segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Raciocínio evoluiu por causa de discussões, HÉLIO SCHWARTSMAN, FSP

 


Num artigo impactante, que vira do avesso alguns dos pressupostos da filosofia e da psicologia evolucionista, os pesquisadores franceses Hugo Mercier (Universidade da Pensilvânia) e Dan Sperber (Instituto Jean Nicod) sustentam que a razão humana evoluiu, não para aumentar nosso conhecimento, mas para nos fazer triunfar em debates.
Desde alguns gregos, mas especialmente com René Descartes (1596-1650), consolidou-se a ideia de que a razão é um instrumento pessoal para nos aproximar da verdade e tomar as melhores decisões possíveis. "Penso, logo existo" é a divisa que celebrizou o pensador francês.
Se esse esquema é exato, como explicar que o pensamento humano erre tanto? Como espécie, fracassamos nos mais elementares testes de lógica, não conseguimos compreender noções básicas de estatística e nascemos com uma série de vieses cognitivos que conspiram contra abordagens racionais.
A situação não melhora quando quando abandonamos o reino das abstrações para entrar no terreno do interesse pessoal. Vários estudos têm mostrado que a maioria das pessoas comete verdadeiros desatinos lógico-financeiros ao administrar seus fundos de pensão.
Mercier e Sperber afirmam que é possível explicar esse e outros paradoxos se deixarmos de lado a noção clássica para adotar o que chamam de teoria argumentativa. Apresentam uma convincente massa de estudos e evidências em favor de sua tese.
A ideia básica é que a capacidade de raciocinar é um fenômeno social e não individual, cujo objetivo é persuadir nossos semelhantes e fazer com que sejamos cautelosos quando outros tentam nos convencer de algo.

SOLUÇÕES
A teoria, dizem os autores, não só faz sentido evolutivo como ainda resolve uma série de problemas que há muito desafiavam a psicologia.
O mais importante deles é o chamado viés de confirmação, que pode ser definido como "buscar ou interpretar evidências de maneira parcial, para acomodar crenças, expectativas ou teorias preexistentes". O fenômeno está na base daquela mania irritante de políticos de só responder o que lhes interessa.
O viés de confirmação é ainda uma das razões de persistência no erro, mesmo quando ele nos prejudica.
Temos dificuldade para processar informações que contrariam nossas convicções. Em suas versões extremas, ele produz pseudociências, fé em religiões e sistemas políticos e também teorias da conspiração.
Sob o modelo clássico, o viés de confirmação é uma falha de raciocínio mais ou menos inexplicável.
Mas, se a razão foi selecionada para nos fazer vencer em debates, então faz sentido que eu busque apenas provas em favor da minha tese, e não contra ela.
Adotada a lógica da produção de argumentos, o que era erro se torna um dos pontos fortes da teoria.

FENÔMENO SOCIAL
O modelo tem, evidentemente, implicações fortes. A mais evidente delas é que a razão só funciona bem como fenômeno social. Se pensarmos sozinhos, vamos muito provavelmente chafurdar cada vez mais fundo em nossas próprias intuições.
Mas, se a utilizarmos no contexto de discussões, aumentam bastante as chances de, como grupo, nos dar bem. Ainda que nem sempre, por vezes as pessoas se deixam convencer por evidências.
Trabalhos mostram que, quando submetidas a situações nas quais é preciso chegar a uma resposta correta (testes matemáticos ou conceituais), pessoas atuando sozinhas se saem mal, acertando em torno de 10% das respostas (Evans, 1989).
Quando têm de solucionar os mesmos problemas em grupo, o índice de acerto vai para 80%. É o chamado efeito do bônus de assembleia.

Hélio Schwartsman - Razões para ser bolsonarista, FSP

 Dentro de mais alguns dias, conheceremos os votos dos ministros do STF encarregados de julgar Jair Bolsonaro e a pena imposta ao ex-presidente. O preocupante é que, por mais bem fundamentada que venha a ser a condenação, parcela não desprezível do eleitorado a considerará ilegítima.

No plano objetivo e abstraindo quaisquer considerações jurídicas, é zero a dúvida de que Bolsonaro atentou contra a democracia. Apenas tentar produzir razões "legais" para não entregar o poder após ter perdido uma eleição, algo que ele admite que fez, já viola as regras do jogo institucional. A essência da democracia é justamente fazer com que governantes que perdem eleições deixem o poder sem resistir.

Um homem está em pé, usando uma camisa azul e calças escuras, enquanto abre um portão de metal. Ao fundo, há um carro preto estacionado e algumas bicicletas. O ambiente parece ser uma residência, com um gramado na frente.
O ex-presidente Jair Bolsonaro em sua casa - Gabriela Biló - 27.ago.2025/Folhapress

Ainda que o ex-presidente achasse que a eleição foi marcada por irregularidades, não caberia a um candidato decretar isso. No mais, é difícil defender a ideia de que houve algum tipo de fraude contra o grupo político do ex-presidente quando se considera que vários governadores bolsonaristas foram eleitos e que seu partido fez a maior bancada da Câmara dos Deputados.

A pergunta que fica, então, é como milhões de brasileiros, que até prova em contrário não são doidos, ainda defendem Bolsonaro. A melhor hipótese que me ocorre para explicar isso é a levantada por Hugo Mercier e Dan Sperber, a cujo trabalho sempre aludo aqui. Para a dupla, a razão não evoluiu para nos tornar capazes de apurar fatos objetivos e encontrar verdades (ainda que possa em certas situações fazer isso), mas para nos capacitar a vencer debates e ficar bem diante do grupo.

Hoje, com as redes sociais, cada um carrega seu próprio grupo no bolso e com ele interage o tempo todo, o que leva à multiplicação dos reforços positivos que o indivíduo recebe cada vez que se mostra leal aos consensos de seus pares. O resultado desse processo é a cristalização e até a radicalização das posições do grupo.

Punir os golpistas é uma necessidade para desestimular ataques futuros, mas não deve mudar muito o quadro de polarização afetiva que divide o país.


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A César o que não é de César, Hélio Schwartsman, FSP

 São importantes as operações policiais deflagradas contra o PCC. A infiltração da economia formal e do próprio poder público pelo crime organizado é um fenômeno que precisa ser combatido com urgência, já que, quanto mais avança, mais difícil se torna seu enfrentamento.

É pena que a boa notícia institucional tenha sido maculada pelo que parece ser uma disputa eleitoreira entre Lula e Tarcísio de Freitas, que provavelmente se enfrentarão no pleito presidencial de 2026, pela paternidade das ações.

A imagem mostra um grupo de pessoas sentadas em um evento. Em primeiro plano, dois homens estão conversando. O homem à esquerda tem cabelo grisalho e usa um terno escuro, enquanto o homem à direita tem cabelo curto e usa um terno claro. Ao fundo, outras pessoas estão visíveis, algumas olhando para frente e outras interagindo entre si.
O presidente Lula e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, participam do lançamendo do edital do túnel ligando Santos a Guarujá - Zanone Fraissat - 27.fev.2025/Folhapress

Apesar de lamentável, o episódio ilustra bem um dos problemas da democracia. Na maioria das situações, o eleitor atua no escuro. Isso é óbvio quando os cidadãos escolhem alguém novo para um cargo. Os mais conscienciosos ainda procurarão se informar, analisando o passado e as ligações do postulante, mas a maioria não se dá ao trabalho, formando seu voto por outras vias.

No caso de reeleições, o cidadão opera com uma carga maior de informações, já que teve a oportunidade de avaliar o desempenho do governante. É esse o motivo por que alguns cientistas políticos são contra o fim da reeleição. Nós eliminaríamos uma das poucas situações em que o eleitor não agiria às cegas.

O problema é que não é tão fácil separar o que, numa administração, resulta de virtudes ou de vícios do governante e o que se deve a outros fatores. Essa é uma tarefa difícil até para cientistas montados em toneladas de dados. De um modo geral, o eleitorado acaba recompensando ou punindo o gestor por coisas que ele não fez ou sobre as quais tem parcela diminuta de responsabilidade.

É bem esse o caso dessas operações anti-PCC. Elas foram conduzidas por órgãos como o Ministério Público paulista, PF e Receita Federal, que são compostos por servidores com carreira de Estado e que operam com grande autonomia. Em muitos casos, até para evitar vazamentos, só informam suas chefias políticas das operações vindouras na undécima hora.

A democracia funciona não porque gere bons líderes, mas porque assegura transições pacíficas de poder.