terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

O ministro que prometia, editorial Estadão

 Já entrou para o anedotário da política nacional a capacidade do ministro da Economia, Paulo Guedes, de fazer promessas grandiosas e também sua incapacidade de cumpri-las. A “revolução liberal” anunciada por Guedes desde a campanha eleitoral de 2018 não chegou nem ao ensaio geral – a ponto de alguns dos expoentes da vanguarda revolucionária do ministro terem deixado o governo, frustrados com a prevalência da parolagem sobre a ação. Nada disso parece desanimar o ministro, que agora aposta suas fichas no novo comando do Congresso para destravar sua agenda.

O governo, seja por meio de Paulo Guedes, seja pela voz do próprio presidente Jair Bolsonaro, atribuía ao deputado Rodrigo Maia, até ontem presidente da Câmara, o atraso na tramitação das reformas. Removido esse alegado obstáculo, a expectativa da equipe econômica, segundo noticiou o Estado, é que os projetos deslanchem.

Nada mais falso. A Câmara sob a presidência de Rodrigo Maia apresentou uma notável feição liberal. Havia genuína disposição para tocar adiante não somente as propostas de reformas espinhosas, como a tributária e a administrativa, mas também a privatização de estatais importantes, como a Eletrobrás. Pode-se dizer que, para um governo que se dizia liberal, era uma chance de ouro.

Como se sabe, a chance foi desperdiçada, e nada garante que a nova direção da Câmara terá a mesma disposição demonstrada por Rodrigo Maia. Ainda que o sucessor de Maia se apresente disposto a tocar a agenda liberal, contudo, o problema principal permanece: é Jair Bolsonaro quem não quer nem reformas nem privatizações.

Por mais habilidoso que o ministro da Economia seja – e ainda esperamos que ele revele ter essa qualidade –, reformas constitucionais não deslancham se o presidente da República não se envolve pessoalmente na articulação para aprová-las. Jair Bolsonaro, ao contrário, muitas vezes age como oposição, e nisso é mais competente do que a maioria de seus opositores jamais será.

Antes da eleição para o comando da Câmara, o presidente dizia apostar que a nova direção, se alinhada ao governo, ajudaria a “destravar a pauta” de interesse do Palácio do Planalto. Para os que acreditam nas promessas de Paulo Guedes, isso significa o avanço dos projetos que, ao modernizar o Estado e o sistema tributário, farão o País superar a profunda crise que já se avizinhava mesmo antes da pandemia de covid-19; para quem tem um pouco de bom senso e jamais se deixou enfeitiçar pelas falsas juras liberais bolsonaristas, no entanto, isso significa dar impulso à agenda “conservadora” que Bolsonaro prometeu a seus devotos.

Ou seja, Bolsonaro, como sempre, só se interessa por aquilo que tem potencial eleitoral e que nem de longe deveria ser prioridade neste momento tão grave da história nacional. O presidente se anima quando fala em facilitar a compra de armas pela população, em acabar com o “comunismo” nas escolas e em combater a “ideologia de gênero” na cultura. Mas, quando é chamado a liderar o País no enfrentamento da pandemia e da crise econômica e social, Bolsonaro lava as mãos e repele a responsabilidade intrínseca ao exercício da chefia do governo.

Milhões de compatriotas estão à míngua, sem renda, mas Bolsonaro desestimula a discussão sobre um novo auxílio emergencial, porque, segundo diz, vai “quebrar o Brasil”. Nada oferece no lugar, pois nada tem a oferecer, a não ser bravatas e palavrões que excitam seus camisas pardas. Os brasileiros que se virem – para conter o coronavírus, para comer e para respirar.

Assim, mesmo que conte com a boa vontade da nova direção da Câmara, o ministro Paulo Guedes terá que demonstrar qualidades políticas até agora inéditas para conciliar a emergência nacional em razão da pandemia, a conta a pagar pelos votos nos candidatos governistas ao comando do Congresso e os impasses sobre o Orçamento, tudo isso em meio às sabotagens de Bolsonaro. Salvo um milagre, que, de uma hora para outra, ponha Bolsonaro e o Centrão a trabalhar pelo bem do País, restará à Nação continuar ouvindo promessas que não serão cumpridas.

Alvaro Costa e Silva A geosmina insiste em ser a musa do verão, FSP


"Ligaram o maçarico." É o mais irritante dos lugares-comuns do verão carioca. Não falha, sobretudo quando as temperaturas se mantêm acima dos 40 °C, sem dar trégua, e ouvimos aquela velha explicação: "Há uma massa de ar quente atuando na região, e a massa de ar frio não consegue avançar". Os termômetros da estação de Irajá, na zona norte, registraram a sensação térmica de 46,6 °C na semana passada.

Agentes da Cedae vistoriam o rio Guandu, em Seropédica (RJ) - Jose Lucena/Futura Press/Folhapress

A cidade tem sofrido tantas perdas, ao longo dos últimos anos, que até o calor virou motivo de orgulho. No caso de Bangu, na zona oeste, de orgulho ferido. Os moradores de lá não se conformam de terem perdido sua identidade, o título de bairro mais quente do Rio. O campeão agora é Irajá, que fica próximo à avenida Brasil, tem a superfície mais urbanizada (o que acumula energia solar) e poucas áreas verdes.

Imagine esse calorão de queimar o bestunto sem água para se refrescar. Só quem mora em bairros nobres da zona sul, por enquanto, está livre da seca nas bicas, torneiras e chuveiros. O problema voltou a ser crônico, como era em 1965, quando a cidade completou 400 anos, a marchinha "Lata D'Água" ("Lata d'água na cabeça/ Lá vai Maria, lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa"), de Luiz Antônio e Jota Júnior, lançada por Marlene no Carnaval de 1952, ainda fazia sucesso e a adutora do rio Guandu foi anunciada como "a maior obra do século". O lema da construção era: "Água até o ano 2000".

O prazo expirou faz duas décadas. A água hoje, quando chega, vem fervendo e, de novo, batizada com geosmina, que lhe altera o aspecto, o cheiro e o gosto. Nesse tempo, a Cedae virou um quintal de influência política —o último que desmandou na empresa, Pastor Everaldo, está preso, mas deixou toda uma escola de atuação.

O que não muda é a resposta das autoridades. Continuam a garantir que a população pode beber água podre na boa.

Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

 

Hélio Schwartsman Bolsonaristas deveriam revoltar-se, FSP

 Se eu (Deus me valha e guarde!) fosse bolsonarista, já estaria na rua quebrando tudo. É que há um limite para o número de vezes que uma pessoa pode deixar-se enganar sem comprometer a autoimagem. E, no caso dos admiradores do mito, esse limiar já ficou para trás em qualquer análise objetiva.

A cereja do bolo é o esforço bilionário do presidente de distribuir verbas e cargos entre congressistas para tentar assegurar aliados no comando da Câmara e do Senado. O próprio Bolsonaro, durante a campanha, dizia que o presidente que troca cargos por apoio no Parlamento merece o impeachment (declaração de 27 de outubro de 2018). E quem é um bolsonarista para discordar de Bolsonaro?

Não foi só na antipolítica que o ex-militar cuspiu em seu eleitorado. Ele também o fez em relação à pauta anticorrupção (foi Bolsonaro, não Temer, quem enterrou a Lava Jato) e à agenda econômica liberal (cadê o R$ 1 trilhão em privatizações?) para ficarmos só nos grandes temas.

Figurativamente, alguns grupos de bolsonaristas já começaram a quebrar tudo. É o caso da molecada do MBL, que passou recentemente a defender o impeachment.

Como não sou bolsonarista, não me sinto traído. Não posso nem dizer que tenha ficado surpreso com a quebra de promessas. Quem acreditou que o rei dos esquemas de baixo clero da Câmara (Wal do açaí, apartamento funcional "para comer gente") iria atuar contra a corrupção o fez por conta e risco.

Devo, porém, confessar que estou dividido em relação à minha torcida. Em nome da decência, adoraria ver Bolsonaro impedido —e penso que iniciar o processo é um imperativo moral. Mas, para que o afastamento se torne uma hipótese realista, a economia e a pandemia precisariam piorar. A conta consequencialista, que faltam elementos para resolver, é se o Brasil perde mais com um agravamento agudo das condições econômicas e sanitárias ou com a permanência de Bolsonaro até 2022.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".