Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
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Arquivo MIS/Divulgação
Imagem histórica com alguns dos mais célebres participantes da Semana de Arte Moderna
Três noites - 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 - deveriam definir há 90 anos a vocação cosmopolita de São Paulo, mas o céu estava nublado, fazia um calor insuportável (próximo dos 30 graus) e a elite que patrocinou a Semana de Arte Moderna sofria com o desconforto das poltronas do Teatro Municipal, alugado em nome do empresário René Thiollier por 847 mil réis. Mais interessados em fechar naquela semana a exportação de 2 milhões de sacas de café para a França do que propriamente provar que existiam no Brasil simulacros do futurista Filippo Tommaso Marinetti e do cubista Pablo Picasso, os fazendeiros e empresários que bancaram os modernistas tinham lá seus motivos para gastar tanto dinheiro com um bando de poetas, músicos, pintores e escultores rebeldes, o mais novo com 24 anos (o pintor Di Cavalcanti) e o mais velho com 34 anos (o maestro Villa-Lobos). Um deles poderia ser o de desbancar o Rio como capital cultural e escancarar o potencial moderno de uma província de taipa de pilão, ruas sem pavimento e apenas 20 mil telefones.
Ao sugerir como modelo a Semaine de Fêtes de Deauville, elegante balneário francês, Marinette Prado, mulher do cafeicultor Paulo Prado, patrono da Semana, devia ter em mente apenas um concorrido festival de música, pintura e moda. Porém, eram outros os planos dos modernistas, inclusive do pintor Di Cavalcanti, tido como idealizador do evento. Havia muito de genuína rebeldia entre os protagonistas da Semana de 22 e igual dose de oportunismo, a ponto de um de seus mentores - o escritor Oswald de Andrade, dizem - encomendar uma claque para aplaudir alguns dos colegas e um coro de descontentes para vaiar o poeta carioca Ronald de Carvalho quando declamasse o poemaOs Sapos, do pernambucano Manuel Bandeira, que satirizava os poetas parnasianos, comparando-os a batráquios.
Coaxos, latidos e miados foram ouvidos no Municipal nesse segundo dia da Semana, que marcou o ano zero do modernismo no Brasil, analisado neste número do Sabático pelos professores João Cezar de Castro Rocha, Antonio Arnoni Prado e Elias Thomé Saliba, pelo crítico musical João Marcos Coelho e o curador do Masp, José Roberto Teixeira Coelho. Castro Rocha defende que é hora de reconhecer que o modernismo não começou com a Semana nem se limitou ao eixo Rio-São Paulo. Arnoni Prado, com justa razão, lembra que o historiador Sérgio Buarque de Holanda, embora sem haver participado da Semana, foi um modernista avant la lettre. Elegeu não o espalhafato de Oswald, mas a seriedade de Mário de Andrade como farol da modernidade (auto)crítica. De fato, é só ler o começo e o fim do Prefácio Interessantíssimo de Pauliceia Desvairada (escrito em 1921 e publicado no ano seguinte) para dar razão a ele. Mário inaugura com a obra o desvairismo, para seguir livremente a impulsão lírica, abjurando logo depois, no mesmo texto, a escola poética que fundara. Não só decreta sua morte como diz ao leitor que não veio ao mundo para criar discípulos. Em arte, lembra ele, “escola é igual à imbecilidade de muitos para vaidade de um só”.
O recado parecia ter destinatário certo: o parceiro modernista de primeira hora - e depois desafeto - Oswald de Andrade, cuja obsessão era criar uma escola com discípulos canibais e obedientes aos seus mandamentos de devorar a cultura estrangeira, intenção finalmente revelada seis anos depois da Semana, no Manifesto Antropófago (1928). Ela foi a pré-escola dos inconformistas de 22, decretando a ruptura com a estética do passado (a poesia parnasiana, a pintura acadêmica) no templo da elite esclarecida, o Municipal, ruptura essa convenientemente selada com o dinheiro da alta burguesia e o talento dos escritores Mário e Oswald, dos artistas visuais Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Brecheret e músicos como Villa-Lobos, entre outros. São Paulo, que já era a locomotiva do Brasil, dominando 70% das exportações, fazia renascer o mito do bandeirante paulista para colonizar o resto do País. E Paulo Prado assumia, finalmente, seu papel nos bastidores da Semana. Seis anos depois, quase que simultaneamente ao lançamento do Manifesto Antropófago de Oswald, Prado definiria o brasileiro, em seu livro Retrato do Brasil (relançado e comentado nesta edição por Elias Thomé Saliba), como um povo triste, filho da luxúria, da cobiça e do romantismo.
Mário de Andrade, evidentemente, chegou a um perfil diferente, mais próximo e fiel do brasileiro em seu livro Macunaíma. No entanto, os bandeirantes modernistas de 1922 não estavam lá tão interessados nessa questão de identidade ao organizar a Semana. NoSuplemento Literário do Estado, em 17 de fevereiro de 1962, Di Cavalcanti, ao comentar os 40 anos do evento, garante que a Semana surgiu de uma conversa entre ele, Guilherme de Almeida e o livreiro Jacinto Silva na livraria do último. Ninguém falava em antropófagos e canibais, mas em copiar, sem pudor, o Salão dos Independentes dos franceses. Graça Aranha, diplomata esperto e um ano mais velho que Paulo Prado, então com 52 anos, tinha outros interesses - mais exatamente, a irmã de Prado, Nazaré - e era um acadêmico, autor de Canaã, sobre dois colonos alemães com visões diferentes do mundo. O clássico não é o tipo do livro que modernos levariam para uma banquete antropofágico, até mesmo porque a obra sincrética de Aranha patina entre o idealismo de Tolstoi e o realismo francês.
É certo que Canaã foi publicado 20 anos antes da Semana, mas tentativas como essa de discutir o Brasil da miscigenação de raças, usando como modelo a literatura (e a filosofia) dos europeus, já recebiam críticas bem antes da Semana de 22. Em 1917, Monteiro Lobato, por exemplo, condenou a importação caricatural de estilos pictóricos em voga na Europa por Anita Malfatti (no artigo A Propósito da Exposição Malfatti, publicado no Estado em 20 de dezembro de 1917, depois rebatizado por ele, em livro, de Paranoia ou Mistificação). Lobato, que não era avesso à modernidade (contratou o serviço de ilustradores modernos em sua editora, publicando posteriormente um livro de Oswald com capa de Anita), considerava que a pintura de Malfatti era falsamente revolucionária, por replicar o expressionismo alemão e outras escolas europeias. Mário de Andrade discordou. Comprou O Homem Amarelo (1915-7), uma das telas que voltariam a ser expostas na Semana, no Municipal.
No fundo, Lobato não deixava de ter razão. Assim como Anita, Tarsila foi tocada pelo discurso antropofágico de Oswald, idealizando o Brasil mestiço com as cores dos fauvistas franceses para se converter, após 1930, ao mais rudimentar realismo socialista e acabar pintando murais religiosos e casinhas caipiras. Anita abjurou seu passado modernista e chafurdou na pintura ingênua. Di Cavalcanti, ótimo desenhista, intuitivo e vanguardista mesmo antes de 22, morreu pintando mulatas saídas de um molde único. Brecheret esqueceu as lições de Arp, Brancusi e Metrovic: acabou esculpindo cavalos e militares.
Ao falar da Semana de Arte Moderna 20 anos depois, numa palestra aos estudantes da Faculdade de Direito, em São Paulo, Mário de Andrade disse que estava delirando quando recitou versos no Municipal e que o movimento modernista foi aristocrático e destruidor. No entanto, mesmo que o escritor não tenha vivido para atestar sua ressonância (ele morreu três anos depois da conferência), certo é que movimentos como o Tropicalismo, nos anos 1960, agregaram músicos (Caetano, Gil), artistas plásticos (Oiticica, Gerchman), diretores de teatro (Zé Celso) reverentes ao Manifesto Antropófago de Oswald. Mário estava certo: é na área de pesquisa estética da cultura nacional que a Semana sobrevive no outono de sua rebeldia.
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