A história que vou contar é abusada de bons exemplos. Um súbito espaço de grandeza envolvendo milhares de pessoas. Grandes empresários, políticos, estudantes, artistas, gente pobre e humilde deram-se as mãos.
Aconteceu em São Paulo e resultou em extraordinária vitória da opinião pública ou, como preferem publicitários, “um case”, como dizem polidamente em inglês. Eu, na época diretor da Eldorado, tive o privilégio de viver os bastidores desse raro acontecimento.
Foi assim: estávamos lançando a Nova Eldorado AM, eu acabava de contratar um chefe de redação, Marco Antônio Gomes. Pedi que evitasse pautas repetitivas. “Minha rádio” não seria mais uma a “requentar notícia de jornal”. Pouco depois, uma lista de reportagens foi apresentada. Uma sobressaiu pela ousadia. A ideia era demonstrar, de forma criativa, a importância de praticar cidadania. Estávamos havia cinco anos da redemocratização. Era 1990, nossa democracia engatinhava. De lambuja, o programa tinha uma pegada ecológica que atiçaria o brio de São Paulo.
“Encontro de rios” foi ao ar em agosto de 1990, com distintos objetivos: reforçar o credo que a sociedade tem o direito de pressionar seus governantes e lembrar ao público, então encantado com a novidade do movimento ambiental, que debaixo de nossos narizes havia uma vergonha.
Foi um programa bem pensado. Uma equipe da BBC, com quem tínhamos parceria, navegaria pelo Tâmisa enquanto uma dupla de repórteres da Eldorado faria o mesmo no Tietê. E trocariam informações.
Durante as três horas de transmissão, o repórter da BBC contou de protestos dos londrinos que, desde o século 19, apelidaram o Tâmisa de “O Grande Fedor”. E relembrou seguidos protestos, até o governo inglês começar o longo trabalho de despoluição.
Enquanto isso, desviando de ilhas de lixo do Tietê, os repórteres Rosely Tardelli e Antônio Sabino descreviam cenas macabras: animais mortos boiando, o cheiro fétido que emanava do rio; o aspecto gelatinoso da água, de tão pegajoso, dificultava o avanço do barco. E o improvável aconteceu. O recado, subliminar, foi amplamente assimilado: dependeria de nós.
Nas semanas seguintes eu passava os dias, atônito, atendendo ouvintes que “queriam participar da campanha”. Ligavam, mandavam faxes, iam pessoalmente à emissora. O movimento, que tinha tudo para murchar, inflou. Em 23 de setembro o Estadãodeu em manchete: Campanha por rio ganha a cidade. Em qualquer lugar o assunto era um só: como fomos capazes de tamanha degradação.
Senti a força que pairava no ar e corri a pedir ajuda. A mais respeitada ONG, a SOS Mata Atlântica, era presidida por meu irmão Rodrigo Lara Mesquita. Procurei-o. Eu não entendia de despoluição, mas não podia perder aquele momento mágico, de união por uma causa justa. Rodrigo convocou João Paulo Capobianco, que ouviu meu relato e pediu tempo.
Dias depois ele apresentou o plano: criariam um núcleo com equipe própria para cuidar do rio. Mas eu tinha de arranjar o dinheiro que o financiasse por três anos até que, com vida própria, alcançasse capacidade de sobrevivência. Demorou, mas um ano depois consegui US$ 350 mil, do Unibanco, que quitavam a conta. Foi a maior doação para a causa ambiental até então. A essa altura, o sonho dos ouvintes se tornara de todos.
Capobianco chamou um biólogo para chefiar o núcleo, “um craque em mobilização”. Seu nome, Mário Mantovani. O Núcleo União Pró Tietê foi apresentado em agosto de 1991, agitando. Reuniões em praça pública, palestras, shows musicais em benefício da causa, projetos de educação ambiental. A campanha pegava fogo. A garotada da redação, em primeiro emprego, se extasiava com a repercussão.
Um abaixo-assinado começou a correr, ideia de Mantovani, e surpreendeu outra vez. Empresas, entidades de classe, funcionários públicos, escolas, passavam as listas entre seus pares. Em 1993, com 1,2 milhão de assinaturas, e 124 volumes, ele foi entregue ao governador do Estado, Antônio Fleury.
O governo respondeu criando o Projeto Tietê e iniciando reformas na estação de tratamento de esgotos de Barueri. Para aproveitar, Fleury dizia que o rio ficaria limpo em seu governo, o que era desmentido pelo Núcleo. Obra dessa magnitude não se presta à demagogia. Exige tempo. E muito investimento.
Em 1995 Mário Covas foi eleito. E o recado da opinião pública, respeitado; assim, pela primeira vez na história, uma obra iniciada em governo anterior teve continuidade. Covas revisou o projeto, criou três fases. A primeira, para a construção e manutenção de estações de tratamento. Na segunda seriam feitos gigantescos interceptores para levar o esgoto até as estações; e coletores troncos para levar o esgoto dos bairros aos interceptores. Na terceira interligariam as casas aos coletores troncos. E investiu pesadamente.
Covas deixou o governo, em razão de um câncer, em 2001. Assumiu o vice, Geraldo Alckmin, e mais uma vez a obra prosseguiu.
Passados 25 anos, o Núcleo está vivo, praticando cidadania; fiscalizando, cobrando o governo.
Mais de US$ 3,5 bilhões foram investidos, na maior obra de saneamento já feita no País. A mancha de poluição recuou 160 km. Chegava a Barra Bonita, a 260 km de São Paulo. Está em Salto, a 100 km da capital. E a região metropolitana atingiu 90% de coleta de esgotos, melhorando a vida de 19 milhões de pessoas.
Ainda há muito a fazer. A Sabesp calcula outros 25 anos de trabalho; e aponta o lixo jogado nas ruas, ligações clandestinas, poluição, as fezes de cachorros e bitucas, atirados nas ruas, como problemas a serem eliminados. Ainda nos falta educação.
Mas o programa da Eldorado gerou a maior obra de saneamento jamais feita no Brasil. E uma competente ONG.
Parabéns, pelos 25 anos, Núcleo União Pró Tietê; e viva! aos ouvintes da Nova Eldorado AM. Que o sonho que vivemos siga inspirando.
*Diretor da Eldorado de 1982 a 2003, e mantenedor do site www.marsemfim.com.br. e-mail: jlmesquita@terra.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário