A sinuosa saga do Copan
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Quem vê hoje o sinuoso Copan erguendo-se no centro de uma cidade em que edifícios de porte semelhante pululam aqui e ali em questão de meses não imagina os esforços consumidos para que suas curvas passassem a dominar a avenida Ipiranga.Foram mais de duas décadas desde que a ideia surgiu, nas dependências do Banco Nacional Imobiliário, em 1951, até que se solicitasse o último "habite-se" do edifício, em 1974.
Durante todo esse período --interrompido aqui e ali por problemas variados, indo das incertezas a respeito das fundações sobre as quais repousaria o edifício, até casos de inadimplência no pagamento das unidades habitacionais, passando por percalços na companhia empreendedora-- um homem capitaneou sua construção.
Carlos Lemos era um jovem arquiteto quando Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), então diretor da carteira imobiliária do BNI e mais tarde publisher da Folha, sugeriu seu nome para ser braço-direito de Oscar Niemeyer (1907-2012) em São Paulo.
O carioca, autor do projeto do Copan, precisava de alguém que atuasse localmente não só nessa empreitada mas também nos outros edifícios, em diferentes etapas de andamento, que lhe haviam sido encomendados pela instituição de Octavio Orozimbo Roxo Loureiro, todos eles no centro da capital paulista.
A decoração do apartamento para onde se mudara Frias ao casar, em 1948, tinha ficado a cargo de Lemos. O rapaz, formado no Mackenzie pouco antes da concepção do Copan, acabava de projetar, também por encargo de Frias, seu primeiro grande conjunto arquitetônico, o trio de edifícios Paris, Roma e Rio, além do teatro Maria Della Costa, todos em São Paulo.
Durante o tempo em que o "s" do Copan subia, Lemos tornou-se professor na Faculdade de Arquitetura da USP, participou de exposições de arte, teve uma filha. "O primeiro ano foi bastante trabalhoso. Mas, depois de um momento, virou uma rotina", resume o arquiteto, 89, ao lembrar, em entrevista à Folha, os anos de construção, tema de livro que acaba de lançar.
"A História do Edifício Copan" [Imprensa Oficial do Estado, R$ 50, 168 págs.] é o primeiro volume da trilogia que a editora dedicará ao prédio. Os outros serão "Viver no Centro: da Colônia ao Copan" (Maria Ruth Amaral de Sampaio, Jefferson Del Rios e outros) e "Oscar Niemeyer: 34 Anotações para um Perfil", de Eric Nepomuceno.
CARÊNCIA O livro de Lemos começa com um panorama histórico da situação de moradia em São Paulo, desde o fim do século 19 até os anos do pós-Guerra, em que a classe média enfrentava um quadro de "carência habitacional", como define o autor.
A evolução das formas de morar na cidade é um dos temas de predileção do arquiteto, que até 1990 lecionou história da arquitetura na FAU-USP --hoje ainda orienta alunos na pós-graduação.
"A classe média tinha emprego, tomava bonde, ia à missa e pagava o aluguel --era parte da normalidade", explica Lemos. O aluguel permitia que esse contingente crescente de pessoas, sem recursos para investir na aquisição de um imóvel, pudesse morar perto do trabalho e do transporte.
Não havia, frisa o arquiteto, nada semelhante a pesquisas de mercado que pudessem estabelecer o que desejava essa classe, em termos de vivenda. Resistia-se bastante ainda aos apartamentos --a população considerava as construções multifamiliares promíscuas e, durante anos, floresceram os sobradinhos, feitos para aluguel, em regiões como Perdizes.
"Não se sabendo direito o que queria essa classe, Loureiro e Frias chegaram a uma conclusão que era lógica. Fazer um prédio grande, variado e ver o que vendia. Uma espécie de laboratório." Assim nasceu a ideia do Copan.
Mas não só. O nome que hoje batiza o edifício deriva de Companhia Panamericana de Hotéis e Turismo. Em 1951, pensando nas comemorações do Quarto Centenário da cidade, dali a três anos, Loureiro vislumbrou a possibilidade de criar, no terreno comprado da Santa Casa na avenida Ipiranga, um grande "maciço turístico".
Além de um hotel, em prédio separado, a ser gerido por parceiros americanos, haveria outros atrativos para visitantes, como a galeria comercial, um teatro e um cinema, estes alocados no edifício.
"O fulcro", porém, "era o hotel", recorda Lemos, dizendo que o edifício-laboratório teria inicialmente 500 apartamentos, o suficiente para definir "o quadro dos desejos da classe média".
Foi Frias, diz o arquiteto, quem viu que o negócio com a companhia americana que deveria encampar o lado turístico do empreendimento poderia não vingar. Como de fato "melou", diz Lemos. O prédio habitacional praticamente dobrou de tamanho.
No livro, Lemos recorda como Niemeyer, trancafiado numa sala do banco, refez o programa do projeto, tentando estabelecer a equação que tornasse viável a nova face do investimento. Chegaram à conclusão de que seriam necessários 900 apartamentos, divididos em seis blocos, cada um com uma tipologia --terminaram sendo 1.160 unidades habitacionais, onde vivem hoje mais de 3.000 pessoas.
DECEPÇOES Em "Viagem pela Carne" (Edusp), seu livro de memórias, Lemos fala do desgosto de Oscar Niemeyer diante da impossibilidade de ver realizada a rampa helicoidal que imaginara como acesso ao terraço-jardim do Copan. Os calculistas sugeriram, em seu lugar, uma escadaria. "Num desabafo, ele me disse: Faça você essa escada, eu não quero mais saber disso'. Obedeci", escreve Lemos no livro de 2005.
A decepção de Niemeyer veio em 1956, logo após a obra do Copan ser retomada. A construção havia ficado interrompida desde 1954, quando a Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito) determinara a intervenção do Banco do Brasil na instituição de Loureiro, considerando que seus fundos em moeda eram insuficientes em comparação ao capital imobiliário --ou seja, muito imóvel para pouco caixa.
O BNI a essa altura já mudara de nome, primeiro para Banco Nacional Interamericano e, depois, para uma nova razão social, CNI, Companhia Nacional de Indústria e Construção, tentando em vão evitar a intervenção. O banco acabou liquidado extrajudicialmente, os americanos desistiram da parceria, e o Bradesco assumiu a obra em 1957 --o terreno onde se ergueria o hotel abriga um edifício do banco.
Niemeyer já não estava mais ligado à construção do Copan desde o ano anterior. Devendo se dedicar integralmente aos projetos de Brasília ("Ele ganhava um ordenado do Juscelino, você sabia?", rememora Lemos), passou de vez o bastão para o colega paulista.
Dali por diante, durante o tempo que durou a obra, a cada quinta-feira (salvo uma vez por mês, quando ia à sede do Bradesco em Osasco, para almoçar com Amador Aguiar e prestar contas ao diretor-presidente do banco), Lemos inspecionou a obra, percorrendo seus 32 andares. A pé. "Elevador era só para carga", conta.
Natural, portanto, que, como responsável pela obra, ele também tenha seu quinhão de decepções com o que realmente se erigiu, no confronto com o que foi desenhado --no caso, foram cerca de 1.200 folhas de papel vegetal, por muitas das quais passou a caneta-nanquim do próprio Lemos.
O conjunto, conta o arquiteto no livro, está sendo restaurado e digitalizado, de maneira a ficarem os desenhos "para sempre livres de manuseios indesejáveis". Uma amostra muito útil deles, porém, compõe, com outros documentos, um caderno ao final do volume, deixando ao alcance de estudiosos e curiosos plantas do Copan --tanto as originais quanto as modificadas em decorrência da obra.
Das modificações que o projeto sofreu, algumas pesaram mais para Lemos. Para ele, o "esfacelamento dos apartamentos grandes foi realmente uma decepção".
Os blocos E e F, como se pode ver nos desenhos apresentados no livro, compunham-se de apartamentos de luxo, com quatro dormitórios. Resulta, no entanto, que durante a construção esses foram os que menos venderam. Já com o projeto em execução, os que não haviam sido adquiridos foram redivididos em apartamentos de um quarto e quitinetes.
Lemos toma o livro, folheia, indica os corredores tortuosos que se formaram, dando lugar a quatro ou seis apartamentos onde deveria haver um. A mudança foi feita pelos engenheiros do Bradesco, sem que o arquiteto fosse consultado.
Outro desapontamento é de caráter ainda mais pessoal: ficou de fora do edifício o projeto do teatro, contribuição própria de Lemos, que vinha da experiência recente no Maria Della Costa.
Por fim, o arquiteto lamenta que, em lugar do terraço público previsto no projeto, ao qual se teria acesso pela tal rampa impossível, hoje haja um espaço envidraçado e privado --durante a obra, ele havia sido vendido pelo Bradesco à Companhia Telefônica Brasileira. Atualmente, o local é ocupado pelo escritório de uma loja de brinquedos.
Nessa grande área pública, uma espécie de jardim suspenso, com cafés, bancos para descanso e floricultura, haveria escadas-rolantes que levariam ao grande cinema. Este foi feito, mas sua entrada teve de ficar restrita à galeria comercial do térreo. Hoje, como tantas outras, a sala de cinema do Copan se transformou numa igreja evangélica.
PLANO DIRETOR Em teoria, o Copan parece responder ao que se desenha como modelo para a cidade no novo Plano Diretor: uma grande massa vertical, alta e densa, ao longo de um eixo viário importante, abrigando pessoas de classes sociais diferentes, com térreo destinado ao comércio.
Será que o edifício-laboratório, então, era um experimento visionário? Lemos discorda. "A cidade precisa é de transporte público eficiente, para que as pessoas possam morar de forma arejada, e não em grande densidade. O Copan é bom porque é um só."
Além do mais, o arquiteto duvida da eficácia do novo plano --como de resto, de qualquer outro. "Esquece: a cidade cresce ao léu."
E recorda que foi o descumprimento de um código normativo para a cidade, o de Prestes Maia (1896-1965), que permitiu que, afinal, o Copan existisse. O Plano de Avenidas criado pelo engenheiro em 1930, e posteriormente implantado durante suas duas gestões como prefeito da cidade, entre 1938 e 1945, fixava a altura máxima dos edifícios em 11 andares. Deu-se um jeito, e lá está o colosso.