Marco Antonio Rocha - O Estado de S.Paulo
Foi realmente engraçado ler no noticiário da última sexta-feira que o governo chinês, por meio do seu Ministério das Relações Exteriores, teria exortado o governo americano a agir com responsabilidade em relação ao problema que tem pela frente: o de como, e com que, pagar os papagaios que vencem daqui a um mês - no caso dos EUA, da ordem de US$ 134 bilhões.
"Esperamos que o governo americano adote políticas responsáveis e medidas que garantam os interesses dos investidores", dizia o porta-voz chinês designado para passar um pito em Tio Sam.
O problema é que o governo americano (o Executivo) está no limite do endividamento permitido pelo Congresso. Uma dividazinha para ninguém botar defeito e que mata de inveja todos os maiores caloteiros e sonegadores de impostos brasileiros: mais de US$ 14,3 trilhões.
Para continuar pagando o que deve e até para manter várias despesas correntes, Mr. Obama não tem mais dinheiro e não pode se endividar mais do que já se endividou. Por isso, os financistas do mundo inteiro prendem a respiração e ficam imaginando que, se o Congresso dos EUA não aprovar uma licença especial para que o Executivo aumente o endividamento, este não terá outra saída, a não ser o velho refrão: devo, não nego, pago quando puder! Como já fez, por exemplo, o governo argentino; como está fazendo, em parte, o da Grécia; e como, de repente, os de Portugal, Itália e Irlanda eventualmente também podem fazer - ou seja, passar o calote.
A diferença é que o calote dos EUA, além de astronômico, é contra o mundo inteiro. Os dos outros são, em geral, muito limitados, ou só contra os EUA e agências internacionais de crédito, FMI e Bird, por exemplo.
É claro que o governo da China se mostra inquieto, pois é o maior credor do governo dos EUA - um papagaio de US$ 1,15 trilhão, até agora. E, considerando que o governo chinês está mergulhado num astronômico programa de investimentos que não pode parar, se os EUA suspenderem a dívida que têm com a China, esta terá de parar de pagar também os seus credores ou suspender os seus investimentos, o que pode prejudicar até o Brasil, eventualmente.
Mas, se olharmos mais para trás, vamos verificar que há muito tempo o mundo inteiro exorta o governo americano a ser mais responsável. Não é de hoje que este se refestela num déficit fiscal irresponsável, num déficit de comércio externo irresponsável, e os cobre todos com dinheiro tomado emprestado, do seu público interno e do público externo, por meio dos títulos do seu Tesouro, num endividamento crescentemente irresponsável.
A China tornou-se sócia da irresponsabilidade com a maneira esperta que inventou para financiar o seu desenvolvimento. Mantém há muito tempo sua moeda depreciada - contrariando as admoestações e solicitações do mundo inteiro -, de modo que suas mercadorias se tornaram bem baratas para os compradores estrangeiros, principalmente americanos. Além do mais, graças a isso também, investidores estrangeiros puderam montar grandes negócios na China com menos capital do que precisariam em seus próprios países - canoa na qual embarcaram dezenas de empresas americanas, inclusive.
A China acumulou, desse modo, imensas reservas em moeda estrangeira, mas não as internaliza, para não criar inflação no seu mercado. Gasta as reservas, ou boa parte delas, na compra de títulos do Tesouro americano, ou seja, financia com as reservas conquistadas por meio do superávit com os EUA os déficits dos EUA. No fundo, é a famosa roda da fortuna, ou o golpe da Pirâmide entre governos: você aplica o seu dinheiro comigo que eu te pago com o dinheiro que você aplicou... y así pasan los dias, hasta cuándo, hasta cuándo??, perguntaria Osvaldo Farrés, talvez, no seu antigo bolero.
De modo que por aí se vê que a nenhum dos dois é dado reprochar o outro falando de irresponsabilidade.
É difícil especular sobre o possível desfecho desse imbroglio entre o Executivo americano e seus congressistas. Uma coisa, porém, é certa: como sempre, o que está em jogo nessa disputa não são os interesses dos países emergentes, ou subdesenvolvidos, dos operários da Grécia ou da Espanha, dos estudantes do Chile ou do povo americano. Nem mesmo os interesses dos governos das outras grandes potências mundiais: Japão, Alemanha, França, Inglaterra, etc.
O que está em jogo é a próxima batalha eleitoral nos EUA: o interesse provinciano do Partido Republicano de derrotar os Democratas, e o de Obama de ser reeleito e derrotar os Republicanos.
A história é conhecida. Há mais de 60 anos o governo Roosevelt assumiu com o mundo um compromisso que tornou o dólar a principal moeda, o lastro de todas as outras. Esse compromisso deu aos EUA mais poder de longo prazo do que a vitória na guerra. Mas era um compromisso que exigia, da parte dos EUA, antes de tudo, respeito por sua própria moeda, e não a sua utilização como pé de cabra das finanças internacionais, que é como as lideranças americanas passaram a vê-la desde então. Infelizmente, não há outra com igual importância.
JORNALISTA
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