domingo, 29 de outubro de 2017

Leandro Karnal Presos em si, OESP

A vida é o corpo em si ou a atividade cerebral ou a combinação de ambos?

Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
29 Outubro 2017 | 03h00
Estamos vivendo mais do que em qualquer outro período da história. Yuval Harari profetiza, no livro Homo Deus, homens centenários ou mais como regra. Nunca seremos imortais, mas estamos eliminando muitas causas para mortes precoces. Nos curtos anos do século 21 que já vivemos, a medicina deu saltos extraordinários. Imaginemos o século diante de nós.
Meu médico e amigo, dr. Jairo Hidal, equivale as estatinas, remédios de controle do colesterol, a saltos do porte das vacinas e da penicilina. Ele afirmou tudo de forma mais técnica e com mais correção, e eu, na minha ignorância médica, captei dessa forma.
Estamos vivendo mais, bem mais. É dialético: temos novos problemas com doenças degenerativas associadas à idade. Crescem o Alzheimer e a demência. A perda da memória é um mal em expansão de uma humanidade mais longeva.
O cérebro é complexo e sua lógica parece estar distante da maior parte do corpo. Tivemos, no Sul, uma vizinha por mais de 50 anos. Próxima e afável, ela virou a “tia” Dulce e chegou a amadrinhar minha irmã. A relação, como costuma ocorrer no Brasil, envolveu um compadrio sólido que a tornou parte da família.
Por motivos ligados à diabete, ela foi internada em uma clínica. Em pouco tempo, o problema médico virou um declínio mental. Aquilo que vi ocorrer com minha avó sucedeu com a doce tia Dulce: o olho perdeu vida, como se nada visse. O “espelho da alma” parecia indicar que não havia mais alma ali. Foi impressionante a velocidade do processo. Havia um corpo, relativamente forte, porém a consciência parece ter dito adeus.
Não sei quais são as metamorfoses internas que ocorrem no cérebro. Como a máquina impressionante deixa de registrar o mundo, de interagir com ele, e de transformar a consciência, seja lá o que reste dela, em uma prisioneira de si.
Tenho esse medo: estar plenamente consciente e não poder interagir ou atuar com o mundo, sem voz, sendo velado em vida, um corpo que respira e um coração que bate, mas uma cabeça que se fecha sobre si. Seria como um conde de Monte Cristo no Castelo de If, só que incapaz de fuga ou de conversas com os outros. Poderia existir prisão mais terrível?
O colapso do cérebro leva à discussão do que seja vida. Se vida é consciência, poderíamos praticar eutanásia com quem a perdeu? Os médicos podem detectar sinais de atividade cerebral e constatar a morte do cérebro, todavia tudo parece nebuloso quando se trata dele, continente vasto e complexo e parcialmente conhecido.
A vida é o corpo em si ou a atividade cerebral ou a combinação de ambos? A vida pertence ao indivíduo e ele pode estabelecer, em determinadas condições de prejuízo físico, pedir pelo fim dela? Seria humano atender ou seria humano recusar tal pedido? A vida seria, como querem muitos, um valor superior ao conforto ou à própria liberdade individual? São decisões complexas.
Filósofos estoicos chegaram a dizer que eu posso determinar o fim da minha vida. “Sê teu próprio libertador” era mote corrente. Gente marcada pelo estoicismo cometeu suicídio: Cícero e Sêneca.
Posso definir a atividade biológica como eixo da vida. Enquanto há vida, há esperança, diz axioma tradicional. Há muitos motivos bons para viver. Acima de tudo, existe a vontade de viver como algo definidor da luta. Mesmo um religioso, um santo, um papa como João Paulo II, após uma luta intensa contra a debilidade crescente e a doença de Parkinson, decidiu, segundo informou o próprio Vaticano, não ir novamente ao hospital para novos e invasivos tratamentos já sabidos como paliativos e inúteis. São João Paulo II jamais se mataria, no entanto decidiu não prolongar a vida de forma artificial por mais tempo.
Já vi todos os tipos de reação ao fim. Pessoas tranquilas, ansiosas, apavoradas e outras resignadas. A todos, eu analisei (a partir) do meu estado atual, em plena consciência cerebral e corpo sem danos estruturais. Que podemos entender do fim enquanto não for o nosso? Como julgar alguém devastado pela dor, incomodado pela dependência ou limitado pela memória?
Eu não tenho resposta para isso, pois seria como especular como eu vou me sentir após minha primeira viagem para fora da Via Láctea. Preciso aguardar pelo momento certo para estabelecer algo. Todavia, há coisas que eu sei. A dor da perda da consciência ou o drama do colapso físico pertence a uma subjetividade muito, mas muito, pessoal. A mim, cabe apenas algo: ajudar. A limitação de outro mais velho ou mais doente é um desafio complexo. Não consigo saber com certeza quais os padrões que determinam a vida. Não tenho conhecimento médico. Sei que a vida digna passa pela minha dedicação a quem sofre uma limitação. O direito ou a negativa de continuar vivendo é um tema complexo e cada um pode ter sua opinião. Essa opinião, com certeza, pode mudar na undécima hora.
Há algo que não depende de opinião sobre amparar quem está perto da morte: nossa responsabilidade. Se você se recusa, já cometeu suicídio moral. O corpo pode estar vivo, entretanto houve um Alzheimer ético. É terrível perder a liberdade com um declínio físico ou cerebral. É ainda mais terrível perder a dignidade humana com o pleno funcionamento do corpo e da consciência. Para a demência, espero, um dia encontrem cura. Para a indiferença, nunca existirá. Apenas me ocorre a sentença inexorável de uma vingança: você, um dia, estará lá. Hoje é aniversário da tia Dulce. Bom domingo para todos nós.

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