quarta-feira, 31 de março de 2021

Hélio Schwartsman -Risco de golpe, FSP

 As coisas que não são um problema em geral nem entram em nosso radar. No Brasil, não nos preocupamos, por exemplo, com nevascas nem com terremotos —e ninguém precisa nos lembrar de que esses fenômenos não constituem ameaça.

"A contrario sensu", se comandantes militares e outras autoridades sentem necessidade de afirmar e reafirmar que não há risco de golpe, como acontece hoje, então devemos nos preocupar. Não significa, é claro, que tais eventos necessariamente ocorrerão, mas é um sinal claro de que a paisagem institucional se deteriorou. Quando não há mesmo risco de golpe, ninguém precisa nos dizer que não há risco de golpe.

Não creio, porém, que nosso prepóstero presidente tenha condições de desferir um ataque institucional com boas chances de sucesso. Ele, afinal, só deflagrou essa estranha reforma ministerial porque está fragilizado. Perdeu o apoio da fatia mais significativa do PIB, vem se indispondo com os principais governadores e prefeitos, vê sua popularidade encolher nas pesquisas e, constatamos agora, já não conta nem mesmo com o respaldo da cúpula militar.

Bolsonaro ainda tem o suporte do centrão —mas só enquanto for capaz de entregar cargos e verbas e não se tornar um nome tóxico demais— e, de forma talvez mais inquietante, de grupos armados de policiais, soldados e baixo oficialato. Se não fizer nenhuma nova bobagem maior, Bolsonaro deve conseguir arrastar-se pelos próximos meses sem ser defenestrado.

Em 2022, se a epidemia tiver refluído o bastante e a economia voltar a crescer de forma perceptível, ele será um candidato à reeleição competitivo, apesar do rastro de destruição humana, econômica, institucional e moral que seu governo terá deixado atrás de si.

Quanto aos brasileiros, teremos de nos haver com os historiadores do futuro, por nem termos tentado de verdade tirar esse homem de um posto que ele jamais ​deveria ter assumido.

Ex-ministro e generais rejeitam ‘aventura’ de golpe, Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo

 O ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Sérgio Etchegoyen afirmou na terça-feira, 30, que as Forças Armadas não serão “fator de instabilidade no País”. “Independentemente de quem estiver no comando, elas nunca vão deixar de ser instituição de Estado.” Disse conhecer os generais do Alto Comando do Exército. “Sei do que estou falando.” E concluiu que, se algum setor do governo estiver pensando em golpe, “a frustração será grande”.

Em entrevista à Rádio Gaúcha, Etchegoyen expôs um sentimento comum a outros generais ouvidos pelo Estadão. Nos últimos dois dias, a reportagem ouviu oito oficiais-generais do Exército e da Força Aérea e dois coronéis da ativa e da reserva sobre o momento atual. De forma unânime, todos rejeitaram qualquer “aventura”.  

Sérgio Etchegoyen
Sérgio Etchegoyen, ex-chefe do Estado-Maior da Força e ex-GSI Foto: Dida Sampaio/Estadão

“Pode ser que uma dessas dimensões (do governo) imagine uma coisa dessas, mas seria uma ingenuidade e uma falta de percepção e conhecimento imperdoáveis. Seria mais um general Assis Brasil com o dispositivo militar, garantindo ao Jango que não ia acontecer nada”, afirmou o ex-ministro do GSI, na véspera do 31 de março, dia em que o então presidente João Goulart foi deposto em 1964.

Assis Brasil era o chefe da Casa Militar de Jango. Ele manteria uma rede de apoios militares que defenderia o governo. Tal dispositivo não impediu a derrubada de Goulart, a quem os militares acusavam de tentar dar um golpe. Etchegoyen conhece essa história. Seu pai, o general Leo Etchegoyen, estava no Rio em 31 de março de 1964, ao lado do então coronel-aviador João Paulo Moreira Burnier. Ambos se uniram ao governador da Guanabara, Carlos Lacerda, um dos líderes civis da conspiração.

‘Aventura’

Para um tenente-brigadeiro, os militares pagaram um preço muito alto na “última aventura” (o golpe de 1964) e têm a “Argentina ao lado para saber o que é retaliação”. O brigadeiro afirmou que a geração formada nos anos 1980 é avessa a “aventuras”. Um general chamou a atenção para o fato de o Alto Comando, assim como os generais de divisão, terem a mesma visão contrária ao uso político da Força. Um dos que têm repetido que “não há a menor possibilidade de aventuras com a participação do atual Alto Comando” é Francisco de Brito, atualmente na reserva. Não só ele. O ex-ministro da secretaria de Governo Carlos Alberto Santos Cruz também repetiu na terça-feira, 30, que as Forças Armadas não entrarão em nenhuma “aventura”.

Para o ex-ministro Etchegoyen, “em todas as rupturas que tivemos, houve apoio popular”. “Não se faz uma aventura desse jeito. Nós teríamos um repúdio internacional. O Brasil viraria um pária definitivo.” Para ele, há muitas pessoas que, de tempos em tempos, pegam um “lençolzinho verde-oliva para sair à rua, assustando as crianças”. “Esse governo tem faces distintas. Tem uma face de infraestrutura, executiva e competente, uma face política desastrosa e uma desconhecida, a guerrilha digital.”

No fim, Etchegoyen disse não ver ameaças da parte do presidente Jair Bolsonaro. “Isso vem muito mais de atos de outras frentes. O presidente tem sido impedido de governar em muitas coisas que são competência exclusiva dele. E são coisas que não começaram hoje.”

terça-feira, 30 de março de 2021

Não é estado de sítio, mas sua sombra, Conrado Hübner Mendes, FSP

 Na Língua Bolsonara de Sinais (Libols), termos jurídicos sempre atendem a fins diversionistas. Idiotas da literalidade nos perdemos. Não fomos alfabetizados em Libols para decodificar as intenções exatas por trás das palavras e atos. Mas já se pode saber que estado de sítio, nessa língua, significa outra coisa.

Na política do “pânico e circo”, a sombra do estado de sítio tem papel parecido à do AI-5 e à da intervenção militar constitucional. São apitos para manter apoiadores do presidente excitados contra inimigos imaginários da pátria e as instituições sob fadiga.

Chamaram até Ives Gandra para revelar que, nos porões do art. 142 da Constituição, militares poderiam fechar o STF. O oráculo merece homenagem pelo serviço prestado à liberdade e à inteligência jurídica brasileira.

Jair Bolsonaro anunciou no começo da pandemia seu desejo de “fazer cumprir o artigo 142” contra o STF. Já havia testado também o grito do estado de sítio. Dia desses voltou a soprar o apito: “Gostaria que não chegasse o momento de decretar estado de sítio, mas vai acabar chegando. É para dar liberdade para o povo, para dar o direito ao povo de trabalhar. Não é ditadura não”. Parecia seu filho avisando que “AI-5 não é uma questão de ‘se’, mas de ‘quando’”.

Estado de sítio é instrumento extraordinário de restrição de direitos e incremento de poderes. Um dispositivo com prazo determinado para autodefesa, e não ataque, da democracia. Mas vale fazer uma distinção nessa conversa: existe o estado de sítio da Constituição de 1988, o da história do autoritarismo brasileiro e o da mitologia bolsonarista.

A Constituição de 1988 exige não só “comoção grave de repercussão nacional” como a ineficácia de outras medidas para enfrentá-la. O presidente precisa de autorização do Congresso para decretá-lo. Está sujeito a controle político pelo Congresso e judicial pelo STF a partir dos limites da excepcionalidade, necessidade e temporariedade (art. 137 e 138). É o último recurso numa crise, não o primeiro (já que o governo federal boicotou até as mais elementares medidas).

Na história do autoritarismo brasileiro, estado de sítio foi pretexto para a violência de governos à margem da Constituição. Fez parte de amplo repertório de exceção.

Nos 40 anos da Primeira República, por exemplo, sete foram em estado de sítio. Nove dos seus 12 presidentes usaram do artifício. Getúlio Vargas, entre 1930 e 1934, e entre 1935 e 1937, governou em estado de sítio. No Estado Novo, governou em “estado de guerra”. Não havia Parlamento para atrapalhar.

A mitologia bolsonarista quis vender algo novo e invertido: o nonsense do estado de sítio pela liberdade do vírus. A cara libertária não tem a ver com liberdade do trabalhador. Empobrecido e sem auxílio, este não tem escolha. Serve para declarar guerra a estados e municípios que, por razões sanitárias, impõem restrições momentâneas de circulação e causam constrangimento ao governo federal.

Nesse contexto, estado de sítio não faz sentido constitucional e não cumpre nenhuma função sanitária. Congresso não o autorizaria, e STF o invalidaria. O presidente parece apostar que a derrota no pleito esdrúxulo o ajudará a se eximir de responsabilidade por milhares de mortes e, ao mesmo tempo, a exaurir a energia de instituições de controle.

​Instituições esgotadas e sem capacidade de reação oferecem oportunidade para eviscerar a Constituição sem custo. A sombra do estado de sítio, do AI-5 e da intervenção militar, enquanto intimida críticos por meio de assédio judicial e abuso da Lei de Segurança Nacional, é o caminho escolhido pelo governo em direção à consolidação autoritária.

Falta combinar o preço com o centrão, capturar o que resta de autonomia nas Forças Armadas e atiçar polícias contra governadores. Está escrito na cartilha da Libols: a revolução autoritária não sairá no Diário Oficial.