A arte polêmica quase sempre desafia tabus sexuais. O olhar para a obra é subjetivo
Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S.Paulo
04 Novembro 2017 | 02h00
“Há sempre um copo de mar para um homem navegar.” O verso do poema de Jorge de Lima servia de tema à 29ª edição Bienal de Artes de SP. Era o ano de 2010. Nada ainda de Petrolão. Lava jato era onde lavávamos o carro. A democracia seguia seu rumo pacificamente. As instituições, preservadas.
Com “a diretoria comprometida com a renovação institucional”, a Bienal anunciou um “projeto educativo permanente” e uma ampla programação paralela, privilegiando “obras de cunho político”.
A curadoria de Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos destinou cerca de 400 atividades a seis espaços conceituais intitulados Terreiros.
A polêmica da vez ficou por conta da instalação Bandeira Branca, de Nuno Ramos. Urubus voavam numa gaiola gigante no vão central do pavilhão, ao som do cancioneiro nacional. Absolutamente genial. Dias depois de protestos de organizações protetora dos animais, tiraram os animais.
Entre os 159 artistas, Henrique Oliveira, de Ourinhos, que mora em Nova York e faz esculturas e instalações gigantes em madeira compensada e pigmentos. São formas orgânicas que lembram membros do corpo, dejetos, órgãos do abdômen e sexuais.
Uma grande instalação dele, A Origem do Terceiro Mundo, pedia a interferência do público. Entrávamos num túnel, percorríamos uma caverna de madeira e saíamos do outro lado, por uma passagem curvilínea.
Só fora da escultura, percebia-se: a saída era o órgão sexual feminino, uma vagina. Crianças faziam o percurso. Pais levavam filhos. Crianças corriam em torno da obra. Não se pensou maliciosamente naquela obra. Representava o nascer. Nascíamos. Nos davam à luz.
Repercussão negativa? Zero. Traumas? Nenhum. Pais revoltados protestando na entrada? Nenhum. Um juiz conservador, um promotor mal-intencionado em busca de publicidade, um ator na geladeira, um atleta que descobriu ser bacana se anunciar de direita, um blogueiro reacionário em busca de cliques e polêmica para aumentar a sua audiência, um grupo de ativistas numa página do Facebook, um grupo do “zapzap”, uma rede de ideólogos com seus semelhantes de militância de teclado, o ativismo de sofá, protestando, abaixo-assinado, petição online, nos dias de hoje, protestariam contra aquela... Pouca vergonha?
O protesto insano, cego, raivoso, ainda não se alimentava da descrença, da crise ética e de representatividade brasileira, que questiona até o direito mais sagrado de uma democracia, a liberdade de expressão.
Não tinha um governo questionado, uma presidência com os piores índices de aprovação, uma esquerda expelida do Poder pega com a mão na massa podre da corrupção pública e privada, um ministro da Cultura, interventor temporário, por vezes rancoroso, aliado à bancada evangélica criticando artistas, a arte, o livre pensar.
Para os visitantes de 2010, estávamos num ambiente de provocação, verticalidade do pensamento, interpretação da realidade. Quem se mobilizou e levou a família ao pavilhão do Ibirapuera, sabia que o conforto estava em casa com o controle remoto na mão e a família no sofá, não numa Bienal de Artes.
Sabia que iria sair de lá um cidadão instigado. Acima de tudo, um cidadão com direito de ser questionado e provocado.
O visitante era sugerido a refazer o caminho da obra. O túnel então atravessava ovários, trompas e um grande útero. O afunilamento, a vagina. Por fim, nascíamos.
Me fotografei nascendo. Me fotografei e bloguei em êxtase por respirar e viver. Ninguém pensou ardilosamente naquele gesto. Nem passou pela minha cabeça outra interpretação.
Vi os dois partos dos meus filhos. Vi de perto suas cabecinhas aparecerem. Participei do que é definido como “parto humanitário”. Um paradoxo, pois então existe o parto desumano, o da interferência cirúrgica desnecessária, um triste recorde brasileiro, fruto de um mundo industrializado, em que o tempo é precioso; a maioria das cesáreas é agendada aos sábados, para pais e famílias em folga não serem prejudicados no trabalho; sábado de manhã, antes da feijoada; não domingo, em que tem rodada do campeonato pela TV.
Um parto humanizado é um parto como antigamente. Numa emergência clínica, então, sim, a cesárea procede. Para a Organização Mundial de Saúde, o índice razoável de cesáreas é de 15% dos nascimentos. No Brasil, 43% dos partos são por cesárea. Na rede particular, 80%.
Logo, logo, robôs os farão. O olhar a um corpo nu perde a referência primordial, a de que somos mamíferos, animais sexuais que procriam, temos placenta, até tetas, e ganha malícia. Um artista nu vira um homem pelado que ofende a moral. A nudez feminina vira perniciosa, não beleza, não maternal. Até dar de mamar em público vira tabu.
O novo filme de Carol Jabor, Aos Teus Olhos, parte do princípio de que o olhar pode ser deturpado. Um pai que vê atentamente o professor de natação do filho em ação, enxerga, em cada gesto, carinho, ajuda, como amarrar o calção da criança, rituais de uma aula ou, dependendo da sua paranoia, um pedófilo em ação.
A arte polêmica quase sempre desafia tabus sexuais. O olhar para a obra é subjetivo. Por isso, a censura num estado democrática deve ser rigorosamente proibida. Na verdade, depois de 1988, ela foi. Só que não.
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