segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Minha vida, meu negócio - EUGENIO BUCCI


REVISTA ÉPOCA

A barulheira gerou um fio de esperança. A reação exaltada contra as declarações de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, para quem os livros biográficos só podem ser publicados mediante autorização dos biografados, foi finalmente ouvida na Câmara dos Deputados. Na semana passada, parlamentares prometeram acelerar a aprovação do projeto de lei que altera o Código Civil para impedir a censura às biografias. Quando tudo parecia sem saída, quando até Chico Buarque, Gil e Caetano, símbolos da causa democrática, cerraram fileiras contra a liberdade de expressão, eis que desponta uma centelha no fim do longo túnel. Depois da treva, uma luz (ao fim da tempestade). Às vezes, a esperança é a última que nasce.

Se os deputados cumprirão a palavra, bem, isso é outra história (outras biografias). Mas uma esperança nasceu. Falta agora nascer a clareza. É realmente incrível. Falou-se tanto, escreveu-se tanto, bateu-se tanto em tantos por tantas semanas, e o entendimento sobre o que está em jogo ainda é tão pouco. A gritaria toda, que ajudou a quebrar a inércia pétrea do Congresso Nacional (ao menos é o que esperamos), não nos trouxe compreensão sobre o verdadeiro impasse.

Não estamos às voltas com forças do mal, que pretendem restaurar a ditadura militar no Brasil. Sim, há quem queira isso.

Mas Caetano, para tomar um exemplo, não é censor nem reacionário. Ele é um democrata, como seus amigos. O problema é que ele defende outra lógica - e essa lógica entra em choque com a democracia. E é sobre isso que deveríamos pensar.

Desde que o inglês John Milton, ainda no século XVII, afirmou o direito fundamental do cidadão de publicar o que bem entender, sem ter de pedir licença ao poder, a livre circulação do pensamento se tornou um dos alicerces das sociedades livres. Primeiro, cada um expressa o que julgar necessário. Depois, apenas depois, responderá pelos excessos que cometer. Acontece que, de uns tempos para cá, o mundo começou a ficar esquisito. Há, hoje, legislações restritivas em toda parte, até no Reino Unido e na França. Não sabemos resolver a contradição entre os direitos fundamentais dos cidadãos, como o direito à informação e à liberdade de expressão, e outros direitos, como à privacidade, que a lei assegura também a todos - e vale dinheiro. A privacidade tem valor econômico. Aí é que está o ponto-chave – e o ponto chato, pois os artistas no Brasil adoram fingir que não pensam no vil metal.

Os ídolos do cancioneiro popular, esses poetas que escreveram as trilhas sonoras de nossa parca existência, não são inimigos da ordem democrática. São gente boa. Apenas estão defendendo o deles. Eles não lutam exatamente pelo resguardo, pelo recolhimento, pelo segredo íntimo. Não se mobilizam pela privacidade neutra, mas pelo direito de ganhar dinheiro quando suas intimidades se tornam públicas. Eis o ponto-chave - e chato.

Nada de errado com isso. Trata-se de um direito deles. Um direito, aliás, de qualquer um, seja pop star, cantor, jogador de futebol ou dona de casa. Se alguém quer transformar sua biografia em entretenimento de massa e faturar com isso, tem o direito de fazê-lo. Reality shows, programas de auditório e revistas de fofoca vivem da exploração das intimidades, assim como, recentemente, começaram também a viver disso as campanhas eleitorais e as igrejas que oferecem milagres pela televisão. Intimidades luxuriantes ou degradantes valem ouro e podem ser compradas pelo ouro.

Ora, se é assim, então, raciocina o advogado da celebridade, por que um reles jornalista pode querer ganhar o dele em cima dos lances encantadores, inspiradores, traumáticos e fascinantes de meu cliente? O ponto é realmente chato.

Para um astro do showbusiness, e principalmente para o advogado dele, os lances de sua vida são parte da obra. Ele vende mais ou menos CDs, atrai mais ou menos fãs para os seus shows, à medida que faça isso ou aquilo na vida privada. Se a cantora anuncia que se casará com outra mulher, agrega um novo "market share" a sua estratégia comercial. Aí, se revelarem que o matrimônio gay foi um jogo de aparência, o faturamento despenca. A receita bruta do cantor romântico depende da exposição estratégica de sua privacidade. A arte também tem seus modelos de negócio.

Estamos vendo de perto, enfim, a contradição entre mercado e democracia. Para faturar mais com suas biografias, algo legítimo, nossos grandes poetas pensaram que poderiam suprimir o direito à informação de todos os demais. Aí é que não deu pé. Quando mercado e democracia entram em choque, a segunda deve prevalecer.

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