domingo, 3 de novembro de 2013

Rádios AM devem migrar para faixa FM


Decreto autorizando mudança será assinado na quinta-feira; migração é opcional, mas, para governo, maior parte das emissoras fará a troca

02 de novembro de 2013 | 18h 35

Anna Carolina Papp, Andreza Matais e Leonêncio Nossa, de Estado de S. Paulo
SÃO PAULO e BRASÍLIA / O Dia do Radialista, comemorado no dia 7 de novembro, terá este ano um sabor especial. Nessa data, a presidente Dilma Rousseff vai receber donos de rádios no Palácio do Planalto para assinar o decreto que permite às emissoras AM migrar para a faixa FM, atendendo a uma demanda antiga do setor.
A mudança, que será opcional, tem por objetivo dar um novo fôlego às rádios AM, prejudicadas com o aumento de ruídos e muitas interferências em suas transmissões. Enquanto isso, as rádios FM, que desde os anos 80 sempre tiveram maior aceitação entre os públicos mais jovens, passaram a ganhar mais espaço. Mesmo sem o grande alcance das AM, as FM apresentam sinais mais limpos e também podem ser sintonizadas por dispositivos móveis.
"As emissoras de rádio AM vêm perdendo competitividade por causa da interferência no seu sinal. Essa é uma questão física: o meio de propagação desse tipo de onda é muito suscetível a ruídos, prédios, energia elétrica, barulho de carros", afirma Daniel Slaviero, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).
Para Hilton Alexandre, presidente da Associação de Emissoras de Rádio e TV do Estado do Rio de Janeiro (Aerj), "é uma questão de sobrevivência". "Há uma queda gradativa: os jovens não conhecem a AM nem a aceitam, porque a qualidade de áudio é muito ruim. E as pequenas emissoras estão sendo engolidas, porque não conseguem mais fazer audiência", afirma ele, que desde 2009 pleiteia a migração, juntamente com outros radiodifusores.
A mudança será possibilitada com a transferência de emissoras de TV do analógico para o digital. Os canais 5 e 6 VHF devem ficar vagos em 2015, quando a TV analógica for de fato desativada. Em cidades onde a faixa FM praticamente não comporta mais rádios, como em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, as emissoras AM serão alocadas nos canais de televisão recém desocupados, chamados de "faixa estendida". Onde o FM não estiver saturado, as rádios serão alocadas na própria faixa já existente.
Convertida para rádio, a frequência dos canais 5 e 6 da TV irá de 76 a 88 MHz, tornando-os "vizinhos" da atual faixa FM, que opera de 88 a 108 MHz (veja quadro). O novo espectro do FM obrigará a indústria a produzir aparelhos de rádio que consigam sintonizar a nova faixa. Por isso, diz o presidente da Abert, haverá um prazo de adaptação de cinco anos, em que o radiodifusor poderá realizar transmissão simultânea em AM e FM.
Neste primeiro momento, os canais desativados da AM não despertam interesse do governo ou do mercado. "Por enquanto, a faixa ficará sem uso, até desenvolvermos uma tecnologia para aproveitar esse espaço", diz o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. Ele afirma que foram feitos testes para averiguar se a digitalização, que já ocorre no FM, seria uma solução para os percalços do AM. No entanto, afirma, os resultados não foram satisfatórios. Novos testes, porém, ainda serão realizados, diz.
Custos. A mudança para o FM é opcional, porém onerosa. Os radiodifusores terão de pagar por uma nova outorga, de FM, o que será custoso. Além disso, terão de adquirir equipamentos condizentes com a nova tecnologia. "Será necessário comprar uma nova antena e um novo transmissor, o que vai ficar por volta de R$ 70 mil a R$ 80 mil", diz Slaviero. A Abert estima, apenas com os aparelhos, um gasto de R$ 115 milhões para o setor.
Também podem entrar na conta gastos logísticos, uma vez que, enquanto os transmissores de AM precisam estar alocados em um lugar plano, os de FM costumam ficar em lugares altos, como no topo de prédios. Os gastos de energia e manutenção, contudo, são bem menores em rádios FM.
Segundo a Abert e o Ministério das Comunicações, as rádios AM que optarem pela migração ocuparão na faixa FM um espaço correlato, sem perder potência. "Ela vai ter o mesmo alcance que tinha com o AM", diz o ministro, se referindo ao raio de abrangência principal da rádio, conforme estabelecido pela outorga.
Porém, as rádios perderão a amplitude geral de sua cobertura, uma vez que a AM tem um alcance maior que a FM. Uma rádio que opera na capital paulista pode, por exemplo, "pegar" no litoral, ainda que com sinal de baixa qualidade. "Se a emissora cobria dez municípios, dificilmente vai continuar assim", diz Ronald Siqueira, engenheiro da Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão (SET).

O culpado é o mordomo


Em 1979, muito antes da polêmica das biografias, Roberto Carlos censurou o livro de seu secretário

02 de novembro de 2013 | 16h 10

Jotabê Medeiros - O Estado de S. Paulo
Iê-iê-iê. Em 1967, quando tentou carreira artística, o Rei deu fé: ‘Esse é o Nichollas, mora!’ - Reprodução
Reprodução
Iê-iê-iê. Em 1967, quando tentou carreira artística, o Rei deu fé: ‘Esse é o Nichollas, mora!’
“Se alguém sofreu na mão do Roberto Carlos, esse cara sou eu”, diz, com um jeito solene, o escritor e psicoterapeuta Roberto Pinheiro Goldkorn. Logo em seguida, cai numa gargalhada: “Desculpe, não resisti”.

O desabrido bom-humor de Goldkorn, de 73 anos, é daquele tipo de sarro que tiramos de nós mesmos somente muito tempo após termos passado por uma situação trágica, um grande susto. O espirituoso autor best-seller de 14 livros de psicoterapia carrega um passado doloroso: ele foi o editor do lendárioO Rei e Eu (Ediplan Editora), o primeiro livro que o cantor Roberto Carlos recolheu das livrarias, em 1979. Era um livro de memórias do ex-mordomo de Roberto, Nichollas Mariano (codinome de José Mariano da Silva Filho), que trabalhou 11 anos com o cantor.

Não é uma história colorida como as calças pantalonas da Jovem Guarda. Em 1979, após dois anos de batalha judicial entre Roberto Carlos e o editor, com a vitória do primeiro, o livro foi apreendido na gráfica antes mesmo de ser distribuído. “Num domingo de manhã, quatro ou cinco oficiais de Justiça, policiais e 11 advogados chegaram para levar os livros”, lembra Goldkorn.

Foi uma paulada. O livro era um investimento maciço do impulsivo e ambicioso editor, que tinha 29 anos à época e mandara imprimir 70 mil exemplares. “Perdemos tudo: carro, casa, editora, dinheiro”, lembra Goldkorn, que hoje vive em Campinas (SP). Há 34 anos, por insistir em lutar para garantir a circulação do livro, Goldkorn ficou liso e sem perspectiva. Pior: viu-se obrigado a se esconder da polícia.

Já o autor, Nichollas Mariano, foi condenado a 1 ano e meio de prisão no desfecho do caso. Não foi para a cadeia porque era réu primário. A última vez que se viram, autor e editor, foi há mais de dez anos. “Ele vivia num subúrbio do Rio, estava muito mal de saúde e na miséria. Nunca mais nos vimos desde então. Deve estar por lá ainda, em algum subúrbio distante”, conta Goldkorn.

Mariano teria hoje 68 anos, caso esteja em circulação. “Ele era ‘semianarfa’, fui o ghost writer do livro. Quando vi o calhamaço de anotações dele, quase incompreensíveis, tive de reescrever tudo. Censurei muito o livro, tive de pinçar várias coisas muito pesadas. Eu pensava: se eu fosse o Roberto Carlos, iria me rasgar quando lesse isso aqui”, afirma o ex-editor.

Roberto Carlos e Nichollas Mariano se conheceram na Rádio Carioca, no Rio, em 1960. Mariano era disc-jóquei da emissora e tinha se apaixonado pela música do artista. Tocava Roberto incessantemente. Um dia, Roberto foi à rádio e tornaram-se amigos. Mais tarde, por (conta-se) sugestão de Erasmo Carlos, o artista o levou para trabalhar consigo (e o transformou inclusive em seu procurador). Tentou também transformá-lo num ídolo da Jovem Guarda, mas não deu certo - Roberto Carlos escreveu a contracapa de Não Adianta Nada, um compacto simples que Mariano lançou, sem sucesso, em 1967.

“Esse é o Nichollas, mora! O jovem promete muito e sua voz transmite. Sua música vai ser a lenha! Ouçam com carinho e atenção esse primeiro compacto do meu amigo Nichollas. Vocês vão entrar na onda dele”, escreveu o ‘Rei’.

Mas, em 1971, a lenha virou carvão. Roberto teria sabido de comentários desairosos de Mariano a respeito de sua mulher na época, Nice, e o demitiu. Sem conseguir se readaptar ao mercado de trabalho, Mariano começou a escrever sobre sua experiência. O livro continha uma mensagem para o cantor: “Desculpe, amigo, se alguma coisa aqui não lhe agrade. Mas acho que fui, além de tudo, sincero e honesto. Para todos que o curtem sem o conhecer, para aqueles que veneram o ídolo, o semideus intocável, distante e material, projetado pela máquina, este livro só vai engrandecer a sua imagem, tornando-a mais humana, mais palpável, mais próxima”.

Nichollas Mariano (que, segundo reportagem antiga do Jornal da República, teria sido vendedor, técnico de futebol, gerente de boate e corretor) tinha sido amigo de Roberto desde os tempos das vacas magras, mas agora estava sozinho. Pôs seu manuscrito debaixo do braço e saiu procurando editora. Foi até a Editora Francisco Alves, mas o tipo de literatura que produziu não teria ali a menor chance. Ocorre que as anotações caíram na mão de Rosemary Alves, ex-mulher de Roberto Goldkorn, e ela lembrou que o ex-marido buscava algo estrepitoso para editar. Foi assim que o livro chegou às mãos da Ediplan.

Quando soube da intenção do ex-mordomo, Roberto Carlos enviou seus advogados para pedir uma cópia do livro. Queriam ler antes da publicação. Acontece que a Global Editora, alguns meses antes, tinha conseguido entrar, em plena ditadura, com uma ação contra a censura prévia. E ganhara. Foi uma ação histórica. “Quando o advogado ligou dizendo que queria ler o livro, eu até queria ceder. Mas meu advogado (Paulo Pires, na época) disse: ‘Nada disso, a censura acabou neste país. Isso aqui é a Constituição, e não há poder maior que isso. Não se pode mais impedir a publicação de nada’.”

Mas havia, como ainda há. “O livro é uma inverdade no seu todo”, disse Roberto Carlos à revista Veja, após entrar com ação na 26ª Vara Cível para pedir o embargo da venda e da distribuição do livro. Contra o mordomo, entrou com uma ação criminal na 9ª Vara Criminal de São Paulo. Venceria ambas.

Roberto Goldkorn (que foi preso três vezes na ditadura, torturado e integrou o MR-8) conta que tentou por todos os meios convencer Roberto Carlos de que a liberdade de expressão era mais importante, e no final das contas aquele era um livro elogioso. Procurou todos os artistas com quem Roberto tinha amizade na época. “Todos me viraram as costas. É impressionante o corporativismo dessa classe. A única que me recebeu foi a Wanderléa. Ela tentou interceder, mas voltou dizendo o seguinte: ‘Roberto odiou o livro’.”

Tentaram ainda ir atrás de uma outra amiga íntima de Roberto, a atriz Lady Francisco. Ela também não trouxe boas notícias do lado de lá. Ouviram de alguém que “Roberto disse que vocês vão ser esmagados como piolhos”. Os aventureiros da primeira biografia proibida descobririam que não era um bom negócio brigar com alguém da casa real brasileira.

O primeiro a sofrer retaliações foi Mariano. “Traidor, cuspindo no prato que comeu!”, vociferava alguém num dos dois telefonemas ameaçadores que ele recebeu. Outra pessoa dizia para ele cuidar bem dos dois filhos que tinha no Rio de Janeiro. A editora contratou um guarda-costas para acompanhá-lo.

Se os fãs de Roberto tinham razão em demonstrar tamanha ira soberana? Bom, Mariano realmente deu com a língua nos dentes além da conta. Contou sobre as aventuras sexuais do cantor, sobre seu gosto variado nesse quesito, e chegou a detalhar como, durante suas viagens, Roberto teria mandado reservar vários quartos em um mesmo hotel para, antes do espetáculo, fazer sessões de aquecimento com suas ocupantes. “Muitas vezes elas se ofereciam a mim primeiro, antes de chegar até ele”, afirmou Mariano.

Outras inconfidências do ex-mordomo (que o escritor Goldkorn acredita que era mais um roadie, e que a adoção dessa função veio como jogada de marketing, com currículo inventado e tudo) dão conta de que Roberto Carlos ganhava tanto dinheiro que costumava jogar sacos cheios de notas em cima de móveis. A Mariano era dada a incumbência de guardar. Uma vez, ele contou, achou um saco de dinheiro atrás do guarda-roupas - um apressado Roberto Carlos o teria atirado para o alto.

“Mas você nunca pegou nada para você?”, perguntou-lhe uma vez seu editor, ao que Mariano respondeu: “E para quê? Eu tinha tudo que precisava, nunca imaginava que um dia estaria passando necessidade”. Apesar de Roberto Carlos afirmar que só havia mentiras no livro, foi por meio dele que se soube, pela primeira vez, que o ‘Rei’ tivera um filho, Rafael, com uma fã, coisa que ele só admitiria em 1991.

Um rolo compressor judiciário atingiu a editora. O principal advogado de Roberto na causa era o ex-ministro da Justiça Saulo Ramos, que também venceu uma causa do cantor contra o jornal Notícias Populares nos anos 1990. Ainda assim, haveria resistência. Mesmo após a 26ª Vara Cível de São Paulo decidir pelo recolhimento do livro na gráfica. “O livro não traz escândalos e creio que no final vamos ser indenizados e agradecer a publicidade”, disse na ocasião o advogado da editora, Carlos Augusto Bambino Costa. Ele era o último de três advogados a levar adiante a causa - hoje, Bambino Costa vive em Macaé, no Rio.

Numa das audiências com o juiz encarregado do caso, o magistrado quis saber o que significava a palavra “transar” que tinha lido no livro. O advogado disse que derivava de “transacionar”, fazer uma troca com alguém. “Tá pensando que sou idiota? Não insulte minha inteligência”, retrucou o juiz.

“Tínhamos feito uma grande campanha na Rádio Globo para escolher o nome do livro, havia uma grande expectativa nos jornais. Lembro que tínhamos acumulado 50 kg de revistas e jornais que falavam do volume”, conta o escritor. “Quando se instaurou a confusão, o juiz decretou segredo de Justiça. Era uma piada: o juiz, antes mesmo de decidir, pediu um autógrafo de Roberto Carlos para a filha.”

O ex-editor decidiu optar pela via da desobediência civil. Imaginou que, como a decisão era local, poderia obter uma liminar para vender nas livrarias do Rio de Janeiro. Conseguiu. Conta que empenhou a aliança de ouro, emprestou de amigos, de bancos e mandou imprimir outros 15 mil exemplares. Enfiou boa parte deles numa kombi e foi para o Rio. “A gente estava morrendo de medo que a Polícia Rodoviária nos parasse. Era o equivalente a estar transportando drogas”, compara. Se fosse parado no Estado de São Paulo, iria em cana. Mas chegou ao Rio e distribuiu o material. O livro ficou três dias vendendo - o que explica os exemplares que ainda se acham à venda ainda hoje no Mercado Livre e outros sites, a preços que vão de R$ 250 a R$ 370.

Durou pouco a alegria. Após três dias, os advogados de Roberto Carlos pediram e a 4ª Vara Cível do Rio mandou recolher os livros. O editor não se conformava. Pegava 50 a 100 livros e um caixote de maçã, ia sozinho para a Avenida Rio Branco e vendia ali os exemplares. Vendeu até bastante, recorda-se, até que chegou uma ordem de prisão contra ele. Passou a se esconder até que seu advogado revogasse o pedido de prisão. Três delegacias o procuravam.

“Estávamos exauridos financeiramente. Não tínhamos mais forças, era uma luta contra uma montanha. Se você me perguntar como eu sobrevivi, direi: não me lembro”, diz o escritor. “Essa coisinha ré-ré-ré, humilde, do Roberto Carlos, não é sincera. Ele não tem pudor em exercer o poder”, diz Goldkorn.

Segundo contou o advogado Saulo Ramos no seu livro de memórias Código da Vida, os livros recolhidos foram incinerados no crematório da Prefeitura de São Paulo. “Era ainda a Constituição de 1967, uma legislação mais autoritária”, avalia o biógrafo Paulo Cesar Araújo. “Na época, a própria sociedade era mais tolerante com esse tipo de coisa. Soava mais natural proibir livros, por isso ele (Roberto Carlos) fez isso com tanta tranquilidade”.

O Rei e Eu virou lenda - Araújo conta que, para burlar a vigilância, chegou a ser reeditado com todos os nomes mudados, e lançado no mercado com o título de Eu Sou o Rei, assinado por Adelaide Carraro, a famosa autora de obras eróticas.

“Não se trata de censura, porque censura é mais universal, conceitual. Simplesmente o cara não quer que a vida dele seja exposta sem seu consentimento”, diz Goldkorn. “Por que essa história não é mais mencionada?”, pergunta o escritor, que responde. “Porque foi o primeiro caso, acontecido ainda na época da ditadura, quando as liberdades eram ainda muito atreladas à anuência dos militares”, considera.

Roberto Goldkorn experimenta hoje uma curiosa inversão de papéis. Ele ri com a comparação com a síndrome de Estocolmo. “Se você me pergunta de que lado eu fico nessa questão das biografias, não sei responder”, afirma. “Não tenho para mim uma definição. A liberdade de expressão não é um valor absoluto, ela também tem limites. Eu pergunto a você: se inventarem um aparelho capaz de projetar todos os seus pensamentos em praça pública, quanto tempo você duraria? Quanto tempo eu duraria como psicoterapeuta? Então, nós todos temos o direito de preservar algumas verdades.”

Pátria amada


Diego Costa jamais trairia seu bairro, sua rua, seu campinho, seus amigos. Porque patriotismo é o que ficou na infância - o resto são abstrações

02 de novembro de 2013 | 16h 36

Ugo Giorgetti*
A escolha de Diego. O gorducho Walter é bem melhor do que ele - Jorge Guerrero/AP
Jorge Guerrero/AP
A escolha de Diego. O gorducho Walter é bem melhor do que ele
Uma das coisas mais interessantes dessa pobre polêmica sobre o jogador que preferiu a seleção da Espanha à do Brasil é seu início. E ela começou quando Luiz Felipe Scolari foi vítima de uma brincadeira, eu diria de uma sacanagem de mais puro estilo brasileiro, levada a cabo por um jornalista espanhol que se fez passar por dirigente do Atlético de Madrid e nessa qualidade manteve uma conversa telefônica com nosso treinador. Do alto de seu ego, Felipão jamais supôs que seu interlocutor pudesse ser apenas um gaiato que resolvesse se divertir e, levando a farsa a sério, se desmanchou em razões para explicar que pretendia contar com Diego Costa para a Copa. E de quebra deu suas respostas numa língua estranhíssima com vestígios remotos de espanhol, revestido de forte sotaque gaúcho.

Essa seria, por todos os títulos, uma ligação telefônica que Felipão não gostaria que estivesse ao alcance do público. Não fez nenhum comentário a respeito do telefonema que eu tenha ouvido, mas, dado seu caráter não exatamente brincalhão, imagino que tenha ficado possesso quando soube que tinha sido alvo de uma piada. É isso, a meu ver, o que está na origem de tudo. Quando, por razões que não vêm nem ao caso, Diego Costa disse que preferia a Espanha, é possível que o ódio represado de Felipão tenha se voltado contra o jogador. É só uma impressão sem nenhuma comprovação prática. Mas creio que só ela explica seu destempero ao anunciar a recusa do jogador. Eu podia sentir que, enquanto falava da atitude pouco patriótica do Diego, pela sua cabeça desfilavam imagens do telefonema e talvez do jornalista espanhol ainda às gargalhadas. Não é assim que se fala com um pai de família! Muito menos com o pai da sagrada “família Scolari”. Com certas coisas não se brinca. 

Felipão, pelo menos, não parece ser do tipo que aceita brincadeira, principalmente quando o assunto é ele mesmo. E trata-se exatamente disso. Diego Costa não recusou o Brasil ou a seleção brasileira. Recusou Felipão. Ele não disse isso, mas esse bem pode ser o motivo. Por que não? Teria ele recusado se o treinador fosse Muricy ou Abel Braga? Nunca saberemos. Ele recusou um chamado de Felipão. E não se recusa um chamado de Felipão impunemente. O problema do patriotismo foi imediatamente colocado em pauta. E a questão foi desviada de Felipão para o Brasil. Inflamado de ardor cívico, onde só faltou subir numa cadeira e declamar Olavo Bilac, Felipão, expressões faciais e tom de voz adequados, quase viu crime de lesa-pátria na atitude de Diego Costa. Faltou acrescentar que em tempo de guerra isso dá em fuzilamento. E para muita gente uma copa não é guerra? 

A imprensa naturalmente deu destaque suficiente para que o fato se transformasse numa polêmica. Eu esperava com certa ansiedade que o jogador fosse acabar com a incipiente questão simplesmente não dando nenhuma explicação. Por que deveria ele explicar sua decisão? Mas o jogador acabou tentando se explicar e, pior, ele também entrou pelo viés do patriotismo. Diga-se de passagem, que a polêmica transcorreu entre jornalistas especializados. Duvido que ela tenha, de alguma forma, atingido os torcedores. Acho que a maioria do público brasileiro não tem a mínima ideia de quem é Diego Costa. E também, em razão da longa tradição de grandes centroavantes brasileiros, nem ficaria muito impressionado se o visse jogar. Nosso gorducho Walter é bem melhor do que ele, só para citar um jogador na moda. 

Fica então a questão do patriotismo. Ao contrário de palavras cujas definições são alcançadas na solidão dos estudos, na meditação solitária, raramente pronunciadas fora das salas de aula e do silêncio de bibliotecas, patriotismo é uma palavra, em geral, definida por gritos. Patriotismo é mais um brado, evocado no calor de alguma disputa, num gesto teatral, geralmente para fazer calar o oponente, ou provocar uma ação emocional. Não é mais do que um expediente para resolver uma disputa num momento vital, conseguir adeptos e, ao mesmo tempo, destruir o adversário. Passada a causa da disputa não se fala mais em patriotismo. Até que apareça uma nova oportunidade. Ou uma nova copa. Patriotismo é uma questão individual. Cada um, em verdade, tem o próprio patriotismo. O mais entranhado, a meu ver, é o que ficou na infância. 

Para Diego Costa, patriotismo talvez seja o que ele sentiu por abandonados campinhos de terra onde jogava bola com companheiros que ficaram por lá, na sua cidade. O terreno baldio era sua pátria perdida. Não por acaso sua atitude, ao preferir a Espanha, foi louvada praticamente pela totalidade dos habitantes de Lagarto, Sergipe. 

Diego Costa, tenho certeza, jamais trairia seu bairro, sua rua, sua cidade e seus amigos de infância. Fora isso, o que há são abstrações que cada um usa como quer e na hora que quer. Um grande escritor norte-americano, numa de suas obras mais vigorosas, escreveu: “Sou um patriota do 14º Distrito do Brooklyn, onde fui criado. O resto dos Estados Unidos não existe para mim, exceto como ideia, história, ou literatura”. 

*UGO GIORGETTI É CINEASTA E COLUNISTA DO ESTADO. DIRIGIU, ENTRE OUTROS FILMES, BOLEIROS - ERA UMA VEZ O FUTEBOL... (1988)