Enquanto Luciano Huck avalia o risco, o Brasil sonha com um astro que purifique a política
*Eugênio Bucci, Impresso
23 Novembro 2017 | 03h12
“O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias”
Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo
À medida que se adensam as especulações em torno do nome do apresentador Luciano Huck para eventual candidatura à Presidência da República, as reações de políticos atestam que eles não entenderam nada. O sintoma que mais chamou a atenção foi a declaração do senador Aécio Neves. “Acho que é um pouco da falência da política”, diagnosticou o tucano. “É um pouco do momento de desgaste generalizado pelo qual passa a política.”
Não deixa de ser um alívio saber que o líder mineiro se preocupa de modo tão altruísta com assuntos falimentares e desgastes generalizados, mas sua declaração traduz, ainda que inadvertidamente, um preconceito arrogante. Por que, afinal, as pretensões eleitorais de um ídolo televisivo indicariam que a política “faliu”? Em que ponto a candidatura de um animador de auditório – de resto, muito rico – é pior do que a candidatura de uns e outros que ficaram bilionários com salário de deputado? Um garoto-propaganda de banco não tem o direito de, como dizem nos rincões mineiros, “entrar para a política”? Acaso estaria menos preparado que um fazendeiro, um sindicalista, um pastor evangélico ou ex-governador, como sugere a fala de Aécio?
Houve tempo em que as famílias de respeito – de Belo Horizonte, inclusive – empinavam o queixo e franziam os lábios quando ouviam falar que uma amiga da sobrinha pretendia seguir a profissão de atriz. Era um preconceito arrogante. Agora, desqualificar de antemão a competência de astros vespertinos como se eles não fossem dignos de pedir votos é uma forma de reabilitar o velho preconceito. Numa democracia, todos os cidadãos são elegíveis, incluídos os que ganham a vida diante das câmeras – e estes não são em nada piores do que os que ganham a vida de maneiras ocultas e depois passam longas temporadas fugindo das câmeras.
Muitos políticos de carreira subscrevem o que Aécio declarou sobre Huck. Uns o fazem à boca pequena, com aquele modo característico de cochichar usando a mão para cobrir a boca e, assim, evitar o risco tenebroso da leitura labial. Outros se pronunciam aos berros, do alto de palanques. Não estão nem aí.
Além de não entenderem que todos os cidadãos podem ser candidatos, pois são iguais perante a lei e as urnas, os “de carreira” não entendem que o advento das celebridades e da indústria do entretenimento modificou a política para sempre. A política não é mais o que era no tempo de seus avós.
A incompreensão crônica e inamovível é chocante. Como podem ser tão obtusos? Os políticos profissionais cuidam da aparência como se fossem atrizes na terceira idade: fazem implante de cabelo, buscam a ortodontia estética para calibrar o sorriso, tingem o bigode, usam botox, fazem media training quando vão aparecer na TV. Os de direita, quando querem fazer pose de populares, mastigam sanduíches de mortadela e falam palavrão no tête-à-tête com os eleitores. Os de esquerda, quando precisam parecer confiáveis aos endinheirados, envergam as gravatas caras que ganham de presente dos lobistas – e logo se acostumam. Uns e outros passam as 24 horas do dia empenhados em burilar a própria imagem. Só pensam na imagem. São narcisos a soldo público. Sendo assim, como é que não entenderam nada?
Tudo o que desejam é ser celebridade, mas não sabem bem por quê. Os que pensam ter percebido alguma coisa tentam cooptar candidatos como Tiririca (ou mesmo Huck) para engordar quocientes eleitorais – mas também esses, que se imaginam feiticeiros maquiavélicos da popularidade alheia, são levados de arrasto por um maremoto que nem sequer enxergam.
A gramática do poder foi subsumida pelo espetáculo. Em poucas palavras (palavras andam em desuso), sua gramática se tece mais por imagens do que pelo texto. Seus enunciados são performances midiáticas. Kim Jong-un, com seu penteado boina, é um pop star. Trump saltou diretamente da fama de apresentador de TV para a Casa Branca, passando por uma escala meramente formal por um partido político. Arnold Schwarzenegger governou a Califórnia e Ronald Reagan governou os Estados Unidos da América. Berlusconi fez o que fez na Itália.
Por quê? Pela mesma razão que leva uma estrela de novela a ser ouvida como luminar quando opina sobre câncer de mama, energia nuclear ou o agigantamento das megalópoles. Vocalistas de bandas comerciais opinam para plateias planetárias e deslumbradas sobre ecologia e sustentabilidade. Uma top model pontifica sobre demarcação de terras indígenas. Um ex-jogador de futebol dá apoio a um ditador sul-americano – e esse apoio se confunde com legitimidade autêntica.
Como o dinheiro na economia, o espetáculo realizou a proeza de ser um equivalente geral no mundo da imagem: uma celebridade, venha ela de onde vier, ganha autoridade para ditar regra sobre qualquer tema que atraia o olhar das multidões. O espetáculo acentua o caráter de mercadoria nas candidaturas e infla um quê de sagrado nas mercadorias. De seu lado, as multidões histéricas veneram as celebridades como os gregos antigos veneravam os deuses do Olimpo. As celebridades são o politeísmo de um mundo sem divindades. Que elas postulem cargos eletivos, ora, nada mais lógico, nada mais mítico.
A política reduziu-se a um reality show, no qual até ministros do STF atuam, envaidecidos. Esse reality show atrai as celebridades do show business para depois incinerá-las. Elas chegam, brilham e viram pó. Vide um certo prefeito de metrópole que até outro dia era o “não político” mais estridente do Brasil: até ele, chamuscado, precisou fugir das câmeras.
Enquanto Luciano Huck avalia o risco, o Brasil sonha com um astro que purifique a política, em vez de ser queimado por ela. “Dinheiro na mão é vendaval.” O espetáculo é um apocalipse de fogo e fúria.
Que venha 2018.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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