quinta-feira, 3 de abril de 2025

Antropofagia predatória, Ruy Castro FSP

 Durante seus 64 anos de vida (1890-1954), Oswald de Andrade fez do mundo um circo, com ele no centro do picadeiro. No começo, foi um sucesso. Mas o mundo passou de ano e cansou-se de assistir ao mesmo show —frases de efeito, trocadilhos, insultos, brigas, reconciliações oportunistas e mais brigas. Nos dez anos anteriores à sua morte e nos primeiros dez que se seguiram, ninguém lhe deu bola. Em 1964, exumado pelos concretistas, Oswald foi entronizado como um gênio rebelde e incompreendido.

Ele mesmo disse certa vez que, no Brasil, ou se está no trono ou no patíbulo. Desde sua ressurreição, Oswald só conheceu o trono. Dezenas de livros celebram suas lendas, em maioria disseminadas por ele próprio 30 anos depois dos fatos e adotadas sem verificação. O patíbulo não está à vista, mas uma nova biografia, "Mau Selvagem", de Lira Neto, joga uma incômoda luz sobre o homem que se escondia por trás do artista.

Oswald não sai bem do livro. A obsessão por meninas com metade da sua idade —uma delas, com 12 anos—, seu desprezo depois de conquistá-las, doenças venéreas, abortos e uma morte em decorrência (a de Daisy, da famosa garçonnière) não devem contribuir para sua imagem hoje.

Pela narrativa de Lira (que não esconde sua admiração pelo autor), há muita coisa sem explicação em Oswald. Homofobia, racismo, rancores ciclópicos contra ex-companheiros, ingratidão (com Blaise Cendrars, de quem pegou a prosa telegráfica e o poema-piada) e um renitente copidesque de sua história sem apoio na realidade.

Nunca foi, por exemplo, um "homem sem profissão". Em todos os dias de sua vida, mais do que poeta ou escritor, foi um corretor imobiliário. Filho do talvez maior latifundiário urbano de São Paulo, viveu de vender os inesgotáveis terrenos e prédios que herdou em 1919, hipotecando-os, negociando com bancos, credores e agiotas e bajulando poderosos para sair de encrencas. Aliás, a leitura de seu "Diário Confessional" confirma isso. No fim, o antropófago devorou a si mesmo.

Oswald de Andrade aos 58 anos
Oswald de Andrade aos 58 anos - Unicamp

Juíza bolsonarista que se opôs a máscara na pandemia é novamente aposentada, FSP

 Frederico Vasconcelos

São Paulo

Em decisão unânime, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) condenou a juíza bolsonarista Ludmila Lins Grilo, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a uma segunda aposentadoria compulsória.

O ministro Luís Roberto Barroso presidiu o julgamento virtual no último dia 21.

Ludmila apoiou ostensivamente a candidatura de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência, em 2018. Participou de atos político-partidários e criticou os tribunais superiores.

Na pandemia, instigou a população a não usar máscaras anti-Covid.

Mulher de cabelos pretos, vestindo roupa escura, responde perguntas em debate. Na mesa, há um microfone e um copo de água.
Ludmila Grilo, juíza aposentada compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça - Leonardo Prado/Câmara dos Deputados

Sua primeira aposentadoria foi decidida pelo tribunal mineiro em maio de 2023. Ludmila foi acusada de ofender desembargadores que sancionaram uma advertência. Escreveu que eles só aceitariam manifestações de "lambe-botas e baba-ovos", "adulação e puxa-saquismo".

O CNJ e o TJ-MG ainda mantêm processos sob segredo de Justiça envolvendo a magistrada.

A segunda punição foi publicada no Diário da Justiça Eletrônico do último dia 25. Os desdobramentos do novo julgamento podem reforçar eventuais providências do MPF (Ministério Público Federal) na esfera penal.

A ex-juíza recebe os proventos proporcionais ao tempo de contribuição.

Os casos de aposentadoria acumulada são raros. Um juiz do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) já recebeu uma terceira pena de aposentadoria compulsória.

Nas redes sociais, Ludmila se declara "exilada nos Estados Unidos". Ela saiu do país sem comunicar a viagem ao tribunal. Foi declarada revel. Não informou o endereço para envio de citação.

Segundo o TJ-MG, o contato com Ludmila se restringe ao pedido de prova de vida, procedimento padrão para os aposentados. A reportagem não conseguiu ouvir a juíza.

Como a Folha revelou, o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e aliados que se opõem a Alexandre de Moraes tentam abrir processo, no Departamento de Justiça, para investigar eventual tentativa de coação contra a liberdade de expressão de 14 indivíduos em solo americano. Entre eles, Paulo Figueiredo, Rodrigo Constantino, Allan dos Santos e Ludmila.

O processo relativo à magistrada subiu para o CNJ em agosto de 2022. O tribunal mineiro o arquivara, alegando que a fonte era anônima. O então corregedor Luís Felipe Salomão discordou, pois o CNJ admite a denúncia anônima como início de prova. O print enviado pelo denunciante correspondia a publicação no perfil pessoal da juíza.

Salomão registrou que Ludmila "não cumpria seus deveres básicos". Uma correição extraordinária na Vara Criminal e da Infância e da Juventude da Comarca de Unaí, da qual era titular, identificou 1.291 processos paralisados, vários deles de réus presos.

A Defensoria Pública da União inicialmente se recusou a designar um defensor. Um advogado dativo pediu o arquivamento do processo administrativo. Disse que as manifestações não comprometiam a imparcialidade da juíza, que fizera os comentários na condição de professora.

Ludmila não compareceu à audiência virtual para interrogatório.

O relator, Caputo Bastos, acolheu sugestão do MPF e votou pela segunda aposentadoria compulsória, acompanhado pelo colegiado.

OUTRO LADO

Quando o corregedor-geral de Minas Gerais, Agostinho Gomes de Azevedo, viu indícios de crime e propôs processo disciplinar contra Ludmila Grilo, em janeiro de 2021, a magistrada desafiou:

"Enquanto não decretado estado de defesa ou estado de sítio (...) continuarei sustentando a inviabilidade jurídica do lockdown e das restrições de liberdades via decretos."

Numa sessão do CNJ, Ludmila fez sua própria defesa. Disse que o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do tribunal estadual alertara sobre ameaças contra sua vida. Afirmou ainda que dispensou a escolta policial, insuficiente para garantir sua proteção, e deixou de trabalhar presencialmente.

O portal Conexão Política reproduziu afirmação da juíza: "Sofri calada todo tipo de difamação quanto à minha conduta profissional".

Ludmila escreveu que levaria à Corte Interamericana de Direitos Humanos as "ações envolvendo atos persecutórios" praticados pelo CNJ e STF (Supremo Tribunal Federal).

Em 2020, o corregedor Humberto Martins arquivou pedido de providências. Entendeu que não havia justa causa para reclamação ou processo disciplinar.

A bússola e a tempestade Alexandre Marcos Pereira, APMP


 Esforço com investimento que não se controla é o maior erro.


 Talvez essa seja a frase que deveria estar escrita em letras douradas na porta de entrada de muitas empresas, lares e corações. Mas não está. Preferimos pendurar quadros com mensagens positivas, frases motivacionais como “acredite nos seus sonhos” ou “o universo conspira a favor de quem tenta”. Tudo bonito, tudo poético — mas, às vezes, perigosamente ingênuo. Sim, há um tipo de romantismo trágico nessa ideia de que tudo que se faz com amor e esforço trará frutos. Como se o destino fosse um jardineiro zeloso, recompensando quem se suja de terra. Mas a verdade é que o solo pode estar infértil, a estação errada, ou o jardineiro distraído com outra plantação. Lembro de um homem que conheci certa vez — chamemo-lo de Paulo. Tinha ele uma loja de antiguidades no centro velho da cidade. A cada peça que vendia (e isso era raro), comprava duas novas. Insistia em restaurar móveis que ninguém mais queria, em guardar cristaleiras do século XIX em um mundo que valoriza muito mais a leveza do MDF. Seu esforço era comovente. Seu amor pelo que fazia, genuíno. Mas o investimento era desgovernado, como um rio transbordando fora da margem. E, inevitavelmente, naufragou. Paulo não falhou por preguiça. Falhou por não fazer as contas. Por ignorar os sinais. Por acreditar que só o esforço bastava. E quantos de nós não somos um pouco como Paulo? Aplicamos energia em relações que já naufragaram há muito tempo, mas seguimos insistindo. Investimos tempo em projetos que nos esvaziam, mas que se tornaram parte do nosso orgulho — ou da nossa teimosia. E o mais curioso: chamamos tudo isso de persistência. Confundimos resiliência com cegueira. Existe uma beleza secreta em saber parar. Em reconhecer que o investimento está fugindo ao controle. Que o esforço, por mais nobre que seja, se transformou num sacrifício inútil. Não há vergonha alguma em recuar. Ao contrário: há sabedoria. Mas o mundo não ensina isso. Prefere os heróis que lutam até a última gota, até o último centavo, até o último suspiro. Como se a grandeza estivesse apenas na insistência. Como se só valesse a pena viver no modo épico, e não no modo lúcido. Hoje, quando vejo alguém exausto, perdido em suas tentativas, costumo perguntar: o quanto disso é real necessidade e o quanto é vaidade? Às vezes, o esforço é só um modo elegante de fugir do medo de recomeçar. De admitir o erro. De dizer: “isso não deu certo e tudo bem”. No fundo, o que nos falta não é esforço. É direção. É controle. É a capacidade de medir, de recalcular, de redirecionar. É a coragem de admitir que a energia é preciosa demais para ser gasta sem critério. Portanto, da próxima vez que você suar por algo, pare um segundo. Observe o mapa. Sinta o vento. Veja se a bússola ainda aponta para onde você queria ir. Porque remar com fervor numa direção errada só nos leva mais rápido ao abismo. E o universo, esse velho sábio distraído, talvez esteja apenas esperando você aprender a diferença entre persistência e prudência.