terça-feira, 2 de julho de 2024

Necropolítica nacional sentou praça no Congresso, FSP

 Após nove anos cozinhando o galo, o STF (Supremo Tribunal Federal) botou um ovo de serpente ao se pronunciar sobre o porte de Cannabis para uso pessoal. Policiais seguirão na função de juízes, decidindo na rua quem é traficante ou usuário.

O STF reconheceu, é verdade, que havia viés racial na prática anterior de quase sempre enquadrar pretos e pobres como traficantes, como bem celebrou Djamila Ribeiro. Talvez o arbítrio dos agentes resulte um pouco dificultado com o limite objetivo que rebaixou de crime para ilícito a posse de até 40 g da maconha. Talvez.

Já o advogado Cristiano Maronna, que representou o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) na ação de 2015 no Supremo, apontou a Mônica Bergamo que a decisão favorece "apenas o playboy" consumidor da droga.

Homem segura um cigarro de maconha com as duas mãos durante a Marcha da Maconha em São Paulo
Com a descriminalização do porte da maconha pelo STF, policiais seguirão na função de juízes, decidindo na rua quem é traficante ou usuário - Felipe Iruatã - 16.jun.24/Folhapress

"A pressão que a extrema direita fez sobre o STF funcionou", disse ele à colunista. "O STF se impôs uma autocontenção exagerada. Ficou aquém das decisões tomadas pelas Supremas Cortes de Argentina, Colômbia, México e África do Sul."

A premissa dos 40 g pode terminar posta de lado quando houver testemunho policial e provas ancoradas nele. Se PMs se investem do poder de matar jovens pardos a qualquer tempo, o que os impedirá de dar falso testemunho e forjar provas?

Maronna assinalou ainda que muitos dos alvos da violência policial são usuários de outras drogas, como o crack. Por prudência ou pusilanimidade (decida o leitor), o ministro Gilmar Mendes as excluiu de seu voto inicial. Abriu a porteira, e a carneirada passou.

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Não existe motivo plausível, jurídico ou científico, para fazer essa distinção entre maconha e outras drogas, como observou Hélio Schwartsman. Ela deriva de puro cálculo político; melhor dizendo, do temor de que a decisão constitucional espicaçasse a húbris parlamentar.

Sobre as supremas cabeças paira a PEC das Drogas, desembainhada em setembro pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), após o STF ousar avançar na pauta. Na mesma terça-feira (25) da decisão tão protelada, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) oficializou a comissão especial que a analisará.

A comissão já havia sido formalizada uma semana antes por Lira, mas ele só a fez publicar quando a corte se pronunciou. Também na mesma data o deputado alagoano completou 55 anos, que comemorou em Portugal durante festa do grupo Esfera Brasil, um "esquenta" do Fórum Jurídico de Lisboa, vulgo "Gilmarpalooza".

Pela praxe da Câmara, a composição da comissão seguirá a proporcionalidade das bancadas. Em outras palavras, será dominada pela centro-direita com que cinco ministros do Supremo confraternizam sem corar no convescote lisboeta de Gilmar.

Nenhum dos comensais, juiz, empresário ou banqueiro, se incomoda com Pacheco e Lira brandirem a PEC das Drogas não por convicção, mas oportunismo. Para manter controle sobre a própria sucessão, querem adular a bancada da bala e da bíblia, que depende de realimentar pânico moral entre apoiadores para se reeleger.

Pouco importa se meninos e rapazes escuros forem mortos ou encarcerados injustamente, ao arrepio de garantias constitucionais. A necropolítica sentou praça no Congresso –eis o maior legado das trevas bolsonarianas com que o andar de cima e a Faria Lima voltam a flertar.

O que esperar, se não a mais abjeta amoralidade, de gente que propõe tratar como assassinas garotas estupradas que ultrapassam a 22ª semana de gravidez porque profissionais de saúde fundamentalistas se recusam a realizar abortos a que elas têm direito por lei?


Lula acha que pode tudo, Elio Gaspari, FSP

 No segundo ano de governo, pode-se tudo. A conta só chega durante a campanha eleitoral.

O presidente Lula com a mãe no rosto
O presidente Lula, durante cerimônia de assinatura do contrato de Fortalecimento do Plano Amazônia - Pedro Ladeira - 17.jun.2024/Folhapress

POLÍTICA AMERICANA

O crescimento da candidatura presidencial de Donald Trump disseminou a mania global de se falar mal do Partido Republicano. É verdade que ele segue Trump com suas malfeitorias, mas pouca atenção se dá à decadência do Partido Democrata.

Os democratas carregam Joe Biden porque não conseguiram produzir nada melhor. Uma das raízes desse problema está na influência do casal Bill e Hillary Clinton com suas redes de alianças e interesses. Esse domínio explica, entre outras coisas, o afastamento do ex-presidente Barack Obama.

GRANDE RICUPERO

Os 30 anos do Plano Real foram comemorados com autoexaltações da equipe de economistas que, de forma brilhante, conceberam sua moldura teórica.

Infelizmente na segunda metade do segundo tempo reconheceu-se a importância do papel de Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda.

Infelizmente deixaram como pitoresco coadjuvante o presidente Itamar Franco. Sem Itamar e sua decisão de tomar riscos, FHC estaria condenado a disputar uma cadeira de deputado e os professores continuariam redigindo trabalhos acadêmicos.

Dessa fogueira de vaidades escapou, com brilho, o embaixador Rubens Ricupero, que substituiu FHC na Fazenda. Foi um ministro correto e detonou-se dizendo que falava do que havia de bom e escondia o que havia de mau. Não sabia que estava sendo gravado e perdeu o cargo.

Relembrando esses tempos, disse ao repórter Luiz Guilherme Gerbelli: "Caí porque disse muita bobagem".

Ricupero completou 50 anos no serviço público sem ter dito outras bobagens e sem circular na porta giratória do mercado. Se as pessoas reconhecessem suas bobagens com a lisura de Ricupero, as coisas melhorariam bastante.