domingo, 25 de agosto de 2024

Thomas Piketty faz um 'livro para preguiçosos' sacrificando argumentos, FSP

 Rafael Cariello

Jornalista e historiador, é coautor de 'Adeus, Senhor Portugal' com Thales Zamberlan Pereira

Em finais da década passada, fez algum sucesso entre jornalistas uma página no Facebook chamada "Eliane Brum para Preguiçosos". Era um desses empreendimentos que se tornam óbvios depois de realizados.

O economista francês Thomas Piketty discursa em campanha eleitoral legislativa em Montreuil na França, em junho de 2024 - Ludovic Marin/AFP

Dia após dia, no extinto site El País Brasil, a colunista Eliane Brum desenvolvia algum texto sério, importante (Brum foi das primeiras jornalistas a insistir na incontornável conexão entre temas sociais e ambientais) e, invariavelmente, palavroso. A colunista era prolixa a ponto de fazer perfis da revista Piauí parecerem resenhas da Ilustrada.

Era aí que entrava o esforço, digamos, jornalístico de "Eliane Brum para Preguiçosos". Em seguida a uma caudalosa coluna defendendo o distanciamento social, no início da pandemia, a página resumiu o texto assim: "Fica em casa. FIM".

Em 2018, para sintetizar um artigo de centenas de palavras crítico ao então candidato Jair Bolsonaro, a frase: "Ele não. FIM". E, meses depois, já com o pior governo da história do país em marcha, a fim de resumir o espanto e a indignação da colunista, a constatação: "Tá puxado. FIM".

Pois bem. "Natureza, Cultura e Desigualdades", texto de menos de cem páginas, é uma espécie de "Thomas Piketty para Preguiçosos". O volume reproduz uma conferência do economista francês em Paris, em 2022 —e impressiona pela brevidade.

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Conhecido por ser prolixo, Piketty ajudou a trazer o tema da desigualdade para o centro das preocupações dos economistas ortodoxos há exatos dez anos, com o lançamento em inglês, em 2014, de um catatau de quase 700 páginas. "O Capital no Século 21" logo se um tornou um desses livros célebres, sempre mais citados do que lidos —uma das definições de obra clássica.

Entre as vantagens do novo livrinho está o fato de, premido pelas exigências de síntese, apresentar com bastante clareza talvez a ideia central do projeto de Piketty. O que o economista parece desejar, antes de tudo, é que seus leitores compreendam que as desigualdades de renda e de riqueza não podem nem devem ser naturalizadas.

As desigualdades econômicas não são o resultado de diferenças morais (maior ou menor preguiça), de competência (apenas) ou culturais. Elas são sempre, em toda parte, o resultado de distinções arbitrárias (e, portanto, injustificáveis) de poder.

O problema com a naturalização da desigualdade é que ela termina por ser fatalista. Argumentos de ordem "cultural", por exemplo —quando a cultura é tratada como característica perene e pouco maleável das diferentes sociedades—, são claramente conservadores.

Assim a Suécia teria uma "cultura" mais igualitária, própria talvez de uma sociedade homogênea; e o Brasil, por seu passado escravista, uma "cultura" menos igualitária. Sob o peso desses passados, o que se pode fazer? Cultura, sociedade e economia se ligam, nesses exemplos, em um argumento circular e aparentemente inescapável. É contra esse tipo de fatalismo que se volta Piketty.

A desigualdade é sempre resultado da política e pode ser enfrentada e reformada no presente. Por exemplo, no orçamento público, talvez o grande mecanismo de criação e manutenção de desigualdades — ou de combate a elas. O Estado, ao cobrar impostos e redistribuir renda, pode servir para perpetuar iniquidades ou para ajudar a mitigá-las.

Não à toa, o grande exemplo do livro é retirado da história recente da Suécia. Em vez de paradigma atemporal de cultura igualitária, Piketty nos mostra que o país era, até o início do século 20, um caso típico de sociedade desigual —desigualdade econômica que derivava de uma radical desigualdade política, ligada a um curioso sistema censitário em que alguns aristocratas e proprietários rurais tinham direito, individualmente, a um maior número de votos do que o restante dos cidadãos.

Foi numa reviravolta política, com a chegada dos social-democratas ao poder, que o país passou a construir a sociedade igualitária que se tornaria célebre décadas mais tarde.

O caso sueco no fim das contas serve para ilustrar, também, as limitações e desvantagens de um texto tão breve. O leitor fica com vontade de saber como se deu a transformação "com incrível rapidez" daquela sociedade entre as décadas de 1930 e 1980, mas Piketty lamentavelmente não se ocupa dessa história.

Trata-se de um problema que o procedimento caricatural de "Eliane Brum Para Preguiçosos" ajuda a realçar: a partir de certo ponto, a condensação excessiva acaba por sacrificar não apenas a complexidade mas a simples exposição do argumento. Dizer pouco, às vezes, é deixar de fora um bocado de coisa relevante —um problema, aliás, que resenhistas costumam enfrentar.


NATUREZA, CULTURA E DESIGUALDADES

  • Preço R$ 44,90 (96 págs.)
  • Autoria Thomas Piketty
  • Editora Civilização Brasileira Brochura
  • Tradução Maria de Fátima Olivia do Coutto

Marcos de Vasconcellos- Os gigantes minguaram o ESG, FSP

 A maior gestora de recursos do mundo, a BlackRock, divulgou uma informação que pode ser uma pá de cal nos esforços para direcionar investimentos para iniciativas que privilegiam questões ambientais e sociais —os famosos investimentos ESG.

Segundo o seu relatório anual de governança de investimentos, a gestora aportou em apenas 20 das 493 iniciativas ligadas a boas práticas ambientais e sociais apresentadas por seus acionistas nos últimos 12 meses, o que dá cerca de 4%. No ano anterior, o nível estava em 7% e, antes disso, em 2021/2022, em 47%, contabilizou o Financial Times.

A imagem mostra o painel da Nasdaq com um apresentador em frente a um grande painel digital. O painel exibe informações financeiras, incluindo índices de ações e números em verde e vermelho, indicando variações de preços. O logotipo da Nasdaq é visível no fundo, e há uma mesa com o nome 'iShares' em destaque.
BlackRock e Vanguart reduzem aportes em ESG nos últimos anos - MICHAEL M. SANTIAGO/Getty Images via AFP

Acontece que a BlackRock —com seus US$ 9,101 trilhões sob gestão— não está sozinha. A segunda maior gestora do mundo, Vanguard —com R$ 7,2 trilhões sob gestão—, segue pelo mesmo caminho. No último relatório, divulgado no ano passado, a empresa havia investido em apenas 2% dos projetos ligados a boas práticas ambientais e sociais. Antes disso, seu índice de aproveitamento era de 12%.

movimento mexeu com investidores mais ligados à causa. No mês passado, a Vanguard anunciou seu novo CEO, Salim Ramji. Dias depois do anúncio, uma carta assinada por mais de 8.000 clientes da gestora pede que ele volte seus olhos para a pauta ambiental, uma vez que ela estaria "muito atrás na gestão e mitigação de riscos sistêmicos como as mudanças climáticas."

Não dá para adivinhar se ele dará ouvidos. A freada brusca no interesse em investimentos ESG tem uma lista de razões, mas a principal, a meu ver, é a redução do dinheiro em circulação, que fez os investidores reduzirem seus filtros. Se a preocupação, durante a "onda ESG", foi ganhar dinheiro com responsabilidade, agora, só ganhar dinheiro já parece um bom negócio.

A questão da insegurança energética também entra nessa conta. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2022, a redução no fornecimento de gás fez londrinos tomarem banho gelado. E as empresas de petróleo e gás, que estão entre os principais alvos das críticas dos ambientalistas, voltaram a ser vistas como investimentos seguros —já que a demanda parece longe de diminuir.

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Na nossa Bolsa de Valores, com menos de 400 empresas negociando seus papéis, fazer uma carteira ESG já é um desafio e tanto. Pense que as gigantes Vale e Petrobras, duas empresas entre as de maior peso no Ibovespa, já seriam quase automaticamente descartadas, por tratar-se de uma mineradora e uma petroleira.

No índice ESG da Bolsa brasileira, montado pela S&P Dow Jones, as três ações de maior peso são a Weg, indústria de motores; a Engie, de energia; e a Rede D’Or, de hospitais. Juntas, elas são menos de 6% do nosso principal índice, o Ibovespa, que reúne as ações mais representativas do mercado.

Neste ano, enquanto o Ibovespa acumulou uma sofrida alta de 2,3%, o nosso índice ESG ainda está no vermelho, com uma queda de 1,87%.

Os gigantes dos investimentos pisaram no freio, mas confesso que parece um pouco tarde para as empresas voltarem atrás em seus posicionamentos em relação a boas práticas ambientais, sociais e corporativas. Além disso, grandes empresas dos EUA, como Salesforce e BestBuy, pararam, sem mais nem menos, de divulgar suas metas de inclusão e diversidade em seus relatórios anuais.

O otimista advogado Leonardo Barém Leite publicou, no site Monitor do Mercado, um artigo dizendo que o ESG tende a desaparecer, porque a sustentabilidade se tornará premissa básica, e não diferencial, das empresas. Que assim seja. Nos investimentos, entretanto, a premissa parece ser outra.

Hélio Schwartsman - Como tiranos caem, FSP

 Depois de uma prolífica safra de livros com títulos na linha de "Como as Democracias Morrem", chega agora ao mercado "How Tyrants Fall" (Como Tiranos Caem), de Marcel Dirsus.

O livro tem um aspecto catártico. Devo confessar que meu lado sádico se deleitou ao ler as descrições sobriamente detalhadas do fim que tiveram monstros como Nicolae Ceaucescu, Saddam Hussein e Muammar Gaddafi. Ainda que por um átimo, chegamos a acreditar na falácia do mundo justo.

"How Tyrants..." não é, contudo, um manual de autoajuda, mas um livro de divulgação em ciência política, o que significa que ele também traz números e avança hipóteses e explicações sistemáticas.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 25 de agosto de 2024, mostra, no centro da imagem, um tirano representado pelo ex-presidente do Iraque Saddam Hussein, usando uniforme militar, e ao fundo, de um lado, uma revolução popular e, do outro, ele sendo julgado em um tribunal.
Annette Schwartsman

O quadro geral é do tipo copo meio cheio, meio vazio. Ser líder autocrático é uma profissão de risco moderado: 69% deles ficam bem após deixar o poder; "apenas" 23% terminam suas carreiras exilados, presos ou mortos. Mas, quanto mais personalista se torna o regime, maior o perigo. Quando examinamos o destino de ditadores que concentravam o poder em suas próprias mãos, aí os números viram: 69% deles foram para exílio, prisão ou experimentaram o assassinato.

Por vezes, tiranos são depostos por revoltas populares. E, quando mais de 3,5% da população sai às ruas para protestar, isso se torna praticamente inevitável. Mas o mais comum é que líderes autoritários acabem sendo removidos por membros de seu próprio governo (golpe), o que ocorre em 65% dos casos.

Dirsus consegue um bom equilíbrio entre dados abstratos e histórias concretas. Também oferece explicações para algumas constantes, como o fato de ditaduras, em especial as personalistas, tenderem a ser regimes corruptos e incompetentes. Tiranos precisam recompensar a lealdade, não a eficiência.

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A proposta do autor era escrever um guia de como destituir tiranos. Conseguiu. Mas é claro que a obra também pode ser lida por ditadores e funcionar como um guia de como permanecer no poder.