A volta do carro popular é o principal tema da indústria automotiva neste momento. A ideia agrada tanto a revendedores –ansiosos pela retomada do movimento nas lojas– como a montadoras. O assunto está sendo analisado pelo MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços).
O plano é lançar modelos movidos apenas a etanol, que custarão entre R$ 50 mil e R$ 60 mil. Os motores deverão ser os mesmos 1.0 utilizados atualmente, mas com ganhos em desempenho e consumo.
A escolha do combustível está relacionada a metas de descarbonização. Se os carros forem flex, o mais provável é que os consumidores priorizem a gasolina na maior parte do país, devido à relação entre a autonomia e o preço praticado nas bombas.
A proposta é oferecer um produto com maior apelo ambiental e, dessa forma, costurar uma categoria de tributação exclusiva, adequada ao novo arcabouço fiscal.
Uma das possibilidades é substituir a nomenclatura "carro popular" por "carro verde". Será necessário fazer um trabalho junto ao público-alvo para mostrar as vantagens do etanol e exorcizar antigos fantasmas, como o medo do desabastecimento e a disparada repentina dos preços.
O grupo Stellantis, que reúne as marcas Citroën, Fiat, Jeep, Peugeot e RAM, é o mais animado com o tema. A empresa trabalha há tempos com a possibilidade de relançar carros movidos somente a álcool, além de oferecer opções híbridas.
A companhia anunciou nesta sexta o projeto Bio-Electro, que estabelece parcerias para acelerar o desenvolvimento de veículos que combinam eletricidade e etanol.
Antonio Filosa, presidente do grupo na América Latina, tem insistido no combustível de origem renovável. Caso o projeto seja posto em prática, é provável que a companhia corra para repetir o êxito obtido em 1990 com o Uno Mille.
O carro chegou às lojas dois meses após o governo Collor reduzir o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para modelos com motores de 800 cm³ a 1.000 cm³. A alíquota caiu de 37% para 20%.
A Fiat aproveitou o que tinha na prateleira e lançou um modelo que não trazia encostos de cabeça entre os itens de série. O sistema de ventilação tinha saídas de ar apenas na parte central do painel, e o retrovisor do lado direito não estava disponível.
É importante lembrar que o mercado brasileiro começava a se abrir naquele momento. Os carros disponíveis eram ultrapassados e rentáveis, muito distantes de importados que começavam a chegar. Produzi-los aqui também era inviável: a importação dos equipamentos robotizados necessários havia sido proibida por anos, a indústria estava obsoleta.
Os automóveis populares dominaram o mercado por quase 40 anos, mas a busca por rentabilidade em meio à queda nas vendas foi minando a proposta.
As montadoras tiveram que aperfeiçoar seus veículos para atender a normas ambientais e de segurança, e a margem de lucro mais apertada dos carros "mil" tornava esses produtos desinteressantes para as marcas.
Em um cenário de juros baixos e inadimplência sob controle, a indústria começou a apostar em modelos de maior valor agregado. Veio então a onda dos utilitários compactos, que hoje são os modelos de maior sucesso.
A crise no setor, contudo, se avolumou ao longo da década passada. Quando parecia que as coisas iriam melhorar, veio a pandemia de Covid-19.
A ociosidade nas linhas de montagem e as paradas de produção registradas por queda na demanda são sinais de que o modelo atual não se sustenta.
Montadoras são multinacionais, e hoje investem na transformação de fábricas de carros a combustão em unidades dedicadas a baterias e carros elétricos.
Esse movimento consome bilhões de dólares na Europa, na China e, mais lentamente, nos Estados Unidos. Sobra pouco para investir em mercados emergentes.
Ao ficar de fora dos planos globais, o risco da desindustrialização aumenta no Brasil. O cenário ideal seria o país virar a chave e também receber aportes para montagem local de carros elétricos, mas é um passo ainda distante, que só vai ocorrer quando esses veículos ganharem escala mundial e, com os custos amortizados, se igualarem em preço às opções a combustão.
A chegada de fábricas de modelos eletrificados –como as instalações das chinesas GWM e BYD– são importantes e indicam o futuro, mas o momento atual também exige volume de produção para justificar tantas plantas em operação Brasil afora.
Por isso, a proposta da volta dos carros populares está em alta. Quando os preços dos automóveis 1.0 mais simples ultrapassaram os R$ 65 mil, esse conceito perdeu o sentido.
O problema não está no valor em si, mas na rápida elevação que ocorreu ao longo da pandemia. O Fiat Mobi Like, por exemplo, custava R$ 43,7 mil em janeiro de 2020. Neste mês de março, o mesmo carro é anunciado por R$ 69 mil, uma alta de 57,9%.
Os aumentos foram acompanhados das seguidas altas nas taxas de juros, que se somam à inflação geral e à perda de renda da população. Comprar um veículo zero-quilômetro tornou-se, novamente, um sonho distante.
Os planos de agora, entretanto, não são originais. Muda-se a receita, mas os ingredientes básicos são os mesmos. Os modelos populares são filhos das crises econômicas desde os anos 1960.
Os primeiros surgiram no fim de 1964 para atender a um programa de incentivos criado pelo governo militar. Os carros eram oferecidos em lotes liberados pela Caixa Econômica Federal. Para custar menos, eram simplórios.
O Willys Teimoso, por exemplo, tinha bancos dianteiros que se resumiam a uma forração levemente acolchoada fixada diretamente na estrutura de metal, que ficava aparente. Grosso modo, lembrava uma maca antiga.
O carro era a versão depenada do Gordini, que perdeu 65 quilos em equipamentos e adereços. Não havia setas: o motorista precisava sinalizar com a mão antes de fazer as conversões.
A ideia não durou dois anos. Quem adquiria um modelo desse tipo buscava equipá-lo para obter algum conforto e status. Além do Teimoso, carros como os Volkswagen Pé-de-Boi, os DKW-Vemag Pracinha e os Simca Profissional foram descaracterizados.
Os carros de agora, contudo, não seriam tão empobrecidos como no passado. A legislação relativa à segurança será mantida, o que garante, ao menos, a presença de airbags frontais e freios com ABS (sistema que evita o travamento das rodas em paradas de emergência).
Já as centrais multimídia e outros itens conectados não devem fazer parte dos pacotes de série. Ainda não se sabe se os modelos terão ar-condicionado incluso na lista básica, mas os sistemas de direção com assistência elétrica tendem a ser mantidos.