domingo, 2 de junho de 2024

GUSTAVO ALONSO O palhaço venceu. FSP

 No último dia 24 de maio faleceu em Nova York o diretor e produtor Morgan Spurlock. O cineasta americano tornou-se célebre no início do milênio pelo filme "Super Size Me: A Dieta do Palhaço" (2004). Seu filme mais famoso não ganharia os louros hoje que ganhou na época do lançamento.

O cineasta Morgan Spurlock em cena do documentário "Super Size Me - A Dieta do Palhaço"
O cineasta Morgan Spurlock em cena do documentário "Super Size Me - A Dieta do Palhaço" - Divulgação


Fazia dois anos que Michael Moore havia lançado "Tiros em Columbine" (2002), documentário que marcou época e influenciou a obra de Spurlock. Enquanto Moore criticava a fixação dos estadunidenses por armas de fogo, Spurlock mirava em outro braço da essência americana: o fast-food. Ambos diretores apareciam em seus filmes como personagens principais, colocando à prova suas teorias e confrontando seus interlocutores com ironia que, às vezes, beirava a agressividade.

"Super size me" tem o espírito do jornalismo gonzo como premissa genial. Spurlock fez seu filme partindo da notícia de que duas mulheres americanas estavam processando o McDonald´s por problemas de saúde. Como personagem principal do próprio documentário, ele colocou a tese à prova e se alimentou por um mês exclusivamente de refeições da famosa rede de fast food e documentou os resultados.

Como esperado, o cineasta padeceu de altos índices de colesterol, engordou 7 quilos, o fígado ficou em condição lastimável e seu natural otimismo foi tomado pela depressão que só passava momentaneamente quando ele se alimentava. Segundo os médicos consultados, o corpo do diretor estava viciado na comida rápida.

As cadeias de fast food mudaram a forma americana de comer a partir dos anos 1950. O fast food tornou-se hegemônico a ponto de transformar os EUA num país de multidões gordas. Em 2004 não havia dúvidas para Spurlock: o excesso de peso coletivo deveria ser visto como uma doença social.

Diante da mudança do espírito do tempo, há certos filmes que, desculpem o trocadilho, tornam-se difíceis de engolir. Nos dias de hoje, quando qualquer crítica ao excesso de peso é logo taxado de gordofobia, como será que o filme de Spurlock seria analisado?

discurso identitário hegemônico atual impôs uma nova relação com os corpos. Se "Super size me" fosse lançado hoje, Spurlock seria acusado de "medicalizar corpos dissonantes".

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Spurlock teve "Super size me" como seu grande blockbuster, mas outros filmes merecem atenção. Em 2007 ele produziu "What would Jesus buy?" [O que Jesus compraria?], uma crítica ao consumismo americano. Em 2012 ele dirigiu "Mansome", sobre as novas formas de masculinidade do século XXI.

Mais do que uma crítica a um corpo específico, Spurlock fazia a análise crítica de um corpo social, a sociedade americana. Hoje seu discurso sanitarista seria considerado fora de moda e talvez até cancelado.

Em um mundo onde todos têm uma microcausa muito justa, as grandes pautas perderam o sentido. Ronald McDonald ganhou.


Como a 'tecnologia' do filtro de barro está ajudando a combater o calor extremo, FSP BBC News

 Kamala Thiagarajan

BBC FUTURE

Nandita Iyer odeia água gelada. E, no entanto, quando as temperaturas dispararam na Índia em maio deste ano, até mesmo na sua cidade natal, Bengaluru, atingindo um recorde, a autora do livro de receitas e blogueira de culinária sabia que precisava fazer algo para se manter hidratada.

Foi então que ela recorreu a um dos seus acessórios favoritos na infância: o matka – um pote de barro composto por dois tipos diferentes de argila e projetado para funcionar como bebedouro em casa.

"Tenho dentes sensíveis, então beber água refrigerada é um choque para o meu sistema; o matka mantém a água fria o suficiente para que bebê-la seja reconfortante", diz ela, lembrando como um pano de musselina molhado em cima do pote ajudou a diminuir ainda mais a temperatura da água.

"Lembrei como essa água naturalmente gelada era agradável nos verões quentes de Mumbai quando eu era criança, então, quando o clima de Bengaluru começou a se comportar como o de Mumbai, decidi comprar um pote semelhante.

Um homem indiano cuidadosamente arranja uma coleção de potes de barro tradicionais, exibindo a beleza e a simplicidade da cerâmica artesanal. Os potes apresentam desenhos geométricos e linhas onduladas, com tampas arredondadas e torneirinhas brancas.
Durante milênios, potes de barro conhecidos como “matkas” foram usados ​​para resfriar água na Índia. - Getty Images

A matka tem raízes antigas. Quando a água enche o pote de barro, ela penetra em todos os poros e fendas. À medida que a água presa dentro desses poros evapora, o processo retira lentamente o calor latente da água interna. O pote esfria depois de perder o calor por evaporação e assim a água restante dentro dela também esfria.

Durante séculos, portanto, as zonas rurais da Índia recorreram a potes de barro para as suas necessidades de arrefecimento – com os primeiros registos conhecidos a remontarem à civilização Harappa, há mais de 3.000 anos. No Brasil, os filtros de barro são uma tradição nas cozinhas, sendo usados até hoje para estocar água limpa e fresca.

Como alguém que cozinha muito e autora do livro Everyday Superfoods ("Superalimentos no dia a dia", em tradução livre) Iyer diz que quase não há espaço em sua geladeira para resfriar várias garrafas de água, então sua matka acaba economizando um espaço precioso também.

Um pote de barro sobre um balcão. O objeto está coberto por um manto vermelho. Ao fundo, uma garrafa de vidro e um recipiente de madeira.
Potes de barro conhecidos como 'matkas' são usados ​​para resfriar água na Índia. - Nandita Iyer

Mas nos últimos anos, à medida que a Índia enfrenta um calor extremo, a necessidade de frio se torna mais urgente. As ondas de calor na Índia neste verão foram implacáveis, com uma estação meteorológica em Delhi registrando temperaturas de até 52,3°C, o que pode ser um recorde, se confirmada. De 2019 a 2023, a necessidade de ar condicionado em dias muito quentes fez com que a demanda média de energia do país aumentasse 28%.

Com soluções de refrigeração agora vitais para a sobrevivência, a antiga aplicação do barro está encontrando um novo uso muito além das cozinhas domésticas

VIDA NOVA PARA UMA TECNOLOGIA ANTIGA

Terracota significa "terra cozida" em italiano e teve destaque no mundo antigo, desde a cerâmica chinesa e grega até a arte egípcia. Em português, é o nome dado à argila cozida no forno. Em 2014, Monish Siripurapu, fundador e principal arquiteto da CoolAnt, parte do Ant Studios perto de Nova Delhi, se viu recorrendo a esse material antigo com novos olhos.

Um de seus clientes, um fabricante de eletrônicos, teve um problema. Um gerador a diesel nas suas instalações expelia tanto ar quente no espaço entre dois edifícios que o calor era insuportável para os funcionários, causando dores de cabeça e náuseas. Siripurapu queria ver se a terracota, combinada com novas técnicas, poderia ajudar: "Mantendo a natureza como foco central em todo o meu trabalho, quis explorar tecnologias emergentes".

A ideia do matka passou pela cabeça de Siripurapu. "A água no pote de barro é naturalmente fria porque, quando evapora, suga o calor do pote. Mas e se eu invertesse esse processo? Me ocorreu que poderíamos resfriar o ar ao redor do barro da mesma maneira", ele diz. No projeto do Siripurapu, a água reciclada é bombeada sobre a terracota. À medida que a água evapora de dentro dos poros do barro, ela esfria o ar ao seu redor.

Chamado de Beehive, entre 800 e 900 cones de barro foram feitos à mão e organizados pela CoolAnt em um design de favos de mel, montado em torno de uma estrutura de aço inoxidável. "Empilhar os cones como uma colmeia melhora a área de superfície necessária para um resfriamento eficaz", diz Siripurapu.

Desde a sua primeira instalação em colmeias, a empresa criou 35 torres de resfriamento em escolas, espaços públicos, aeroportos e edifícios comerciais em todo o país, de Pune a Jaipur. Além do desenho da colmeia, eles também experimentaram designs que empilham o barro em diferentes formatos, e até mesmo um que não utiliza água.

Um trabalhador indiano verifica a qualidade de tubos de cerâmica empilhados.
O design Beehive, da CoolAnt, é baseado nos princípios do resfriamento por evaporação e ventilação natural - Ant Studio

Os pesquisadores também fizeram experiências com protótipos de resfriamento de barro. Estudantes de engenharia mecânica de Maharashtra, na Índia, construíram um ar condicionado de barro, que usava um ventilador para sugar o ar e expulsá-lo sobre a argila molhada. Isso resultou em uma queda de 1,5°C na temperatura ambiente, relataram.

As empresas de arquitetura na Índia afirmam que as suas instalações em barro produziram quedas de temperatura muito mais significativas – acima dos 6ºC, e podem arrefecer espaços exteriores e edifícios inteiros de forma mais natural.

Por meio de vídeos enviados por clientes e visitas ao local, a CoolAnt afirma ter registrado uma queda de até 15°C, usando designs como o Beehive. "Foi muito melhor do que esperávamos", diz Siripurapu. No entanto, essa queda na temperatura depende das temperaturas do bulbo úmido de uma área (uma medida do calor e da umidade na atmosfera).

Se já estiver muito úmido, não pode haver uma queda tão acentuada, porque o potencial de evaporação é menor, observa Siripurapu. (Pense no céu sobre uma cidade como uma esponja molhada – se já houver água demais, não é possível absorver mais água.) E, no entanto, mesmo uma queda de alguns graus na temperatura pode fazer uma diferença crucial.

EDIFÍCIOS QUE RESPIRAM

O Ant Studio também está longe de ser a única empresa de arquitetura que utiliza o barro como solução de resfriamento.

"Nos últimos 100 anos, as tecnologias modernas revolucionaram o nosso arrefecimento do ar. No entanto, tiveram um impacto negativo no nosso ambiente", afirma Avinash Ankalge, arquiteto e um dos co-fundadores do A Threshold, um escritório de arquitetura com sede em Bengaluru que tem experimentando argila reciclada para construir sistemas de refrigeração passivos para edifícios.

"Estamos recorrendo ao barro em muitos dos nossos projetos recentes", diz Ankalge. "Nós usamos isso de muitas maneiras." Por exemplo, telhas recuperadas de uma fábrica próxima foram usadas para criar telas de terracota. Os designs são inspirados na natureza e envolvem os edifícios como uma pele protetora, diz ele.

Em um edifício comercial no sul de Bengaluru, um dos projetos do A Threshold para espécie de treliça de barro foi instalado no lado sul do edifício, para proteger do sol.

"Entre o meio dia e as três da tarde, quando o sol está mais intenso, a sombra do ladrilho superior é projetada sobre o fundo, garantindo que o brilho não penetre no edifício", diz Ankalge. "Chamamos isso de princípio de sombreamento mútuo. Isso foi usado em muitas cidades indianas mais antigas no Rajastão - especialmente em Jaipur e Jaisalmer. Foi usado em casas, palácios, em todos os lugares - há quase 500 anos."

Um edifício coberto de vegetação destaca-se entre as construções urbanas, oferecendo um contraste verdejante em meio à paisagem de concreto e tijolos da cidade.
Argila reciclada de telhas antigas foi reaproveitada para fazer telas para edifícios - A Threshold / Avinash Ank Alge, Harshith Nayak

Em projetos modernos que utilizam este princípio, o edifício principal começa de 91 a 121 cm depois da tela de barro. Os ladrilhos estão dispostos como o bico aberto de um pássaro, o de cima projetando sombras profundas. Um sistema de sprinklers – como aqueles que são ativados em prédios em casos de incêndio, para jorrar água – suspenso, programado para funcionar nos horários mais quentes do dia, garante o resfriamento evaporativo.

"A terracota, sendo um material natural, é sempre dominada pela vegetação, o que tem um efeito refrescante adicional. Ela sustenta a vida e uma biodiversidade saudável. Ainda há muita luz fluindo dentro de casa, mas não calor", diz Ankalge. "Estamos criando um microclima dentro de uma casa – e moderando o calor extremo lá fora. É também uma tela acústica, porque corta o ruído externo e proporciona privacidade aos ocupantes.".

Em uma fazenda a 40 km de Bengaluru, o escritório A Threshold fez experiências com tijolos de barro como alternativa aos tijolos normais para resfriamento. São mais baratos e melhores para o meio ambiente, diz Ankalge. Os tijolos de terracota assam entre 600 e 700°C, metade das temperaturas necessárias para assar tijolos normais, e observaram uma queda de temperatura de 5-8°C dentro dos edifícios resultantes.

INSIGHTS ARTESANAIS

Na sua missão de refrescar os espaços, os escritórios de arquitetura também contam com a ajuda dos artesãos de argila indígenas da Índia.

Um deles é Dolan Kundu Mondal, que mora em Calcutá e cuja obra de arte em argila ganhou um prêmio nacional. Quando criança, Mondal passava os dias coletando argila na margem do rio para moldar pequenas bonecas, animais, pássaros e cabanas. A casa dela também foi construída com barro, mas sem nenhuma impermeabilização, então a cada temporal, a casa ficava completamente destruída. "Minha avó, minha irmã mais velha e eu cortávamos pedaços de palha para misturar no barro e reconstruíamos a casa para morarmos."

Mondal diz que sempre sonhou em esculpir algo novo com argila e recentemente recebeu uma oferta para trabalhar em uma tela de terracota para uma casa. "Desde muito cedo sempre vivi no abraço do barro e do barro no meu abraço", diz Mondal.

Uma mulher com óculos e uma blusa estampada azul e branca está de pé ao lado de uma prateleira de despensa, segurando uma peça de cerâmica redonda.
Os conhecimentos da premiada artista de argila, Dolon Kundu, estão servindo também para a produção das estruturas de resfriamento. - Memeraki

Soumen Maity, vice-presidente de alternativas de desenvolvimento, um think tank com sede em Gurugram, no norte da Índia, diz que é animador que as construções em barro proporcionem meios de subsistência aos artesãos rurais – mas existem algumas desvantagens.

As estruturas adicionais de argila nos edifícios – como telas e painéis – podem ocupar muito espaço em cidades já apertadas. Além disso, a eficiência do resfriamento pode diminuir com o tempo: os microporos do barro podem ficar obstruídos por depósitos minerais, tornando essenciais a limpeza e a manutenção meticulosa.

Se a argila for usada mais amplamente como material de construção e fabricada em escala nas fábricas, então também poderá haver outro custo oculto: mais energia necessária para o transporte, aponta Niyati Gupta, associado sênior em Nova Delhi do programa climático do think tank Instituto de Recursos Mundiais.

"As telhas de barro industriais tendem a ser mais pesadas do que os tijolos de argila convencionais que os artesãos fabricam à mão, e consumirão solo fértil [que de outra forma poderia ser usado para a agricultura]", diz Gupta. Ladrilhos de barro fabricados localmente e cozidos no local oferecem uma solução mais ecológica, mas à medida que as necessidades de resfriamento aumentam, a produção em escala industrial pode ser inevitável.

Para quem não tem planos de construção, armazenar água em uma simples matka continua a ser algo básico no verão da Índia – uma homenagem ao antigo costume.

Nandita Iyer menciona em seu livro Everyday Superfoods como potes de barro são usados na culinária e que garrafas de barro de um litro com tampa agora também são usadas para armazenar água.

Para manter as garrafas de água de barro em boas condições, Iyer aconselha: "Esfregue bem [os utensílios de barro] a cada dois ou três dias com uma escova de coco e coloque-os ao ar livre, ao sol, para evitar que acumulem musgo"

Esta reportagem foi publicada originalmente em inglês no site BBC Future.