sexta-feira, 4 de abril de 2025

Tarifaço desatinado de Trump ameaça o mundo e os EUA, editorial FSP

 Como era esperado e temido, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou uma nova onda de tarifas que pode provocar uma mudança estrutural no comércio global —para muito pior.

A integração de cadeias complexas de produção, desenvolvida ao longo de décadas, está agora sob risco de ruptura e amplo redesenho, o que deve resultar em considerável dano econômico.

Sob a justificativa de uma "emergência nacional", Trump impôs tarifas recíprocas, calculadas sabe-se lá como, a partir de 10%. No caso dos produtos da China, foram 34%, em adição aos 20% já cobrados antes.

União Europeia será taxada em 20%, enquanto Canadá e México, já penalizados desde março, escaparam de novos aumentos.

Há ainda setores que terão tratamento específico, caso de automóveis, aço, alumínio, semicondutores, farmacêuticos e determinados produtos energéticos.

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No agregado, a tarifa média passou de cerca de 9% para entre 19% e 25%, a depender de como será o desenho final, ainda incerto. É o maior patamar desde o século 19, superando até mesmo o protecionismo dos anos 1930.

Por trás do apelo da medida está a arcaica crença mercantilista de que déficits comerciais são necessariamente uma perda, algo já desmontado à exaustão pela teoria econômica —e pela prática.

Como já explicou didaticamente um antecessor republicano de Trump, Ronald Reagan, o protecionismo tarifário pode até preservar empregos locais por um breve período de tempo. Depois, as empresas se tornam ineficientes e dependentes dos favores do governo, as retaliações estrangeiras emperram o comércio global, os preços sobem, os mercados encolhem e milhões são demitidos.

A Casa Branca disse que está aberta a negociações, e muitos países que têm nos EUA seu mercado principal devem aceitar barganhas. De todo modo, o dano está feito e terá consequências. A inflação americana, já elevada pós-pandemia, deve subir para mais de 3%, talvez 4% neste ano.

O suposto estímulo à reindustrialização não é claro —as decisões empresariais devem ser travadas pela própria incerteza do processo. O risco de paralisia de investimentos é grande e poderá jogar o país numa recessão.

Se não se conseguir criar um bom ambiente econômico com a agenda de corte de impostos e desregulamentação ainda por vir, as eleições legislativas de 2026 podem reavivar os democratas.

Não por acaso, deve haver forte resistência ao tarifaço por parte de parlamentares republicanos, também pressionados por lobbies de setores prejudicados. Isolar o país do comércio mundial, ademais, pode empurrar emergentes para a órbita chinesa.

O Brasil, que não tem superávit no comércio com os EUA, sentiu impacto menor, com cobrança de 10%. O governo deve evitar retaliações precipitadas. Uma análise cuidadosa é essencial para não incorrer em mais perdas num conflito que já ameaça o mundo.

editoriais@grupofolha.com.br

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Elon Musk usa fortuna para zombar da democracia eleitoral, Lucia Guimarães, FSP

 Repórteres que cobrem política fariam bem se agissem na contramão do provérbio "a cavalo dado não se olha os dentes". A tarde do tarifaço trumpista foi interrompida por um suspeito "furo exclusivo" do site Politico, sobre a partida antecipada de Elon Musk, após o fiasco da eleição para a vaga de juiz na Suprema Corte do estado de Wisconsin.

O bilionário nascido e criado na Pretória do apartheid gastou US$ 20 milhões tentando eleger o juiz trumpista Brad Schimel, num pleito que teria sido ignorado pela grande maioria dos americanos, não fosse a entrada de Elon Musk e de outros bilionários na campanha mais cara da história do Judiciário americano.

A imagem mostra a silhueta de uma pessoa em um ambiente noturno, com uma fonte de luz ao fundo. A figura está de perfil, destacando-se contra um fundo mais claro. A iluminação suave cria um contraste entre a silhueta e o ambiente ao redor.
O bilionário, CEO da Tesla e SpaceX e dono do X, Elon Musk - Roberto Schmidt/4.mar.25/AFP

Além da doação, Musk trouxe uma tropa de terceirizados de outros estados para bater de porta em porta pedindo apoio ao candidato e entregou dois cheques de US$ 1 milhão no domingo (30) como recompensa para os eleitores que assinaram uma "petição condenando juízes ativistas." É o que Jorge Amado teria descrito como coronéis do cacau comprando votos.

A manchete sobre a renúncia de Musk para retornar à gestão de suas empresas, inclusive a combalida Tesla, emergiu apenas horas depois do resultado em Wisconsin. Andrew Card, ex-chefe de gabinete de George W. Bush, dizia que uma Casa Branca organizada vaza informações de propósito, mas uma Casa Branca incompetente apenas vaza. A ideia de que Trump subitamente interrompeu o bromance com o homem mais rico do mundo tem, no momento, tanta credibilidade quanto aparições noturnas da mula sem cabeça.

Como a amaldiçoada figura do nosso folclore, o fantasma do impopular empresário deve continuar a exercer poder e causar ruptura no governo federal. Qualquer observador atento das encenações de mídia protagonizadas pela dupla Trump-Musk deve ter notado que há um elemento de temor do homem mais rico do mundo que, não só investiu quase US$ 300 milhões para eleger o presidente, como avisou, dedo em riste, aos deputados republicanos que não votarem alinhados com Trump: ousem me contrariar e eu financio um adversário na eleição legislativa de 2026.

O medo de Trump, somado ao medo dos bilhões de Musk é a força nuclear governante da política americana do momento, em que o partido do presidente controla as duas Casas do Congresso. Musk deve seu poder desgovernado —acumulado graças a uma fortuna subsidiada pelo contribuinte americano— a uma decisão emitida pela Suprema Corte há 15 anos.

Em 2010, o tribunal máximo dos EUA deu vitória a lobistas conservadores acobertados por uma ONG, a Citizens United, declarando que limitar doações de empresas e sindicatos a campanhas seria violar a Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão. A decisão escancarou a porteira para a influência do dinheiro na política americana e desaguou no Frankenstein sul-africano, hoje decidido a ser coroado o banqueiro do trumpismo.

É cedo para avaliar a derrota em Wisconsin como um basta das massas furiosas para atravessar a ponte levadiça que as separa do castelo feudal. Mas a campanha vitoriosa foi concentrada em identificar Musk como o vilão. O juiz redator do voto pela Citizens United, em 2010, escreveu que "a aparência de influência ou acesso não fará com que o eleitorado perca a fé na nossa democracia."

E Musk respondeu: "Segure a minha cerveja."

O mundo de Trump: tarifas e partilha com Rússia e China, Marcos Augusto Gonçalves, FSP

 Ao mesmo tempo em que ataca a ordem liberal com investidas variadas, entre as quais o recém-anunciado tarifaço para transações comerciais, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, vai dando sinais de que, na nova ordem mundial que pretende presidir, os interesses americanos estão em primeiro lugar, mas não a ponto de desrespeitar as zonas de influência das grandes potências.

Sob a crença de que o sistema internacional é injusto e prejudica os americanos, o presidente republicano adotou taxações em série, inspirando previsões pouco animadoras de economistas e governos de diversas tendências.

Um homem com cabelo loiro e pele clara está sentado em uma mesa, segurando um documento em uma mão e uma caneta na outra. Ele está vestido com um terno escuro e uma gravata vermelha. Ao fundo, há bandeiras dos Estados Unidos penduradas em uma parede. O homem parece sério e está olhando para a câmera
Donald Trump, presidente dos EUA, durante anúncio de tarifas sobre parceiros comerciais - Saul Loeb - 2.abr.2025/AFP

O quadro só se agravará com as reações internacionais. A União Europeia, posta de lado na geopolítica, colocou na mesa uma escalada de retaliações, que mira bancos e big techs dos EUA. A China, uma das mais atingidas, também acena com respostas significativas.

O Brasil, com comércio modesto, foi atingido com barreiras a seus produtos, porém no "piso" de 10%. Ao que parece, dentro do cenário, é um patamar administrável. O país poderá até ter vantagens, mas legislação de reciprocidade foi aprovada. Como e se será acionada não se sabe. Cabe ao governo reagir de maneira racional, o mais responsável e eficaz possível, como vem fazendo até aqui, aliás.

Paralelamente às barreiras aduaneiras, Trump lança ameaças ao Canadá e Panamá e diz que vai se apoderar da Groenlândia. O populista autocrático apresenta-se, em outro sentido, como defensor de um acordo pró-Rússia no caso da Ucrânia e não parece empenhado em criar problemas para a China quanto a uma possível tomada definitiva de Taiwan.

Para completar este quadro geopolítico tipo "cada autocrata cuida de seu quintal", sugere a limpeza de Gaza e chancela a colonização da Cisjordânia por Israel. Se o suporte incondicional dos EUA a governos israelenses não é uma novidade, vê-se agora, na prática, o pleno abandono da ideia de dois Estados em favor da imposição israelense do rio ao mar —e a perspectiva de um acordão com a Arábia Saudita e outros países árabes.

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Eis a nova ordem mundial de Trump. Tarifas ameaçadoras e simultaneamente a partilha de zonas de influência com Rússia e China, enquanto a Europa, abandonada, debate-se numa posição difícil.

Que tais ataques ao livre comércio, às instituições multilaterais, à ordem liberal e à democracia partam dos EUA é uma realidade nova a desafiar a previsibilidade e a estabilidade já precária de um mundo que tem perdido seus parâmetros.

Entre tantas incertezas não parece haver dúvida de que o fantasma do autoritarismo, competitivo ou não, ronda as democracias sob a égide desse governo hostil e irresponsável. É espantoso que esse conjunto de providências chegue ao auge num propalado "dia da libertação".

A eleição de Trump foi saudada por expoentes da direita internacional —caso do governador bolsonarista de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que postou imagem constrangedora usando um boné "Maga". A performance do eleito nos EUA parece agora de difícil defesa mesmo entre simpatizantes ideológicos. Como o nacionalismo dos movimentos populistas de ultradireita apoiaria decisões contrárias a seus países, economia e população? A roleta desse novo mundo está em movimento e não se sabe aonde vai parar.