O movimento sindical urbano
Juscelino Kubitschek assumiu o mandato sustentado por uma aliança, então já consagrada, entre dois grandes partidos: o PSD e o PTB. Segundo analistas, a eleição de JK em 1955 pode ser considerada o "ponto ótimo" dessa aliança, que se iniciou com a eleição de Dutra em 1945 e fez água a partir da eleição de Jânio Quadros em 1960. Juscelino foi, eleitoralmente, o sucessor deGetúlio Vargas, cujo suicídio reverteu um quadro de ascensão política do partido da oposição, a UDN. Sabia, portanto, como todos na época, que só uma sólida união entre o pessedismo e o trabalhismo getulista poderia sustentar sua eleição e posse. A chapa PSD-PTB acabou por se materializar com a escolha deJoão Goulart, o Jango, para concorrer a vice-presidente ao lado de JK.
É preciso entender a grande importância política que o vice-presidente João Goulart assumiu no governo JK, particularmente no que diz respeito aos contatos na área trabalhista, em que era bastante experimentado por sua condição de ex-ministro do Trabalho de Vargas e de grande líder de seu partido, o PTB. Jango foi o principal contato e o mais importante negociador do governo com o conjunto das lideranças sindicais da época - uma função que teve que administrar com habilidade, sobretudo porque a UDN e seu maior expoente, Carlos Lacerda, jamais abandonaram os ataques e as denúncias de um crescente "perigo sindicalista comunista" que rondaria o país.
A manutenção da "paz e da tranqüilidade" dentro das regras democráticas foi assim uma conquista permanente do governo, para a qual as figuras de Juscelino e Jango muito contribuíram. Pode-se dizer que foi Jango, em grande medida, quem intermediou todos os conflitos que emergiram do mundo sindical e quem absorveu os desgastes inevitáveis, até certo ponto aliviando e preservando JK. Em sua atuação combinaram-se o estímulo à ação dos sindicatos e o controle de manifestações mais radicais que pudessem comprometer a ordem social.
De uma maneira muito sintética, pode-se dizer que os anos JK não foram infensos à ocorrência de agitações na área do trabalho organizado. Houve greves que mobilizaram sindicatos fortes como os dos ferroviários, marítimos, metalúrgicos, bancários e gráficos, em algumas importantes cidades do país. Nenhuma, contudo, com as dimensões dramáticas daquela conhecida como a "greve dos 300 mil", ocorrida em São Paulo em 1953, ainda no governo Vargas. Nenhuma também como as que iriam ocorrer após setembro de 1961, quando Jango se tornou presidente da República, após a renúncia de Jânio. Ou seja, o que caracterizou os movimentos ocorridos durante os anos JK foi o fato de terem encaminhado demandas que, em geral, foram negociadas mesmo antes de chegar à Justiça do Trabalho. Mas houve greves importantes e muito tensas, como a chamada greve dos 400 mil, que aconteceu em outubro de 1957, no estado de São Paulo.
Além das greves, houve sobretudo a atuação dos sindicalistas, que se utilizaram do momento de distensão política e da posição estratégica e simpática do vice-presidente para conseguir ganhos materiais e simbólicos para os trabalhadores. Foi um período em que a presença dos sindicatos se afirmou no curso das negociações trabalhistas, com suas lideranças ganhando visibilidade e prestígio em função de uma conjuntura política e econômica favorável.
O movimento sindical brasileiro atravessava então uma fase de crescimento (em termos de número de sindicatos e de trabalhadores sindicalizados), que se iniciara quando da volta de Vargas ao poder, em 1951, e que entraria em declínio com a repressão desencadeada pelo movimento militar em 1964. Esse fortalecimento pode ser melhor dimensionado quando alguns aspectos do governo JK são lembrados nesse campo específico. Um deles diz respeito à aceleração do crescimento econômico e do número de empregos trazido pela política desenvolvimentista. Apenas para se ter uma idéia, o PIB do país passou de 20,4% em 1955 para 25,6% em 1960.
Outro aspecto se refere ao poder aquisitivo do salário mínimo, que após muitos anos sofrera uma elevação de 100% no governo Vargas, mas cujos reajustes ocorriam a cada três anos. Durante o governo JK, o prazo desses reajustes foi encurtando, até se chegar ao reajuste anual. O valor real do salário mínimo foi assim mantido, a despeito da inflação então ocorrida. Isso deu à classe trabalhadora urbana uma situação razoavelmente confortável, pois havia emprego e salário. Tratava-se de uma circunstância histórica que, sem dúvida, associava as possibilidades trazidas pela política econômica com a capacidade crescente de pressão dos sindicatos, onde as lideranças de esquerda (inclusive comunistas identificados como tais) ganhavam mais espaço, deslocando os antigos sindicalistas de uma grande e rica máquina sindical montada nos anos 1940.
Em todo esse delicado equilíbrio de forças, a importância do Ministério do Trabalho, controlado por Jango e pelo PTB, é muito significativa. Do ministério e de seu Departamento Nacional do Trabalho, que se desdobrava nas Delegacias Regionais do Trabalho, partiam as orientações e as negociações que garantiam que as reivindicações e greves tivessem um curso não explosivo. Havia assim uma espécie de condução negociada dos conflitos, que associava controle político com boas doses de liberdade sindical. Uma liberdade que se alimentou de recursos de poder que cresceram muito na ocasião, especialmente após a aprovação, em agosto de 1960, da Lei Orgânica da Previdência Social, projeto que estava no Congresso havia anos. Essa lei assegurou aos órgãos sindicais 1/3 dos lugares nos conselhos executivos que fiscalizavam todas as agências da Previdência Social, isto é, os poderosos Institutos de Aposentadorias e Pensões (os IAPs), que se organizavam por categorias profissionais. Não é difícil de imaginar a ampliação da área de ação e do poder que o direito a esse tipo de representação deu ao movimento sindical brasileiro.
A experiência do movimento sindical durante o período JK teria desdobramentos importantes. Eles podem ficar mais claros quando se observa a greve ocorrida em novembro de 1960, já no final do governo Juscelino, quando Jango (já reeleito vice- presidente ao lado de Jânio Quadros) recuou de seu habitual papel de intermediador, numa atitude de, digamos, prudência política. A greve foi claramente reconhecida como uma greve "política", pois lutava pela "paridade" dos vencimentos concedidos a funcionários civis e militares, já que estes últimos haviam recebido aumentos salariais. Ela atingiu o setor de transportes ferroviários e marítimos, desencadeou uma forte repressão e pode ser pensada como um exemplo das tensões que começariam a ser vividas no decorrer da década de 1960. Essas tensões não só se avolumaram no espaço urbano, como se tornariam mais intensas ainda no setor rural.
Ângela de Castro Gomes
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