiga, carregada de provisões, pegava em Copacabana um ônibus para a Ilha do Fundão, onde a troco de nada ia providenciar saúde e conforto para cães e gatos abandonados.
Miúda, magrinha (um "chaverinho", disse dela nosso amigo Arildo), a Mariângela topava as paradas mais bizarras que eu lhe propusesse. Certa manhã de inverno, visitou comigo o cemitério de São João Batista, aonde fui em busca do túmulo de Jayme Ovalle, cuja biografia estava escrevendo. No táxi de volta, percebi que ela, curvada sobre si mesma, trazia no colo algo que tentava ocultar de mim - e quando aceitou desfazer a trouxa em que se transformara seu casaco, de lá surgiu um gatinho recolhido entre sepulturas, um a mais para o populoso gatil em que ela convertera seu apartamento.
Nos últimos anos, brotou-lhe um câncer que, aparentemente vencido, retornaria à toda, para roubar-lhe em sucessivos golpes os cabelos e a capacidade de engolir, de falar e de andar, e enfim, quando já nada lhe restava além de uns poucos quilos, a vida. Alguma cruel força superior, se existe, a fez passar - o verso é de Libério Neves - pela "final humilhação do corpo, essencial talvez à filtração da alma". Mas que nódoas tão grandes teria a alma dessa criatura que justificassem tão medonha purgação?
Também não me parecia em débito com os Céus o amigo Antonio Maschio, ator e produtor cultural, sobretudo animador da vida ao seu alcance. Sabe disso, por exemplo, quem conheceu o Spazio Pirandello, bar, restaurante, antiquário e livraria, festivo fervedouro que ele e o jornalista Wladimir Soares fizeram borbulhar na noite paulistana dos primeiros anos 80, e onde, entre muito riso, suor e adrenalina, germinaram projetos ousados e generosos como a campanha das Diretas.
Quem diria que a usina de alegria chamada Antonio Maschio haveria de pagar as penas que pagou, e por tempo ainda mais prolongado que a Mariângela? Ei, Você aí, desde sempre sentado nessa nuvem, eu não consigo entender Sua lógica. Já me vali de três poetas, quatro agora com o Caetano, para que falem por mim o que não dou conta de dizer, e recorro a mais um, ao grande e tão escassamente conhecido Abgar Renault, sangrando na perda de um filho jovem: "Tombo, Senhor, submisso mas inconformado na desesperança / e não Te reconheço na cruel desnecessidade da Tua lança."
"Por que Deus é horrendo em seu amor?", indagou Drummond, petrificado ante a santa sem nariz que fazia milagres. É o que também eu, com minha prosa chinfrim, me pego outra vez perguntando, em face de duas perdas recentes.
Não, não acabo de descobrir que por aqui se nasce e se morre, como qualquer outro bicho; a esta altura dos acontecimentos, não tenho direito de me espantar com a gratuidade, com a ausência de sentido do perpétuo nascer e morrer a que alguém, a que alguma coisa nos condenou. Mas não me canso de me espantar com a insondável desrazão com que opera a máquina de engendrar e triturar criaturas. Não me canso também de me indagar por que injusto critério um retalho da superfície da Terra vira praça da Étoile, em Paris, espalhando raios e beleza a partir do Arco do Triunfo, enquanto a outro cabe ser algum infecto chão de favela.
Infantilidade de senhor maduro a deblaterar diante do inelutável? Pode ser. O fato é que aqui estou escalavrado pela supressão de dois amigos, levados de mim não com os bons modos que se poderia esperar de um deus misericordioso, não com a delicadeza que lhes era própria, não com a justiça pela qual lutaram sempre, mas com os safanões do que Manuel Bandeira chamaria de "morte de mau gosto", lenta e perversamente roídos por pavorosos sofrimentos. Diria meu tio Jorge, ateu de imenso coração: "Mais uma sacanagem do bom Deus..."
Não era isso o que merecia a Mariângela, em minha vida desde os nossos longínquos 20 anos, que desde o começo me habituei a ver devotada também à causa do bem estar dos animais. Aposentada na universidade, nem por isso sossegou. Em meio a empreitadas esparsas - como ajudar, com seu saber de linguista, na feitura do dicionário Houaiss -, pelo menos uma vez por semana a minha amiga, carregada de provisões, pegava em Copacabana um ônibus para a Ilha do Fundão, onde a troco de nada ia providenciar saúde e conforto para cães e gatos abandonados.
Miúda, magrinha (um "chaverinho", disse dela nosso amigo Arildo), a Mariângela topava as paradas mais bizarras que eu lhe propusesse. Certa manhã de inverno, visitou comigo o cemitério de São João Batista, aonde fui em busca do túmulo de Jayme Ovalle, cuja biografia estava escrevendo. No táxi de volta, percebi que ela, curvada sobre si mesma, trazia no colo algo que tentava ocultar de mim - e quando aceitou desfazer a trouxa em que se transformara seu casaco, de lá surgiu um gatinho recolhido entre sepulturas, um a mais para o populoso gatil em que ela convertera seu apartamento.
Nos últimos anos, brotou-lhe um câncer que, aparentemente vencido, retornaria à toda, para roubar-lhe em sucessivos golpes os cabelos e a capacidade de engolir, de falar e de andar, e enfim, quando já nada lhe restava além de uns poucos quilos, a vida. Alguma cruel força superior, se existe, a fez passar - o verso é de Libério Neves - pela "final humilhação do corpo, essencial talvez à filtração da alma". Mas que nódoas tão grandes teria a alma dessa criatura que justificassem tão medonha purgação?
Também não me parecia em débito com os Céus o amigo Antonio Maschio, ator e produtor cultural, sobretudo animador da vida ao seu alcance. Sabe disso, por exemplo, quem conheceu o Spazio Pirandello, bar, restaurante, antiquário e livraria, festivo fervedouro que ele e o jornalista Wladimir Soares fizeram borbulhar na noite paulistana dos primeiros anos 80, e onde, entre muito riso, suor e adrenalina, germinaram projetos ousados e generosos como a campanha das Diretas.
Quem diria que a usina de alegria chamada Antonio Maschio haveria de pagar as penas que pagou, e por tempo ainda mais prolongado que a Mariângela? Ei, Você aí, desde sempre sentado nessa nuvem, eu não consigo entender Sua lógica. Já me vali de três poetas, quatro agora com o Caetano, para que falem por mim o que não dou conta de dizer, e recorro a mais um, ao grande e tão escassamente conhecido Abgar Renault, sangrando na perda de um filho jovem: "Tombo, Senhor, submisso mas inconformado na desesperança / e não Te reconheço na cruel desnecessidade da Tua lança."
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