domingo, 22 de dezembro de 2019

‘PERTENÇO À GERAÇÃO PERDIDA - NO TEMPO’ Luis Fernando Verissimo, OESP

Para começar, uma confissão. Não sei a qual geração pertenço. Se for me definir pela data do meu nascimento, pertenço à geração perdida – no tempo. Mais especificamente, estava em Nova York quando as ruas se encheram de gente comemorando o fim da Segunda Guerra Mundial, com idade suficiente para entender a alegria do dia, mas sem idade para entender o significado maior da data. Começava a Era Atômica, e nomes como Hiroshima e Nagasaki passariam a fazer parte da biografia mesmo de quem mal entendia o que acontecera nas duas cidades arrasadas. Depois viriam as provas das atrocidades cometidas pelos nazistas, em Auschwitz e outros campos de extermínio na Europa. Minha geração, fosse qual fosse seu nome, era a primeira a dar de cara com horrores documentados, fotografados, explícitos de uma guerra mundial, e com exemplos antes inimagináveis da estupidez humana.
O alívio e a euforia com o fim da Segunda Guerra Mundial, e talvez a consciência da precariedade da nossa existência depois da destruição de populações inteiras em poucos segundos em Hiroshima e Nagasaki, deram origem a uma explosão demográfica no mundo e principalmente nos Estados Unidos, um “boom” de sexo, casamentos e fertilidade que criou a geração dos “baby boomers”. Economistas como Maynard Keynes prometiam que a economia mundial pós-guerra se comportaria racionalmente, novas entidades reguladoras de relações internacionais como a ONU asseguravam que jamais haveria condições para outra guerra, os “boomers” podiam se reproduzir à vontade e seus “babys” cresceriam num admirável mundo refeito.
Ainda existem “boomers” no mundo, o mundo é que não correspondeu às suas melhores expectativas. Na conferência realizada em Breton Woods logo depois do fim da guerra Keynes fez os melhores discursos em favor de economias organizadas e solidárias, mas o resultado prático da conferência foi a formalização da transferência do centro da economia mundial, da Inglaterra combalida para os Estados Unidos triunfantes.
‘Aproxima-se
‘Aproxima-se o dia em que os smartphones vão conspirar contra nós’. Na foto, coletiva de imprensa em ParisCHARLES PLATIAU / REUTERS - 1/10/2017
Dar um pulo dos “boomers” aos “millennials” é pular sobre várias eras e gerações. O que os aproxima é a ciência da informática, que os “boomers” ainda pegaram iniciando, e os “millennials” hoje dominam. Se poderia tentar uma rápida filosofia sobre duas tragédias que marcaram as gerações dos “boomers” e a geração dos “millennials”, o começo da Era Atômica e as revelações sobre as atrocidades nazistas que os “boomers” traziam pelo menos numa vaga memória coletiva, e a destruição do World Trade Center, ainda viva na memória individual dos “millennials”, mas a analogia seria forçada.
Outra confissão: sou um analfabeto em informática. Uso o teclado do computador como o de uma máquina de escrever, recorro ao e-mail para correspondência rápida e ao Google para erudição instantânea. Para outros mistérios da máquina infernal, recorro ao filho ou filha mais à mão. A geração dos “millennials” já nasce sabendo tudo sobre computadores, internet e celulares inteligentes e aproxima-se o dia em que os “smartphones” serão mais inteligentes do que a gente, conversando entre si num código que só eles entendem e, claro, conspirando contra nós, que já cumprimos nosso dever histórico, inventando-os, e agora devemos desaparecer.
Já existe uma farta literatura premonitória sobre justamente isso, a tomada do poder por robôs indestrutíveis, que nos humilham em partidas de xadrez enquanto esperam o momento de nos eliminar. O cinema já usou, mais de uma vez, a ideia de focos de resistência se opondo aos robôs, recorrendo à guerrilha com bazucas e lança-chamas contra o inimigo onipotente. Mas, que eu saiba, ninguém ainda imaginou um roteiro em que os inimigos não sejam grandes robôs blindados, mas os pequenos celulares que as pessoas levam ao ouvido sem desconfiar que minirraios desmancharão seu cérebro em minutos. Segundo alguns, isso é exatamente o que os celulares vêm fazendo há anos, sem esperar pela ficção.
A geração “millennial” não dá muita atenção aos seus críticos. Sabe que o futuro é seu. O meu medo é que daqui a alguns anos batam à minha porta e seja a Polícia de Hábitos e Costumes, que veio me buscar porque ainda me recuso a aderir ao milleannismo, apesar dos protestos dos meus netos.

Nascido em 1936 em Porto Alegre, o escritor, humorista e músico Luis Fernando Verissimo começou a trabalhar como publicitário e revisor de jornal até iniciar a carreira literária, seguindo (ainda que distante) a trilha do pai, Erico Verissimo. Autor de mais de 60 livros, criou personagens que se tornaram referência como o Analista de Bagé, o detetive Ed Mort e os personagens da Família Brasil. É colunista do Estado.

AMAZÔNIA: UMA CATÁSTROFE SE APROXIMA, Milton Hatoum, OESP

Depois de fazer uma longa e tumultuada viagem de Manaus às cabeceiras do Rio Purus, Euclides da Cunha escreveu uma série de artigos e ensaios sobre a Amazônia, reunidos no livro póstumo À margem da história (1909). Nele, o autor de Os Sertões faz uma crítica aguda à atividade predadora do extrativismo do látex e ao trabalho semiescravo dos seringueiros.
São famosas estas frases euclidianas: “O seringueiro é um homem que trabalha para escravizar-se”. Ou: “Os ‘caucheiros’ aparecem como os mais avantajados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai exterminando naqueles sertões remotíssimos os mais interessantes aborígenes sul-americanos”.
O uso do verbo “exterminar” não é um exagero retórico. Euclides percebeu que o extrativismo predador operava uma dupla destruição: da floresta e dos povos indígenas. Durante o Ciclo da Borracha (1880-1920) mais de 30 mil indígenas da região de La Chorrera (Colômbia) foram escravizados, torturados e assassinados por capatazes da Peruvian Amazon Company. Essas atrocidades – conhecidas como “O massacre do Rio Putumayo” – constam no relatório de Roger Casement, um diplomata britânico nascido na Irlanda. Em 1910, Casement, que era cônsul em Belém, viajou a La Chorrera, onde testemunhou e depois divulgou as barbaridades cometidas por capangas de barões da borracha.
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‘Desde a redemocratização, nenhum governo refletiu seriamente sobre a diversidade da Amazônia’. Na foto, plantação de eucalipto queimadaGABRIELA BILÓ / ESTADÃO - 25/8/2019
No século passado, as tentativas de “ocupar” e “desenvolver” a Amazônia foram, além de fracassadas, extremamente danosas ao meio ambiente e aos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores. Alguns exemplos conhecidos: Fordlândia, no Vale do Tapajós (1927-45); a Rodovia Transamazônica e o Projeto Jari (empreendimento agroflorestal e industrial de Daniel Ludwig), ambos realizados no começo dos anos 1970. A partir desta década, a grilagem de áreas de proteção ambiental, terras da União e territórios indígenas, e a ação predadora de mineradoras, madeireiras e grandes fazendeiros, se intensificaram, e nunca foram interrompidas.
Esses “empreendimentos”, nefastos aos povos da floresta, estimularam um fluxo enorme de migração interna, gerando mais miséria e violência em municípios e capitais da região.
Desde a redemocratização do País, nenhum governo refletiu seriamente sobre a diversidade social, econômica, geográfica, cultural e antropológica da Amazônia. Obras megalômanas – como construções de hidrelétricas – afetam duramente indígenas e moradores de vilas, comunidades e cidades. Uma crítica lúcida e bem argumentada a essas edificações faraônicas foi feita pelo premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto no livro A Amazônia em questão: Belo Monte, Vale e outros temas (B4 editores, 2012).
Mas é também verdade que nenhum governo anterior a este foi tão cúmplice da destruição do bioma amazônico. O ministro do Meio Ambiente, incapaz de entender a complexidade da Amazônia, nem sequer se interessa pelos anseios e pelas expectativas de sua população. Além disso, ignora estudos de cientistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Museu Goeldi, Instituto Butantan (Belterra), Fiocruz e de universidades brasileiras. Nesse aspecto, o ministro é coerente com as correntes do governo que desprezam o conhecimento científico, as humanidades e a tecnologia.
São inúmeros os diagnósticos, análises, pesquisas científicas e antropológicas feitos por estudiosos brasileiros e estrangeiros. Um exemplo notável é o volume Amazônia: do discurso à práxis (Edusp, 2.º ed., 2004), do saudoso geógrafo Aziz Ab’Sáber. Os ensaios reunidos nessa coletânea são importantíssimos para a compreensão da Amazônia. Mas nada disso parece sensibilizar o primeiro mandatário e sua equipe ministerial, cujo desprezo por um mínimo de racionalidade terá consequências desastrosas, senão trágicas, para todo o País.
A tragédia não se limita ao desmatamento e à invasão de terras indígenas. É preciso lembrar que nas cidades da Amazônia, onde vive a grande maioria de seus habitantes, a desigualdade é brutal. Em 1905, Euclides da Cunha já alertava para o contraste social e econômico em Manaus, que crescia “à gandaia”. Hoje, mais de 60% dos domicílios dessa cidade não têm acesso ao saneamento básico, e 30% ao abastecimento de água. Esses índices – também alarmantes quanto à violência em Manaus, Belém e outras capitais – refletem a miséria e a degradação urbana na região mais rica em recursos naturais do planeta.
Mas quem de fato usufrui dessa riqueza? Quem realmente se beneficia com a exportação de minérios, madeira e com a construção de hidrelétricas? Para que serviu a construção, em Manaus, da Arena da Amazônia? Ou da Arena Pantanal, em Cuiabá?
Vários artigos publicados em revistas científicas sérias já alertaram para a alta concentração de gases de efeito estufa sobre a floresta tropical, o que certamente será desastroso para o Brasil e para todo o planeta. Uma catástrofe se aproxima. Mesmo assim, o presidente está interessado em exportar troncos de árvores nativas.
Se argumentos científicos não convencem os que professam uma fé fervorosa na irracionalidade, é o caso de perguntar: quais ambições estão ocultas nessa sanha devastadora da Amazônia? Ou: o que há por trás de tantos atos irracionais? Sem dúvida, um alucinado projeto de poder. Mas esse projeto tem aliados poderosos, dentro e fora do Congresso. O empenho do governo federal em perdoar multas ambientais e fragilizar a fiscalização de atividades predadoras é uma carta branca aos grandes grileiros e incendiários. Não se trata de política liberal. O nome disso é barbárie mesmo.

Milton Hatoum nasceu em 1952, em Manaus. Formado em Arquitetura pela USP, trabalhou como jornalista cultural e foi professor universitário de História da Arquitetura e depois de Literatura Francesa. Seu romance de estreia, Relato de um certo Oriente, ganhou o Prêmio Jabuti em 1989. Sua obra já foi traduzida para 12 línguas e publicada em 14 países. É colunista do Estado.

Agromito, J. R. Guzzo, OESP

J. R. Guzzo, O Estado de S.Paulo
22 de dezembro de 2019 | 03h00


Pergunte a um alemão ou holandês qualquer, desses que você pode encontrar em cada esquina de primeiro mundo, o que ele acha da agricultura brasileira. Ou, então, faça a mesma pergunta a essa menina sueca que anda a pé através do planeta para não emitir carbono, e se transformou na santidade máxima de todas as cruzadas ambientalistas atuais – uma fraude em escala mundial que é bajulada por chefes de Estado assustados, presidentes de multinacionais trilionárias e 100% das celebridades existentes sobre a face da Terra, de Jane Fonda a Michelle Obama. Pergunte, já que se falou de gente graúda, ao presidente da França, à rainha da Noruega ou a algum sumo sacerdote de Oxford ou de Harvard. Todos podem dar uma resposta mais ou menos assim: “Cada saca de soja colhida no Brasil representa 100 árvores destruídas na Amazônia” – ou 1.000, ou quantas lhes der na telha.
É um desses disparates absolutos que as pessoas ouvem o tempo todo em nossos dias – uma agressão grosseira à matemática, à geologia, ao resto do conhecimento científico da humanidade e ao mero bom senso comum. No entanto, vá o sujeito tentar demonstrar, com base em evidências físicas, que uma saca de soja não equivale à derrubada de árvore nenhuma na Amazônia. Se tiver sorte ouvirá apenas que é um agente, talvez pago, do agronegócio, da indústria de “tóxicos” ou do capitalismo no campo – um pecado só permitido para as propriedades agrícolas e pecuárias do Primeiro Mundo. Na pior das hipóteses pode se ver transformado em réu por crime de lesa-ambiente. 
Estamos de volta, aí, à Idade Média plena, quando o conhecimento era condenado como pecado mortal. Fatos eram proibidos. As Gretas, Michelles e Janes da época tinham certeza de que, se um cidadão passasse na sua frente numa encruzilhada e não fizesse sombra, então não tinha jeito – era lobisomem. O que temos hoje, em toda essa questão, não é ciência. É vodu ambiental. É curioso observar uma onda de ignorância tão maciça quanto a que reina hoje nas sociedades mais instruídas, mais ricas e mais civilizadas do mundo quando falam de “ambientalismo”. Essa gente ouve Beethoven, assiste a Molière e ganha prêmios Nobel, mas acredita em qualquer coisa que lhe dizem sobre a “destruição” da Amazônica. É um fenômeno da nossa época: o avanço da ignorância induzida, fabricada sob medida e altamente financiada, para obter resultados materiais que não têm nada a ver com a conservação da “floresta” em estado virgem.
Os fatos, e nada mais, provam a completa irrelevância da Amazônia para a agropecuária brasileira. Pouco mais de 2% de todo o bioma Amazônia é ocupado por algum tipo de lavoura, incluindo as temporárias – o pé de mandioca que o infeliz planta aqui e ali para não morrer de fome, se a senhorita Greta dá licença. Das 530.000 propriedades agrícolas locais, menos de 4% são classificadas como “grandes” – ou seja, capazes de produzir a soja ou o milho que deixam o Primeiro Mundo horrorizado. Não dá para enganar, quando se trata desses números – é o que sai nas fotos dos satélites.
O problema é outro – totalmente outro. Ele não tem nada a ver com a Amazônia, e sim com o resto do Brasil, do Rio Grande do Sul ao norte de Mato Grosso, que está produzindo 240 milhões de toneladas de grãos na safra deste ano, a maior de todos os tempos. Apenas 10 anos atrás, o total foi de 135 milhões de toneladas – e é impossível um país aumentar em quase 80% a sua produção em tão pouco tempo, tornando-se o maior produtor agrícola do mundo ao lado do Estados Unidos, sem incomodar ninguém. Em 2020, aliás, a safra deve continuar subindo.
Você pode acreditar que isso é só mania de “conspiração”. Também pode acreditar em lobisomem.