domingo, 3 de novembro de 2013

O neoliberal Bolsa Família - SUELY CALDAS


O Estado de S.Paulo - 03/11

A História se encarrega de juntar ideias e fatos, fazer justiça, costurar acontecimentos e narrar os fatos reais que a política tentou embaralhar, falsear e, por vezes, negar. Só que as duas - a História e a política - protagonizam tempos diferentes. Porque trabalha com o momento presente, a política não tem compromisso com a verdade e se aproveita do mais oportunista apelo do momento. A História trabalha com tempo mais longo, seu papel é recolocar em seus lugares ideias e fatos que a política falseou no passado e contar como se passou a verdade.

Entre o que o Partido dos Trabalhadores (PT) pregou antes e praticou depois que assumiu o poder, passou pouco mais de uma década. Tempo curto, do ponto de vista da História, mas a metamorfose foi tão rápida, flagrante e abrupta que precipitou a percepção da verdade.

O fato mais conhecido desse enredo foi a súbita apropriação da política macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso (excomungada e rotulada pelo PT de neoliberal) pelo ex-presidente Lula desde o primeiro dia de seu governo, em 2003. Mas há outros, e vou tratar aqui de três: a privatização, a autonomia do Banco Central (BC) e o programa Bolsa Família. Os três foram gerados em ventres liberais, experimentados e aprovados mundo afora e viraram políticas universais de Estado em países democráticos.

Começando pelo programa Bolsa Família, que acaba de completar dez anos e foi comemorado pelo PT, por Lula e Dilma Rousseff com festa eleitoral. Quem ouve Lula falar imagina que partiram de sua cabeça a concepção e a criação do programa. E com a sua marca: nunca antes experimentado no mundo. O senador petista Eduardo Suplicy conhece e poderia contar ao amigo Lula sobre sua origem e autoria.

Nada nasce de um dia para o outro. A ideia de criar programas de transferência de renda nasceu nos anos 1960/1970 e seu autor foi o economista norte-americano Milton Friedman, o mais talentoso formulador do liberalismo econômico do século passado, criador da teoria monetarista e responsável pelo ideário liberal dos Chicago Boys - referência pejorativa da esquerda da época aos alunos seguidores de Friedman na Universidade de Chicago, onde ele lecionou por 30 anos. A partir dos anos 80, o Banco Mundial passou a recomendar programas de transferência de renda aos países pobres e em desenvolvimento, entre eles o Brasil.

Por aqui, os conselhos do Banco Mundial foram rechaçados pela esquerda (inclusive o PT), tratados como maldição. "Não se combate pobreza com esmola", indignavam-se os petistas. Contra essa maré sempre remou o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que desde os anos 80 defendia um programa de renda mínima universal - pobres e não pobres - e citava o liberal Milton Friedman em seus argumentos. Coerente, Suplicy apresentou o projeto ao Senado em 1991, que foi sancionado por Lula em 2004, mas nunca executado. Também em 1991 o economista da PUC-Rio José Marcio Camargo escreveu o texto Pobreza e garantia de renda mínima, apoiando o projeto de Suplicy, mas fechando o foco só nos mais pobres e acrescentando duas sugestões: excluir os idosos e restringir o acesso às famílias com crianças matriculadas na escola.

A ideia foi ganhando forma no início dos anos 90, em discussões de um grupo de economistas do Rio de Janeiro, entre eles Ricardo Paes de Barros, André Urani, Edward Amadeo e Ricardo Henriques (que no governo Lula ajudou a formatar o cadastro único), além de Camargo. Curiosamente, coube a um tucano (o prefeito de Campinas José Roberto Magalhães Teixeira) e a um petista (o governador de Brasília Cristovam Buarque, hoje no PDT) a primeira iniciativa - em 1995 - de criar um programa de transferência de renda no Brasil, que recebeu o nome de Bolsa Escola.

Em alcance nacional, foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quem primeiro implantou o programa - também com o nome de Bolsa Escola -, em 1998, focalizando nos mais pobres e criando duas exigências para as famílias terem acesso: comprovada frequência na escola e carteira de vacinação atualizada da criança. Na época, o PT foi contra e chamava o programa de "Bolsa Esmola". Em sua gestão, FHC também criou outros programas sociais, entre eles o Vale Gás e o Bolsa Alimentação.

O mérito de Lula foi unificar cadastros e concentrar todos os programas sociais de FHC em um único, que chamou de Bolsa Família. Lula e o PT não criaram nada e ainda abandonaram o Fome Zero - que conceberam para concorrer com o Bolsa Escola - e se apropriaram do programa que combateram em 1998. O mérito maior de Lula, no entanto, foi apostar no êxito do Bolsa Família como meio para reduzir a pobreza. Nos últimos dez anos, o número de famílias beneficiadas mais do que dobrou, saltando de 5 milhões, do fim do mandato de FHC, para 13,8 milhões, atualmente. E ajudou muito a tirar milhões de brasileiros da extrema pobreza e outros milhões a ascenderem à classe média.

Ao criar agora o Brasil sem Miséria, a meta de Dilma Rousseff é erradicar a miséria no País. A mesma meta que tinha o ultraliberal Milton Friedman quando concebeu os programas de transferência de renda há cinco décadas. É assim a História.

Privatização e BC. Diferentemente do Bolsa Família, a adesão de Lula, Dilma e do PT à privatização e à autonomia do Banco Central é envergonhada e incompleta. Menos ideológico do que Dilma, Lula respeitou o acordo feito com Henrique Meirelles e lhe deu autonomia de decisão no BC em seus oito anos de gestão. Mas na semana passada fez coro ao PT manifestando-se contra a autonomia em lei - ou porque não quer abrir mão do poder ou porque imagina usar isso como bandeira eleitoral.

Mais concentradora e ideológica, Dilma deu sucessivas mostras de que não pretende abrir mão da palavra final em política monetária. E, além de não ajudar, exagerando nos gastos (o déficit fiscal de setembro ultrapassou R$ 10 bilhões), deixa para a direção do Banco Central a solitária e inglória tarefa de controlar a inflação sem liberdade para manejar suas armas.

Quanto à privatização, os dois resistiram o quanto puderam. Lula por oportunismo político-eleitoral, Dilma por convicção ideológica. Mas ela foi obrigada a recuar por motivo simples e pragmático: precisa do capital privado para estimular crescimento e desenvolvimento.

Guinada à direita - ANTONIO PRATA

FOLHA DE SP - 03/11

Você, cidadão de bem: junte-se a mim nesta nova Marcha da Família com Deus pela Liberdade


Há uma década, escrevi um texto em que me definia como "meio intelectual, meio de esquerda". Não me arrependo. Era jovem e ignorante, vivia ainda enclausurado na primeira parte da célebre frase atribuída a Clemenceau, a Shaw e a Churchill, mas na verdade cunhada pelo próprio Senhor: "Um homem que não seja socialista aos 20 anos não tem coração; um homem que permaneça socialista aos 40 não tem cabeça". Agora que me aproximo dos 40, os cabelos rareiam e arejam-se as ideias, percebo que é chegado o momento de trocar as sístoles pelas sinapses.

Como todos sabem, vivemos num totalitarismo de esquerda. A rubra súcia domina o governo, as universidades, a mídia, a cúpula da CBF e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, na Câmara. O pensamento que se queira libertário não pode ser outra coisa, portanto, senão reacionário. E quem há de negar que é preciso reagir? Quando terroristas, gays, índios, quilombolas, vândalos, maconheiros e aborteiros tentam levar a nação para o abismo, ou os cidadãos de bem se unem, como na saudosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que nos salvou do comunismo e nos garantiu 20 anos de paz, ou nos preparemos para a barbárie.

Se é que a barbárie já não começou... Veja as cotas, por exemplo. Após anos dessa boquinha descolada pelos negros nas universidades, o que aconteceu? O branco encontra-se escanteado. Para todo lado que se olhe, da direção das empresas aos volantes dos SUVs, das mesas do Fasano à primeira classe dos aviões, o que encontramos? Negros ricos e despreparados caçoando da meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral.

Antes que me acusem de racista, digo que meu problema não é com os negros, mas com os privilégios das "minorias". Vejam os índios, por exemplo. Não fosse por eles, seríamos uma potência agrícola. O Centro-Oeste produziria soja suficiente para a China fazer tofus do tamanho da Groenlândia, encheríamos nossos cofres e financiaríamos inúmeros estádios padrão Fifa, mas, como você sabe, esses ágrafos, apoiados pelo poderosíssimo lobby dos antropólogos, transformaram toda nossa área cultivável numa enorme taba. Lá estão, agora, improdutivos e nus, catando piolho e tomando 51.

Contra o poder desmesurado dado a negros, índios, gays e mulheres (as feias, inclusive), sem falar nos ex-pobres, que agora possuem dinheiro para avacalhar, com sua ignorância, a cultura reconhecidamente letrada de nossas elites, nós, da direita, temos uma arma: o humor. A esquerda, contudo, sabe do poder libertário de uma piada de preto, de gorda, de baiano, por isso tenta nos calar com o cabresto do politicamente correto. Só não jogo a toalha e mudo de vez pro Texas por acreditar que neste espaço, pelo menos, eu ainda posso lutar contra esses absurdos.

Peço perdão aos antigos leitores, desde já, se minha nova persona não lhes agradar, mas no pé que as coisas estão é preciso não apenas ser reacionário, mas sê-lo de modo grosseiro, raivoso e estridente. Do contrário, seguiremos dominados pelo crioléu, pelas bichas, pelas feministas rançosas e por velhos intelectuais da USP, essa gentalha que, finalmente compreendi, é a culpada por sermos um dos países mais desiguais, mais injustos e violentos sobre a Terra. Me aguardem.




10/11/2013 - 03h00

Abaixo, a ironia


Ouvir o texto
Domingo passado, escrevi aqui uma crônica em que satirizava o discurso mais raivoso da direita brasileira.
Muita gente não entendeu: alguns se chocaram pensando que eu de fato acreditava que o problema do país era a suposta supremacia de negros, homossexuais, feministas, índios e o "poderosíssimo lobby dos antropólogos"; outros me chocaram, cumprimentando-me pela coragem (!) de apontar os verdadeiros culpados por nosso atraso. Volto ao tema para que não haja risco algum de eu estar reforçando as ideias nefastas que tentei ridicularizar.
Uma sátira é uma caricatura. Escolhemos certos traços de uma obra e produzimos outra, exagerando tais características. Narizes aparecem desproporcionalmente grandes, orelhas podem ser maiores que a cabeça, um bigode talvez chegue até o chão. É como se puséssemos uma lupa nos defeitos do original, a fim de expô-los.
Na crônica de domingo, achei que havia carregado o bastante nas tintas retrógradas para que a sátira ficasse evidente. Descrevi um quadro que, pensava eu, só poderia ser pintado por um paranoico delirante.
No país bisonho do meu texto, José Maria Marin e o pastor Marco Feliciano eram de esquerda, os brancos estavam escanteados por negros, que ocupavam a direção das empresas, as mesas do Fasano e os assentos de primeira classe dos aviões.
O Brasil (segundo maior exportador de soja do mundo) não era, na crônica, uma potência agrícola, por culpa das reservas indígenas. No fim, me levantava contra "as bichas" e "o crioléu". O texto não estava suficientemente descolado da realidade para que todos percebessem a impossibilidade de ser literal?
Talvez, infelizmente, não: fui menos grosseiro, violento e delirante na sátira do que muitos têm sido a sério. Poucos dias antes da crônica ser publicada, um vereador afirmou em discurso que os mendigos deveriam virar "ração pra peixe".
Com esse pano de fundo, ser "apenas" racista, machista, homo e demofóbico pode não soar absurdo. Quem se chocou achou o personagem equivocado, mas plausível. Quem me cumprimentou achou minha "análise" perfeitamente coerente.
Ora, só dá para concordar com o texto se você acreditar que as cotas criaram uma elite negra e oprimiram os brancos, acabando com a "meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral", se achar que os 20 anos de ditadura foram "20 anos de paz" e que é legítimo e bem-vindo levantar-se contra "as bichas" e "o crioléu".
Em "Hanna e Suas Irmãs", do Woody Allen, Lee, uma das irmãs, é casada com um intelectual rabugento chamado Frederick. Lá pelas tantas, o personagem assiste a um documentário sobre Auschwitz, em que o narrador indaga "como isso foi possível?".
Frederick bufa e resmunga: "A pergunta não é essa! Do jeito que as pessoas são, a pergunta é: como não acontece mais vezes?". Esta semana, diante dos e-mails elogiosos que recebi, a fala me voltou algumas vezes à memória: "Como não acontece mais vezes?". Vontade é o que não falta, por aí -e, infelizmente, não estou sendo irônico.

Uma oração para os vivos - MARTHA MEDEIROS ( essencial)

ZERO HORA - 03/11

Que honremos o fato de ter nascido, e que saibamos desde cedo que não basta rezar um Pai- Nosso para quitar as falhas que cometemos diariamente. Essa é uma forma preguiçosa de ser bom. O sagrado está na nossa essência, e se manifesta em nossos atos de boa-fé e generosidade, frutos de uma percepção profunda do universo, e não de ocasião. Se não estamos focados no bem, nossa aclamada religiosidade perde o sentido.

Que se perceba que quando estamos dançando, festejando, namorando, brindando, abraçando, sorrindo e fazendo graça, estamos homenageando a vida, e não a maculando. Que sejam muitos esses momentos de comemoração e alegria compartilhados, pois atraem a melhor das energias. Sentir-se alegre não deveria causar desconfiança, o espírito leve só enriquece o ser humano, pois é condição primordial para fazer feliz a quem nos rodeia.

Que estejamos sempre abertos, se não escancaradamente, ao menos de forma a possibilitar uma entrada de luz pelas frestas. Que nunca estejamos lacrados para receber o que a vida traz. Novidade não é sinônimo de invasão, deturpação ou violência. Acreditemos que o novo é elemento de reflexão: merece ser avaliado sem preconceito ou censura prévia.

Que tenhamos com a morte uma relação amistosa, já que ela não é apenas portadora de más notícias. Ela também ensina que não vale a pena se desgastar com pequenas coisas, pois no período de mais alguns anos estaremos todos com o destino sacramentado, invariavelmente. Perder tempo com picuinhas é só isso, perder tempo.

Que valorizemos nossos amigos mais íntimos, as verdadeiras relações pra sempre.

Que sejamos bem-humorados, porque o humor revela consciência da nossa insignificância – os que não sabem brincar se consideram superiores, porém não conquistam o respeito alheio que tanto almejam. Ria e engrandeça-se.

Que o mar esteja sempre azul, que o céu seja farto de estrelas, que o vinho nunca seja proibido, que o amor seja respeitado em todas as suas formas, que nossos sentimentos não sejam em vão, que saibamos apreciar o belo, que percebamos o ridículo das ideias estanques e inflexíveis, que leiamos muitos livros, que escutemos muita música, que amemos de corpo e alma, que sejamos mais práticos do que teóricos, mais fáceis do que difíceis, mais saudáveis do que neurastênicos, e que não tenhamos tanto medo da palavra felicidade, que designa apenas o conforto de estar onde se está, de ser o que se é e de não ter medo, já que o medo infecciona a mente.

Que nosso Deus, seja qual for, não nos condene, não nos exija penitências, seja um amigo para todas as horas, sem subtrair nossa inteligência, prazer e entrega às emoções que nos fazem sentir plenos.

A vida é um presente, e desfrutá-la com leveza, inteligência e tolerância é a melhor forma de agradecer – aliás, a única.