sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A imprensa no banco dos réus


Jornalistas são chamados para depor e Justiça questiona: o sensacionalismo midiático teria influenciado o desfecho do caso Eloá? Por Bolívar Torres

17/02/2012 | Enviar | Imprimir | Comentários: 12 | A A A
“A vida não imita a arte, mas programas ruins de TV”. A frase de Woody Allen poderia resumir o sinistro espetáculo protagonizado pela família de Eloá e o ex-namorado da adolescente, Lindemberg Alves, que a manteve como refém durante cinco dias em 2008. Como acontece com frequência, a mídia transformou os momentos de tensão em um circo midiático, que voltou com força nos últimos dias, desta vez para cobrir o julgamento de Lindemberg. Com o cárcere sendo transmitido ao vivo, o criminoso pôde acompanhar o seu próprio crime pela televisão, alçado a uma rápida celebridade midiática. Nada diferente de outros casos de forte apelo popular (como o assassinato da menina Isabella no caso Nardoni), a não ser um fato curioso: desta vez, a mídia atravessa o palco e se junta aos protagonistas da história, transformando-se num agente ativo dos acontecimentos. Durante o cárcere privado, jornalistas extrapolaram suas funções (e os limites éticos da profissão) ao tentarem uma negociação direta com Lindemberg. Durante o julgamento, a mídia foi convocada ao tribunal pela Defesa, para que seis profissionais da imprensa respondessem se, na luta desenfreada por audiência, influenciaram ou não o desfecho trágico do caso. Teria ela incentivado o assassinato?
Este foi o argumento inteligente da Defesa, que insistiu que as câmeras apontadas e o frenesí estimulado pelos jornalistas teriam provocado o descontrole ainda maior do criminoso, que até então não havia antecedentes criminais. A advogada Ana Lúcia Assad insistiu que, se a imprensa não tivesse espetacularizado o caso, Lindemberg teria se entregado, e Eloá não teria morrido. No primeiro dia de julgamento, foram exibidas reportagens de diversas emissoras de televisão, incluindo uma entrevista com o réu durante o cárcere, e trechos das negociações com a polícia.
Mesmo chamada para depor, a grande imprensa não parece disposta a debater a questão ou, muito menos, oferecer um mea-culpa. Excluindo algumas poucas exceções (José Luiz Datena atacou os “jornalistas metidos a negociadores”, e o apresentador Brito Junior disse em uma palestra que os jornalistas deveriam fazer uma “auto-análise” sobre até que ponto a cobertura “interferiu” nos trabalhos dos negociadores), o discurso foi uniforme: os profissionais da mídia estavam apenas “fazendo o seu trabalho”. Esqueceram de questionar, no entanto, se o estavam fazendo da maneira correta.
“O desfecho trágico coube à polícia, não foi a imprensa que invadiu o apartamento”, disse ao site R7 o apresentador da TV Record Reinaldo Gottino. “É fácil colocar a culpa na cobertura imprensa. Por que não cortaram a energia do prédio? Nós simplesmente ligamos lá e ele atendeu”.
Gottino foi um dos jornalistas convocados pela Defesa, mas se recusou a comparecer.
“Não sou obrigado a ir, estarei viajando e também não concordo em participar como testemunha sendo chamado pela Defesa. Sou jornalista, fiz meu trabalho como jornalista e apenas informei o que estava acontecendo”.
No tribunal, o jornalista da TV Bandeirantes Márcio Campos foi questionado pela advogada de Defesa sobre a orientação da direção na cobertura de casos como o de Eloá. “A orientação que temos é de fazer nosso trabalho de jornalista, que é reportar o que está acontecendo naquele momento”, respondeu Campos. “Quando há refém, nossa orientação é que não intervenhamos nas negociações.”
A declaração de Campos mostra que a cobertura varia de acordo com o veículo, o que torna generalizações um exercício arriscado. A apresentadora Sonia Abraão, por exemplo, não seguiu as mesmas orientações de Campos, e chegou a negociar ao vivo com Lindemberg – mais ou menos como no filme O quarto poder, de Costa Gavras, no qual um jornalista decadente manipula um funcionário que mantém seu patrão como refém.
“Não dá para generalizar, mas alguns veículos excederam na visibilidade do caso”, afirma a professora e doutora em comunicação Marli dos Santos. “As pautas ligadas a crimes sempre interessam, não importa classe social, e a mídia aproveita essas oportunidades para vender mais, ganhar mais audiência”.
Ela tenta definir o que seria o “sensacionalismo” denunciado pelos ombudsmen.
“Sensacionalismo é extrapolar, exagerar sobre o fato. Esse exagero é manifestado por meio da linguagem. Dependendo do veículo, podem ser a escolha de imagens e áudio que focam em momentos impactantes – aliados a trilhas/efeitos sonoros. Se for jornal ou revista, há manchetes com palavras de extremo impacto, cores e fotos que dão mais destaque ao fato. A repetição e o destaque dado ao tema também são estratégias utilizadas para extrapolar a importância do fato”.
Neste sentido, o psicanalista e médico psiquiatra Jorge Forbes aponta que “querer ver mais não é sempre ter mais verdade”, diz, acrescentando que o que aconteceu foi uma “obscenidade”.
“Justamente porque vivemos aa época em que tudo pode ser transparente, é que devemos saber que existem limites para esta transparência. Limite ao que pode ser visto. E, mais do que nunca, o limite está nas nossas mãos”, disse, no programa Opinião Nacional, transmitido pela TV Cultura. “Se existe uma pessoa mantendo duas meninas em um cativeiro e você quer conversar com esta pessoa, demover esta pessoa da sua posição, encontrar pontos de flexão, não irá marcar um encontro no palco do Teatro Municipal em dia de plateia cheia. A conversa perde intimidade, a sua palavra passa a ser empenhada, você não pode voltar atrás. Não existe conversa desta forma. Não sei como é no Brasil, mas já é prática corrente o afastamento da imprensa”.
Sem autocrítica, a imprensa parece repetir, quatro anos depois, os mesmos procedimentos apelativos no julgamento do caso Lindemberg. O assunto não saiu das manchetes esta semana, ganhando, talvez, uma repercussão maior do que merecia.
“O fascínio continua justamente porque é uma história de crime, recheada de elementos dramáticos, que são potencializados na linguagem da mídia”, avalia Marli dos Santos. “A mãe chorando e passando mal, o criminoso que só agora se manifesta e pede desculpas à mãe da vítima, jovens que se amavam, um amor mal resolvido, paixão cega, tragédia”.

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