domingo, 14 de setembro de 2014

O chamado da água


MÔNICA MANIR - O ESTADO DE S. PAULO
13 Setembro 2014 | 16h 00

Em tempos de secura, achadores de veios subterrâneos entortam suas molas e forquilhas em busca de futuros poços

DENNY CESARE/ESTADÃO
Requisitado. Imre cobra R$ 1.500 pelo serviço. ‘Quando não cobrava, ninguém levava a sério’
Um sol ardido torrava o cocuruto de Imre. Em volta, a audiência não dava um pio. Melhor não perguntar nada nessa hora. Afinal, o homem estava caminhando sobre as águas... “Pode perguntar, sou macaco velho”, diz o húngaro. Macaco velho no melhor dos sentidos. Imre Lajos Gridi-Papp tem 83 anos e há pelo menos 20 marca poços sistematicamente usando uma mola espiral. Se a mola sobe, neca de água naquele trecho de terreno. Se desce, ali embaixo passa um veio. “Mudaram muito o relevo, o negócio aqui é complicado”, afirma, secando a umidade da testa com a costa da mão.
Estamos num condomínio em Piracaia, o Parque Náutico Jaguari, que de náutico, nos últimos tempos, só tem os barcos cobertos por lona encardida. Suas chácaras com vista para a represa Jaguari-Jacareí agora avistam três níveis desoladores: um longo declive esturricado, uma faixa considerável de lodo e, no miolo, o que restou depois da retirada do primeiro volume morto. Às vésperas da extração do segundo volume morto, o engenheiro Eduardo Del Monaco Caiuby, 59 anos, condômino do Parque Náutico e duas vezes campeão brasileiro de iatismo na juventude, perdeu a classe. Está exaltado. “Em 30 anos não se investe nada em água no Estado”, gesticula. Ele explica que a represa divide a região em grandes panelas aquíferas. Tem condomínio próximo sem um gota no horizonte, e a panela do Parque Náutico não está em situação tão melhor. “Pra você ter uma ideia, eu ia velejando comprar pão pro café da manhã do outro lado da represa. Agora vou de jipe.”
Se a panela está à míngua na superfície, quem sabe emerge algo debaixo dela. Um vizinho de cerca de Eduardo falou de um senhor que era bom de marcar poço. Não só poço comum como poço perfurado, desses de grande vazão, que atingem as águas subterrâneas. Diante da estiagem, as 44 residências do condomínio precisavam de mais uma fonte. Daí que, chamado a comparecer, Imre tomou o norte de Piracaia a partir de Campinas, onde mora. Seria sua 16ª investigação em dois meses. “Desde 1952, quando cheguei ao Brasil, não via uma seca assim”, contabiliza.
Seus olhos translúcidos aparentemente tinham visto de tudo. Nascido em outubro de 1930 em Istambul, onde o pai arquiteto acompanhava a reforma de um prédio histórico, ele foi registrado na Embaixada da Hungria e pra Hungria se mudou em 1932. Ficou lá até 1945. No auge da guerra na Europa, a família de pai, mãe e quatro filhos zarpou para a Alemanha. Foram acomodados num campo de displaced persons. “A comida que os americanos forneciam era liofilizada, aí fizemos uma horta lá; abastecíamos o campo inteiro com verdura fresca”, lembra, num sotaque que eventualmente mistura feminino com masculino. Em 1948 estava tudo certo que viriam para o Brasil. Mas uns despatriados de pai e mãe fizeram uma treta: trocaram suas radiografias de pulmão com as dos Gridi-Papps e dois membros da família de Imre foram dados como inaptos para atravessar o mar. Rumaram então todos para a França, terra onde Imre obteve o diploma de bacharel na Universidade de Toulouse.
A chegada a São Paulo se deu em 1952 e a naturalização brasileira, em 1958. Moravam no Bexiga, mas a poluição paulistana daquela época lhe entupiu os alvéolos. Imre se encantou com os ares da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), em Piracicaba. Aos 30 anos se formou engenheiro agrônomo e depois foi para o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) trabalhar com melhoramento genético de algodão. Enredou-se nessa área. Publicou manuais, livros e mais de 60 trabalhos científicos, prestou assessoria científica e coordenação de comissões técnicas, e então se aposentou em 1993, agraciado com diplomas de honra ao mérito por governador de Estado e ministro da Agricultura.
A mola, feita de arame de aço, com as espirais fechadas e enroladas sob pressão, configurou-se um plágio. Um plágio assumido. Imre mandou fazer um exemplar de 70 centímetros igual à mola que o tio engenheiro usava para marcar poços, achar petróleo e localizar, a mando dos comunistas, tesouros enterrados no território húngaro. O pai, Imre M. M. Gridi-Papp, já radicado no Brasil, mapeou jazidas de minerais e de petróleo usando o mesmo recurso. Treinou Gridi-Papp júnior na técnica, e o filho resolveu estudar a fundo o que sentia chegar pela coluna vertebral.
“Todo mundo tem essa sensibilidade, alguns menos, como os caras de pau, alguns mais, como os médiuns”, brinca. Depois se apruma e volta à razão. Essa sensibilidade às radiações seria a radiestesia, que no passado era chamada de rabdomancia, a adivinhação por meio de vara. Vasculhar águas subterrâneas é coisa dos primórdios bíblicos, como o próprio Imre destaca no livro A Vida Brota das Águas Subterrâneas, lançado em 1998 pelo Instituto Campineiro de Ensino Agrícola. Está no Êxodo que Moisés, para saciar a sede do seu povo pelo deserto, fez jorrar água da rocha usando uma vara. A técnica sofreu de ostracismo na Idade Média e ressurgiu no começo do século 20, quando o abade Bouly cunhou o nome, depois adotado pela Associação Francesa de Radiestesia, fundada em 1922. Alemães e russos a incorporaram sem pudor. Cubanos a têm em grande conta. Brasileiros mal conhecem a palavra radiestesia, mas alguém sempre tem um causo de forquilha pra contar. Os “pajés da roça” se armam de um pau bifurcado feito de salgueiro, aveleiro, bétula, marmeleiro, e vão seguindo pelo terreno até o estilingue se vergar. Vergou? Pode furar que ali tem água.  
Sergio Areias, presidente da Associação Brasileira de Radiestesia e Radiônica, explica que a Terra é um grande ímã, que emite um campo magnético. Se entre essa imanação e a superfície houver água correndo, isso gera uma diferença de potencial elétrico. Treinando a mente, o radiestesista consegue identificar essa alteração e liberar micromovimentos através do instrumento que lhe convier – um galho de árvore, um pêndulo, uma mola. “Não tem uma entidade extracorpórea fazendo isso”, ressalva. “Teu inconsciente consegue perceber todas as radiações existentes no ambiente, mas o teu consciente não, graças a Deus.” Graças a Deus porque quem aguenta um canal aberto full time para tanta onda de celular, rádio, TV, micro-ondas, radiação do cosmos, radiação telúrica do Sol?, pergunta Areias, que usa um pêndulo e um dinamômetro em suas sessões de acupuntura. 
Mais instintivos e sem esse filtro divino, os animais captam a radiação e escancaram sua satisfação ou seu desprazer com ela. Antigamente os fazendeiros escolhiam o local onde construiriam a sede do seu terreno observando o gado. Largavam os bichos pelo terreno e, onde eles dormissem, ali o dono erguia o alicerce. Imre lembra que, certa vez, o dono de um sítio pediu que ele checasse o canil onde um cachorro se incomodava de ficar amarrado. Andava pra lá e pra cá, pegava sarna, vivia resfriado. O húngaro botou a mola para funcionar e, pelo seu cálculo, naquele ponto havia o cruzamento de dois veios d’água – fenômeno de interferência que desagradaria ao gado, ao melhor amigo do homem e ao próprio homem, especialmente durante a noite. “As radiações que vêm do espaço chegam a um mínimo no período noturno, mas as ondas emitidas pelas águas subterrâneas continuam, e elas perturbam o sono”, afirma, peremptoriamente. Donde conclui: “Os loteamentos deveriam empreender um estudo prévio sobre os sistemas de veios existentes na área e levantar prédios de acordo com essa planta”. Que fosse pela harmonia nas reuniões de condomínio.
Para o Parque Náutico, o que acalmaria os nervos no momento seria exatamente o oposto: um bom cruzamento de veios que jorre água em profusão. Imre puxa um papel em branco do bolso traseiro, o apoia na coxa, saca a BIC do bolso da camisa e traça um perfil da área em que, a priori, seria permitido cavar um poço. Observa um belo cupinzeiro (cupins e formigas preferem cruzamentos) e uma mangueira frondosa no outro limite (outra que gosta de um ponto de afluência, ao contrário do pé de café e da laranja). Marca a posição da caixa d’água, o limite superior do talude, a ascensão das águas subterrâneas. Vai e volta com a mola em ômega, subindo e descendo, o suor escorrendo pela blusa xadrez. Enfim pede ao caseiro que traga uma estaca e um martelo. Perto de uma ruela de paralelepípedos estaria o ponto A, um cruzamento de três veios, cada um com 8 metros de largura. Profundidade estimada: 220 metros. Vazão provável: 7 m³ por hora.
Imre cobra R$ 1.500 pelo serviço. “Quando não cobrava, ninguém levava a sério.” Ágil no francês, no inglês (foi pesquisador associado na Carolina do Norte), no alemão, no húngaro (“se bem que não entendo mais esses jargões modernos”) e no português, é cuidadoso com as palavras. Sabe que lida com uma margem de erro nas suas contas, “afora o caráter excepcional das camadas de subsolo”, e por isso usa verbos e expressões relativizantes. Entre seus principais clientes – postos de gasolina, hotéis, indústrias, concessionárias, condomínios –, alguns até são assertivos. “Ele manda furar e a gente manda bala”, diz Claudino, gerente de um posto Graal na Rodovia dos Bandeirantes. O poço, marcado há quatro anos, tem 280 metros de profundidade e jorra de 5 mil a 6 mil litros/hora. Na Ultraprint, empresa de São Paulo, a obra atingiu os mesmos 280 metros, porém tem vazão maior, de 8 mil litros/hora. Luiz Tanan, dono de uma perfuradora, revela que uma indústria em Suzano teve sucesso além das expectativas. Imre apostou em 270 metros de fundura, mas a água apareceu antes, a 170 metros, e em dobro: 31 m³, e não os 15 m³ indicados. Em Sumaré, a previsão deu com os burros n’água: a vazão foi muito pouca, 500 litros/hora. Em Diadema, Imre quase acertou na bucha: 250 metros e 4 m³ para 260 metros e 6,2 m³. 
Agora, vá querer chegar perto do poço... As empresas garantem que está tudo em ordem, mas não permitem o acesso. O hidrogeólogo Ricardo Hirata, professor da USP e diretor do Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas, faz um sobrevoo sobre o tema: “Nos Estados com regulamentação própria, quase a maioria, a ilegalidade pode chegar a 70%”. Pelos seguintes motivos: falta de estrutura do governo para fiscalizar, morosidade no processo de outorga e, principalmente, um usuário que não vê vantagem em ter sua captação legalizada. “Ocorre que a água pode estar contaminada com solventes clorados, substâncias muito tóxicas e bastante persistentes nos aquíferos”, alerta Hirata. Quem tampa o fosso com a peneira também perde seus direitos. Um poço bem construído pode estar perdendo vazão por causa de interferências hidráulicas de poços ilegais. O usuário regularizado tem cacife para exigir o fechamento desses buracos sem fundo. “Mas, sem pressão, o Estado não age. É um círculo vicioso”, diz o hidrogeólogo.
Em tempos de secura, não resta um pingo de dúvida de que as águas subterrâneas sejam a fonte das fontes. Representam o quarto maior manancial da Bacia do Alto Tietê, por exemplo. Mas Waldir Duarte Costa Filho, presidente da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (Abas), aponta um motivo político para sua baixa exploração. “Elas não rendem voto porque, ao contrário das grandes barragens, são obras que não se veem.” Quanto às molas e forquilhas, que estão no plano do quase invisível, ele tem lá seu porém: “Existem na Europa algumas sociedades de radiestesia que levam o seu trabalho muito a sério e cobram preços altos para marcar um poço, mas há muitas pessoas desonestas que chegam a fornecer a qualidade química da água; se assim for, desconfie”. Hirata resgata um desafio contra o que chama de bruxaria: “Já vi hidrogeólogo apostando caixa de cerveja contra um radiestesista, e o hidrogeólogo acabou ficando bêbado”. Imre tem a coluna sensível, mas não se abala. Ri com os olhos azul-piscina. “Lá atrás eu teria sido queimado vivo.” Enrola a mola e parte para mais um chamado das águas.

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