Houve um dia em que a vista ficou turva. A pressão despencou. O jantar da véspera rebelou-se, contrariou a lei da gravidade e me atravessou, agressivo e amargo. Era inverno, mas a fúria do meu corpo impôs um suor que arrancou qualquer casaco, atravessou os cabelos e correu salgado até o canto da boca.
Ruth Manus,
O Estado de S.Paulo
O Estado de S.Paulo
14 Agosto 2016 | 02h00
Eu já não me levantava do chão do banheiro, tentando que o mármore frio me devolvesse algum indício de conforto. Enquanto isso, o feminino pragmático da família, sintetizado na figura de mãe, atirava mudas de roupa em uma pequena mala, procurava as chaves do carro e pensava qual era o pronto-socorro mais próximo.
As pálpebras pesavam sobre os olhos, a visão escura tentava vencer a lâmpada fria do banheiro. Mas algo me impedia de me entregar aos tantos encantos daquele desmaio, tão mais sereno do que o caos que circulava dentro do meu tronco. Um ventinho. Um ventinho que vinha de uma pasta de papelão. Uma pasta de papelão que era insistentemente balançada por uma mão fiel, há tanto tempo ali. Era ele, sentado no chão, ao meu lado.
Eu poderia listar facilmente 50 características louváveis do meu pai. O sorriso fácil, a trajetória profissional, a atenção com as pessoas, os livros lidos, a segurança que sempre propiciou aos que o cercam, os trocadilhos sem graça, a linha tão clara para determinar o que é certo e o que é errado. Também poderia elencar 50 defeitos graves sem maiores dificuldades.
Mas tudo isso descreveria um homem. E nada disso falaria sobre um pai. Trabalho, livros, trocadilhos. Nada tem relação íntima com essa missão tão árdua, mas cujos vínculos se formam da maneira mais simples. Um grande homem pode ser um pai miserável. Um homem miserável pode ser um grande pai.
Pode-se pagar a melhor escola, dizer as frases mais bonitas, inspirar uma carreira e ainda assim não ser pai. Não é nada raro encontrar pessoas tentando criar raízes em chão de concreto. Tentando suprir presença com dinheiro, afeto com palavras. Tentando ser muito por achar que é pouco, quando o vínculo, na verdade, não é muito ou pouco. O vínculo é ou não é.
Talvez ser pai não seja ser muito mais do que ser uma mão. Mão que ampara cabeça recém-nascida, que segura outra mão quando há medo, que aponta o dedo enquanto censura, que aponta o caminho no mapa ou fora dele. Que abana uma pasta de papelão durante o tempo que for necessário, como quem diz, simplesmente, eu ainda estou aqui.
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