segunda-feira, 9 de julho de 2012

Brown, PCC e os garotos perdidos


O Estado de S.Paulo
BRUNO PAES MANSO
Captar sensações, como se fosse uma antena humana, para depois traduzi-las em rimas, como faz um poeta, são talentos que transformaram Mano Brown no maior nome do hip-hop em São Paulo. Nos anos 1990, a voz gutural do MC, acompanhada de bases musicais sombrias parecidas a trilhas sonoras de filmes de suspense, revelaram o cotidiano violento de jovens que se matavam, a caminho do autoextermínio, protagonizando carreiras criminais ou sendo vítimas da violência policial.
Nesse período, tempos em que São Paulo alcançava taxas escandalosas de 53 homicídios por 100 mil habitantes, ter atitude era odiar. Sobrava inspiração para cantar e denunciar "a realidade", cabendo aos rappers, na definição deles próprios, o papel de "CNN da periferia" (mais correto seria Al-Jazeera).
Na década que se seguiu, ao mesmo tempo que São Paulo e as periferias viviam processos de mudanças radicais, os Racionais de Mano Brown pareciam ter perdido o discurso. Os homicídios, que dizimaram parte da geração de Brown, hoje com 42 anos, despencaram 80%. Também aumentou o consumo de drogas e foi criada a mística em torno do Primeiro Comando da Capital (PCC), que organizou a distribuição de drogas nas biqueiras das quebradas.
Como se não houvesse muito mais a rimar e declamar, as músicas dos Racionais minguaram e nenhum álbum relevante foi lançado em dez anos. No mesmo período, as periferias foram dominadas pelo funk e pelo pancadão, celebrando o consumo e o prazer em excesso proporcionados pelo sexo casual e pelas drogas. Os anseios da geração de jovens das periferias ficaram mais próximos aos dos jovens da classe média paulistana.
O "sistema", contudo, continuava a produzir camadas sociais que se movimentavam em sentidos opostos, como placas tectônicas na iminência de produzir terremotos. Brown, o cronista, estava atento e conseguiu compreender que era falsa a sensação de paz que a cidade experimentava. O subterrâneo se movimentava e a opção pelo crime crescia. Sem nenhuma gota de hipocrisia, neste ano descreveu em uma nova canção as sensações e o espírito dos jovens que ingressam e seguem a carreira criminal. Trata-se do rap Marighella, em homenagem ao guerrilheiro comunista, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Gravado em maio em uma ocupação no centro de São Paulo, o clipe de Mariguella é a metáfora de Brown para explicar o crime e o criminoso. Brown usa trechos do manifesto do guerrilheiro, transmitido em 1969, para convocar os operários e trabalhadores nas favelas a se armar e a aprender a atirar.
Na voz de Brown, não se trata de Marighela, "assaltante nato", nem do comunismo, nem dos operários. Mas da revolta, da raiva contra o sistema, dos "correrias", perseguidos e descriminados, mas com procedimento, devotos do ódio, protagonistas de uma vida sem sentido, que criam meios violentos para suportar a vida na sociedade violenta.
Marighella é a metáfora que revela as aspirações da geração urbana dos garotos perdidos, enrolados na carreira criminal que escolheram. Filhos de migrantes, nascidos nas grandes cidades, onde negaram a cultura rural dos pais para inventar os próprios caminhos.
Parte dessa geração, dizimada nos anos 1980 e 90, forjou sua identidade no crime, usando a violência. Quando escolhem essa carreira, passam a viver um destino sem futuro, em que plantam e colhem violência, como se essa fosse a única forma de serem percebidos. Ainda é muito melhor tentar compreendê-los nas músicas dos Racionais e nas lúcidas metáforas de Mano Brown. Quem sabe sejam encontradas formas para preencher o vazio dessas vidas.

O visionário da província


RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE; INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA; DIRETOR-, PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE - O Estado de S.Paulo
RENATO LESSA
Há cerca de seis anos, em 2006, o então prefeito de São Paulo, José Serra, renunciou ao mandato, conquistado nas eleições de 2004, para ingressar na corrida eleitoral ao governo paulista. Salto bem-sucedido, posto que lograria derrotar Marta Suplicy, qualificando-se, assim, à condição que, como sabemos, propiciaria mais à frente a reedição do ato de renúncia. Com José Serra, pela compulsão à repetição, aprendemos que renunciar é humano.
Por unilaterais e caprichosas, renúncias são ocasiões ímpares para pensar a respeito do peso dos contrafactuais na história humana. Não tivesse José Serra renunciado, e se reeleito fosse à Prefeitura de São Paulo em 2008, estaríamos hoje a falar de Gilberto Kassab, com a magnitude que o desagradável princípio de realidade nos impõe?
É certo que as ações humanas, se procurarmos estabelecer suas causas, podem ser submetidas ao abismo das regressões ao infinito. Detectada o que julgamos ser a causa de algo, sempre é possível indagar sobre causas dessa causa, e assim por diante - ou melhor, para trás -, até retrocedermos a um momento inaugural, seja ele o da moldagem de Adão ou da eclosão do bóson de Higgs. De todo o modo, ainda que isso seja verdadeiro, é inegável que na genealogia do animal político Kassab o efeito de causalidade exercido pela primeira renúncia de José Serra tem forte relevância.
Vá lá que o ato procriador praticado pelos pais do atual prefeito de São Paulo tenha sido uma condição necessária para que viesse a ter existência biológica. Contudo, parece ser indisputável o fato de que o ato de renúncia de Serra produziu um efeito político preciso, qual seja o da entronização de Kassab ao, digamos, primeiro time da elite política nacional. Suponho que não seja exagero imaginar que o ocupante do posto de prefeito da cidade de São Paulo, a mais importante cidade do hemisfério sul, não possa ser descrito de maneira diferente.
Determinar a causa eficiente do fenômeno não traz consigo a suposição de que havia intencionalidade na coisa: os efeitos procedem das causas, mas só adquirem fisionomia própria pelo que a elas acrescentam. Se a entronização de Kassab no campo político nacional derivou de um ato inicial, movido por considerações de oportunidade política de curto prazo, é importante não desvalorizar, para fins de interpretação, o que o personagem acrescentou de si ao presente que recebeu.
O personagem eminentemente local transformou-se em pouco tempo em um operador relevante no cenário nacional. Já não conta mais como prefeito: o que faz e o que se diz do que faz em São Paulo está aquém de seu peso específico no plano nacional. Para avaliar tal peso, as medidas são outras: um partido com mais de meia centena de deputados federais - o que representa 10% da Câmara de Deputados - e dois senadores.
A importância do kassabismo extrapola, contudo, a contabilidade parlamentar. O empreendimento do prefeito de São Paulo exibe de modo aberto a lógica do presidencialismo de coalizão, por meio de um truque de rara destreza: transformar meia centena de deputados obscuros, condenados às agruras das legendas de oposição, às quais em sua maioria pertenciam, em um conjunto disponível para trocas generalizadas. A sigla partidária, marca fantasia da organização, afirma-se negativamente, no que diz respeito a ideologias: não é de esquerda, de direita ou de centro. Quer isso dizer que se sente à vontade em qualquer ambiente. Ao modelo, em si mesmo generoso, do presidencialismo de coalizão, o partido do dr. Kassab propicia o acréscimo de potenciais 50 novos clientes, manobra extensiva aos municipalismos e aos "estadualismos" de coalizão.
Curiosamente, o dr. Kassab é o que vai de mais genuíno e autoevidente pela vida política nacional. Com ele não há riscos de decepção: qualquer domicílio o receberá de portas abertas, sem possibilidade de dano a seus, digamos, valores e princípios. O partido kassabista é sobretudo um experimento aberto de hiper-realismo político, em um grau que talvez nenhum dos partidos "relevantes" brasileiros esteja disposto a assumir. Mesmo o PMDB, mãe de todos os realismos, não dispensa, una y otra vez, menções a seus heróis e mitos de origem. Com os kassabistas, nada disso: eles expõem com clareza ofuscante os fundamentos correntes da política brasileira. É, pois, um empreendimento que elimina toda suspeita a respeito da opacidade das palavras. Para o kassabismo, as palavras são o que elas são, não escondem, iludem, parafraseiam ou aludem. Pretendem dizer o que a coisa é. Enfim, temos a tão desejada instalação da verdade na política.
Kassab indica o vice na chapa de Serra, arqui-inimigo do petismo, e apoia Patrus Ananias, herói petista, em Belo Horizonte. A senadora Kátia Abreu (PSD-PA), livre dos ares moribundos do ex-PFL, manifesta simpatia pela reeleição de Dilma Rousseff. E por aí vamos: tudo é permitido, tudo é divino e maravilhoso. Pensando bem, Kassab é mesmo um herói do presidencialismo de coalizão. Na verdade, um pequeno prestidigitador, a exibir o fato grave de que a existência de partidos "relevantes" e "coesos", bem como sua criação, nada tem a ver com o que se passa no plano da vida social. Política sem princípios e sem lastro social: há quem diga que se trata de uma "democracia consolidada".

ONGs se dedicam a fechar negócios


Rio+20 se tornou fórum de fomento a projetos, acordos de cooperação e negócios

24 de junho de 2012 | 3h 05
ANTONIO PITA, HELOISA ARUTH STURM / RIO - O Estado de S.Paulo
Longe das discussões políticas e da retórica anticapitalista de alguns, a Rio+20 pode ser considerada um sucesso para ONGs e empresas que apostaram no evento como oportunidade de concretizar parcerias e projetos.
No último dia da conferência, o secretário-geral da ONU para a Rio+20, Sha Zukang, anunciou que durante os eventos oficiais foram firmados cerca de 700 compromissos voluntários entre ONGs, empresas, governos e universidades. Isso significa um investimento de US$ 513 bilhões para ações de desenvolvimento sustentável nos próximos dez anos.
Mais que partilhar experiências e discutir práticas sustentáveis, para muitas instituições a Rio+20 se transformou em fórum de fomento a projetos, acordos de cooperação e negócios.
É o caso do Instituto Terra de Preservação Ambiental (ITPA), atuante no interior do Rio, que aproveitou a Cúpula dos Povos para firmar parceria com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e se tornar parte de um ambicioso projeto que pretende restaurar 1,5 milhão de km² de florestas no mundo até 2020. Somente no Brasil, pretende-se recuperar 10 mil km², quase o dobro do desmatamento registrado na Amazônia em 2011. Ao ITPA ficará a responsabilidade de recuperar mil hectares de Mata Atlântica - 0,1% da meta brasileira.
"Vamos fazer parte dessa aliança mundial e estamos levantando áreas e dimensionando a equipe", diz o cofundador do Itpa, Maurício Ruiz, que dobrará seu quadro de funcionários, atualmente de 130 pessoas. De acordo com a IUCN, essa meta mundial possibilita injetar mais de US$ 80 bilhões nas economias nacionais e globais.
Na outra ponta, empreendedores também vislumbram o mercado verde, oferecendo consultoria para empresas que buscam reduzir a ineficiência em seus processos. "Mostramos que a redução dos custos passa pela redução do impacto ambiental", afirma Krishnamurti Evaristo, da empresa de consultoria Vaporenge.
Novo perfil. A transformação dos eventos da Rio+20 em espaço de interação e negócios também revela a mudança no perfil de atuação das ONGs nos últimos20 anos. Se em 1992 as instituições do terceiro setor se caracterizavam pela informalidade, forte apelo ideológico e pouca estrutura, hoje muitas contam com organização profissional e modelos empresariais de prestação de contas e financiamento.
A avaliação é de Reinaldo Bugarelli, coordenador do curso de gestão do terceiro setor da FGV. Para ele, que participou da conferência em 1992, as parcerias e contatos feitos na conferência são um efeito colateral positivo em função da tecnologia de gestão e agendas entre ONGs mais estruturadas e as pequenas associações. Bugarelli indica que a busca de financiamento nas empresas acabou por influenciar a estrutura das instituições.
Gestão. "As organizações adotaram à imagem e semelhança o modelo de gestão dessas empresas, para ser mais efetivas, demonstrar resultados. Isso acaba por tirar um pouco da criatividade e da energia transformadora das instituições, da sua inovação no pensamento da sociedade", avalia.
É com esse pragmatismo que pretende atuar o Grupo de Trabalho Novas Fronteiras para Cooperação do Estado do Maranhão, que desde 2004 funciona como rede de articulação entre ONGs de 84 municípios que desenvolvem atividades de agricultura familiar, gestão de resíduos, preservação das matas ciliares e extrativismo - especialmente do babaçu, uma das principais atividades econômicas de pequenas comunidades da região.
"Nosso foco é inserir o processo econômico dentro da preservação do meio ambiente", afirma Edval Oliveira, diretor de articulação institucional do grupo. Oliveira veio à Rio+20 com 13 conselheiros e aproveitou a visita para selar cinco parcerias com pequenas empresas no espaço SebraeTec, no Aterro do Flamengo. Elas prestarão consultoria à ONG, com apoio do Sebrae, em qualificação profissional, eficiência energética, medição de carbono e tecnologias sustentáveis. O próximo passo, segundo Oliveira, é difundir esse conhecimento nas cooperativas e associações de produtores, fechar parcerias institucionais com governos e desenvolver estratégias de captação de recursos para viabilizar todas essas medidas.
Apoio. E para que a falta de dinheiro não seja um obstáculo à concretização dessas iniciativas, há entidades que atuam exclusivamente como apoio financeiro, como a Sitawi - Finanças do Bem, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que oferece empréstimos abaixo do mercado e gestão de fundos sociais, para que ONGs não dependam apenas de doações.
No Brasil, as doações movimentam cerca de R$ 10 bilhões por ano. É pouco comparado ao volume de empréstimo a pessoas jurídicas, que chega a R$ 1 trilhão por ano, segundo Leonardo Letelier, presidente da Sitawi. "Isso não quer dizer que crédito resolve todos os problemas nem que todas as organizações sociais deveriam fazer empréstimo. Quer dizer que esse recurso deveria estar disponível para quando fizer sentido", diz Letelier.