segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

A ameaça dos liberais trogloditas, Vinicius Mota, FSP

Não vem da esquerda brasileira, sem poder e com baixa mobilização, o desafio iminente à democracia representativa

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As redes sociais talvez tenham exposto e explorado, como nenhuma outra tecnologia na história, a propensão ao tribalismo arbitrário do ser humano.
A esquerda nos países democráticos defende a liberdade de estilos de vida, mas apoia intervencionismos na economia. Simpatiza com regimes estrangeiros autoritários que matam e reprimem em nome do igualitarismo econômico.
A direita, em contraponto, associa a militância pela livre iniciativa com pregações reacionárias nos costumes. No exterior, seus tiranos de predileção são os que esquartejam adversários, mas deixam rolar os negócios.
A ressurgência do nacionalismo de direita começa a embaralhar essas cartas. Ele toma da esquerda o discurso da intrusão no domínio econômico e o associa a seu programa de intolerância comportamental.
O que era uma simpatia algo exótica por autoritarismos de ultramar começa a ser adaptado para a política doméstica. Que tal um pouquinho menos de liberdade civil em troca de um pouquinho mais de crescimento aqui no nosso cercadinho?
Bolsonaro e Paulo Guedes em cerimônia de 300 dias do governo - Ueslei Marcelino/Reuters
O capeta não teria preparado uma emboscada tão poderosa contra a democracia representativa. O ardil convida a tribo do lado de lá a também passar a oferecer um pouco mais de igualdade econômica por um pouco menos de prerrogativas civis.
A molecada em algazarra na Faria Lima parece que já topou o primeiro pacto. Não vai tardar até que a rapaziada do outro lado passe a flertar com o segundo.
Para evitar essa catástrofe, os liberais consequentes precisam denunciar os trogloditas. Ainda na campanha, bem antes de citar o AI-5, Paulo Guedes sugerira um dispositivo de aprovação expressa de leis no Congresso. Não é de hoje que costeia o alambrado.
Não vem da esquerda, alijada do poder de Estado e com profundas dificuldades de mobilização, o perigo iminente contra a democracia representativa no Brasil. Quem não enxerga isso está lutando a guerra do passado.
Vinicius Mota
Secretário de Redação da Folha, foi editor de Opinião. É mestre em sociologia pela USP.

Coquetelaria bossa nova, Ruy Castro, FSP

O que Tom, Vinicius, Baden, João Gilberto e outros gostavam de beber -ou não

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Hotéis, restaurantes e bares de luxo do Rio prometem uma atração para este verão: a Coquetelaria Bossa Nova. Consiste de drinques e coquetéis com combinações insólitas, criadas por bartenders cheios de truques e triques. Há uma caipirinha com infusão de louro em cachaça de bálsamo. Há um gim com, idem, infusão de abacaxi grelhado e chá verde com arroz torrado. E há um single smoke com uísque defumado e também infusionado com amoras. 
Ao ler isso, perguntei-me o que a turma original da bossa nova acharia de tanta infusão e amoras. Tom Jobim, por exemplo, até os 30 anos dedicou-se à cerveja e ao chope. Já o poeta e diplomata Vinicius de Moraes era um homem do uísque, que ele chamava de melhor amigo do homem --"O uísque é o cachorro engarrafado", dizia. Quando eles se conheceram, em 1956, Tom se deixou converter por Vinicius à seita do malte. Mas nunca dispensou o chope e a cerveja. Apenas acrescentou o uísque à sua dieta. 
Outro parceiro de Vinicius, Baden Powell, era decididamente fã da Escócia. Decididamente até demais. Os cerca de 30 sambas que eles fizeram juntos, entre os quais "Apelo" e "Berimbau", devem ter-lhes custado um navio de uísque. Newton Mendonça, parceiro de Tom em "Desafinado" e "Samba de uma Nota Só", morreu fiel ao conhaque Georges Aubert. E Ronaldo Bôscoli, letrista de "O Barquinho", ainda tomava nos anos 70 um drinque típico dos anos 50: cuba libre --rum com Coca-Cola. Devia ser o último homem na Terra a tomar cuba libre. 
Em compensação, o álcool nunca disse nada a Carlinhos Lyra, Nara Leão, Marcos Valle e menos ainda a Roberto Menescal, devoto do milk shake e demais derivados do leite. E João Gilberto, como se sabe, só beberia alguma coisa se ela viesse enrolada em papel de seda. 
A bossa nova, em matéria de coquetelaria, era básica. Produziu apenas grande música.
Vinícius de Moraes com seu 'cachorro engarrafado', em 1975 - Acervo UH/Folhapress
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Lei de deputado beneficia empresa da qual é sócio, OESP

Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo
02 de dezembro de 2019 | 05h00

Uma lei de autoria do líder do governo na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), deputado Carlão Pignatari (PSDB), beneficiou uma empresa da qual ele é acionista e prejudicou um laboratório público estadual que integra o Hospital das Clínicas (HC). Com uma mudança na Política Estadual de Medicamentos, a lei praticamente impediu o governo de vender um sofisticado produto hospitalar para entidades filantrópicas, e assim eliminou o principal concorrente da companhia da qual o deputado é investidor.
Carlão Pignatari
O deputado estadual Carlão Pignatari, do PSDB. Foto: Nilton Fukuda / Estadão
De acordo com sua declaração de renda, Carlão tem R$ 625,6 mil em ações da Indústria Brasileira de Farmoquímicos (IBF), com sede em São José do Rio Preto (SP). Em 2011, ele chegou a presidir uma assembleia-geral de constituição da empresa, com presença de todos os acionistas fundadores.
A IBF é um dos três laboratórios paulistas com registro na Anvisa para fabricar o produto FDG (18 F), essencial para o exame PET-CT – tomografia usada no diagnóstico de câncer. Hoje, no entanto, o mercado desse insumo no Estado é disputado apenas pela IBF e pela Cyclobras, de Campinas. A mudança na legislação barrou as vendas do FDG pelo Instituto de Radiologia (InRad) do HC, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Com produção própria, o instituto comercializava sobras que não eram usadas internamente no hospital. A receita das vendas bancava a produção e uma série de pesquisas científicas em medicina nuclear.
“Para fazer uma ou 100 doses, é o mesmo custo”, diz o diretor executivo do InRad, Marco Bego. “Não tinha nenhum custo para a rede pública, nem para o HC. Era uma das poucas áreas do HC que só dependiam da sua operação.” O InRad vendia o insumo para 12 hospitais filantrópicos da capital – entre eles as principais instituições da cidade, como o Albert Einstein, o Sírio-Libanês e o Oswaldo Cruz. A venda para entidades particulares era feita por meio da Fundação para o Remédio Popular (Furp), ligada à Secretaria Estadual de Saúde. Essa possibilidade estava prevista na Política Estadual de Medicamentos.
A lei proposta por Carlão restringiu a venda do governo para entidades filantrópicas apenas “para uso exclusivo no diagnóstico ou tratamento de pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde”. Na prática, os hospitais não conseguem separar o produto só para pacientes do SUS. Cada frasco de FDG, que dura poucas horas de exame, é usado diretamente nos equipamentos que fazem a tomografia, e ali são atendidos tanto pacientes do sistema público quanto clientes de planos particulares. Isso resultou na suspensão das compras de todos os hospitais conveniados com o InRad. 
O corte de receitas levou o HC a cogitar o fechamento do centro de pesquisas, que teve investimento público de R$ 7,7 milhões para sua construção há cerca de dez anos. Até a alteração, o laboratório não precisava de aporte do governo. A receita do InRad com a venda das sobras do FDG era estimada em R$ 700 mil por mês, o suficiente para cobrir os custos da equipe e da manutenção e investir em pesquisas.
Suspensão. A Cyclobras, única concorrente da IBF após a edição da lei, chegou a ter a venda do produto suspensa em outubro pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que regula a produção de produtos radiofármacos no País. Durante seis dias, enquanto durou a suspensão, a IBF se tornou a única fornecedora do insumo em todo o Estado de São Paulo. Procurada pela reportagem, a CNEN não respondeu sobre os motivos para a suspensão.
Ao Estado, a secretaria de Saúde disse que não identificou nenhuma outra consequência da lei para a rede pública. Os prejuízos ficaram restritos ao HC.
Ao longo deste ano, Carlão compareceu a várias sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a Furp na Alesp, apesar de não ser membro efetivo da CPI. O governador João Doria (PSDB) já declarou que tem a intenção de repassar as fábricas da fundação para a iniciativa privada.
Após tramitar como projeto de lei, a proposta do deputado foi vetada em 2017 pelo então governador Geraldo Alckmin. O governo alegava que a medida era inconstitucional, pois criaria desigualdade no acesso aos medicamentos, e que a política do SUS “é regida pelo princípio da universalidade, que garante pleno acesso aos serviços de saúde estatais, não sendo lícito fazer qualquer tipo de distinção entre seus usuários”.
O texto tramitou por mais de um ano e meio na Alesp até o veto ser derrubado. O projeto foi incluído em um pacote votado em sessão extraordinária, em dezembro de 2018, na chamada “janela do fim de ano”.
Fontes de hospitais particulares estimam que, desde então, o preço do FDG já subiu cerca de 15%. O produto custa cerca de R$ 700 por exame. Considerados apenas os principais hospitais filantrópicos da capital, há uma demanda de ao menos mil exames PET-CT ao mês.
Para esses hospitais, não só o custo do produto ficou mais elevado como é necessário comprar em maior quantidade dos laboratórios IBF e Cyclobras, localizados no interior paulista. Isso porque o FDG, como qualquer produto de medicina nuclear, é altamente perecível. A substância perde metade da sua radiação em cerca de duas horas – é a chamada “meia vida”. O InRad tinha a vantagem de estar localizado na capital, onde há a maior concentração de exames PET-CT no País, e a poucos quilômetros dos principais hospitais paulistanos.
O FDG é fabricado com um acelerador de partículas, chamado cíclotron, próprio para a produção de insumos da medicina nuclear. Desde que a lei impediu a venda, o InRad tem de se manter com o dinheiro do faturamento em anos anteriores. As reservas devem durar até fevereiro. “Ou a gente fecha o cíclotron e começa a comprar FDG para o HC e para as pesquisas em andamento, ou a gente arranja alguma forma de voltar à operação original, autossustentável”, disse Marco Bego, da Inrad.

Para deputado, lei não afeta instituto do HC

Procurado, o deputado Carlão Pignatari (PSDB) não quis comentar sobre o fato de ser acionista da IBF. Por meio de nota, limitou-se a dizer que “a lei em questão não proíbe o Instituto de Radiologia de vender 18F-FDG aos hospitais filantrópicos de SP, como o Einstein, Sírio-Libanês e HCor; sequer trata dos negócios do InRad (do HC)”.
O deputado afirmou ainda que “tratar a questão dessa forma confunde os leitores do jornal com uma informação inverídica e tendenciosa. Nem mesmo a Furp produz o 18F-FDG.”  “A medida legislativa foi estabelecer que um órgão público como a Furp deve se dedicar, prioritariamente, ou mesmo, exclusivamente, à saúde pública, aos pacientes do SUS, principalmente àqueles que não têm recursos para pagar do próprio bolso ou convênios médicos”, disse Carlão.