quinta-feira, 29 de abril de 2021

'Como é lindo viver', escreve jornalista que, infectado pela Covid, 'deixou de existir' por 21 dias, FSP

 João Batista Natali

Jornalista, mestre e doutor em semiologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e pela Universidade de Paris-Nanterre

SÃO PAULO

A anestesia foi uma picadinha discreta. Mas, em seguida, eu deixei de existir por 21 dias, sobrevivendo como um enorme repolho inerte e intubado na UTI do hospital.

Uma das perguntas que mais me fizeram foi sobre o que pensei ou senti ao longo desse túnel escuro. Encontrei Jesus? Conversei com os mortos? Bobagem. Os medicamentos desligam parte do sistema nervoso central para que não possamos sentir dores ou o incômodo por aquela coisa enfiada na traqueia.

Mas, por uma questão de livre arbítrio, eu bem que gostaria de ter sido consultado por algum interlocutor poderoso: você quer partir ou quer ficar? É claro que eu queria ferrenhamente ficar. Que fosse por meu filho de 11 anos ou pelo afeto que me prende às artes e às pessoas.

Como não me consultaram, de concreto existem apenas os delírios que chegam junto com o despertar. A vaga consciência de que eu continuava vivo chegava com cenários quixotescos em minha cabeça tonta de sobrevivente.

Dou um exemplo. Nós, jornalistas, somos prepotentes, e eu "soube" por meus delírios que a Argentina decidira depositar sigilosamente no Brasil as ossadas de seus mais ilustres cidadãos.

Já haviam chegado a do general Manuel Belgrano, de Eva Duarte Perón —a Evita— e de mais um arcebispo de La Plata recentemente chamado ao convívio do Senhor.

Junte-se a essas informações o detalhe pitoresco de que as sepulturas foram reerguidas verticalmente em mármore branco. Um simulacro do cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. E onde? Ora, no canteiro central da rua Henrique Schaumann, bairro paulistano de Pinheiros.

Outro delírio consistia em acreditar que o helicóptero do governo do estado deixava no hospital, nas madrugadas, um carregamento de pães fresquinhos que as enfermeiras insistiam em não dividir comigo.

Com minha racionalidade partida em pedaços, previsível o desastre das primeiras tentativas de diálogo com a competentíssima neurologista que me atendia.

Em que ano nós estamos? Em 1942. Onde que o senhor nasceu? Salvador, Bahia (cidade onde estive apenas um par de vezes, a trabalho).

Minha mulher ficou preocupada. Pensou que o coronavírus, depois de meus pulmões e de meus músculos, estava avançando guloso sobre meu cérebro.

Mas foi tudo uma questão de exercício. Passei a traduzir para o francês ou para o inglês fragmentos de conversa que circulavam no hospital.

Veio, então, uma surpresa desagradável. Eu não conseguia mais andar. Eram sequelas neurológicas pós-Covid. Imaginei que os coronavírus formassem um coletivo de bilhões de priminhos dos ácaros, com bocarras predispostas a comer por dentro meu patrimônio muscular.

A essas alturas, eu já completava uns 50 dias de Hospital Sírio-Libanês e caía de cabeça na fisioterapia. Ela exigia de mim uma força que provisoriamente eu não tinha mais. Isso me exasperava, me deixava humilhado diante de mim mesmo.

As partes de baixo não me deixavam andar. As partes de cima me impediam de levar comida até a boca ou de pentear os cabelos. Mas a fisioterapia era o caminho.

Ou melhor, um dos caminhos O primeiro passo mais ousado e competente foi dado pela neurologista Gabriela Pimentel, uma das feras da nova geração do Sírio-Libanês. Ela determinou a injeção em meu organismo de imunoglobulina feita a partir de pacientes do bichinho já recuperados. Creio ter sido o que pesou em definitivo para eu abandonar biologicamente os riscos do lado de lá e abraçar a lógica daqueles que deverão viver.

Cabe aqui uma pequena reflexão sobre o que vem a ser a vida. Uma reflexão que me foi involuntariamente ensinada quando, na Sexta-feira Santa, e ainda internado, minha mulher sintonizou pela Cultura FM uma transmissão da "Paixão segundo São Mateus", de Bach.

Nos primeiros quatro compassos, eu caí num choro compulsivo. Não era de dor. Era de felicidade. Um estado de graça como o descrito por santo Agostinho.

A coisa cresceu dentro de mim mais ou menos assim: não estou apenas feliz por me ver diante do que é belo; minha felicidade vem do fato de eu estar vivo para experimentar sensorialmente a beleza da cantata barroca.

Horas depois, sensação semelhante ocorreria com a marchinha de Carnaval "Balancê", que Braguinha e Alberto Ribeiro escreveram nos anos 1930. Para mim, a comoção estética não se deu exclusivamente pela música de concerto, por mais que ela a tivesse desencadeado —um dos sextetos para cordas de Brahms, uma sinfonia do Camargo Guarnieri.

Em palavras mais cruas, se o coronavírus tivesse me levado, eu não estaria mais aqui para ouvir certas músicas, ler certos romances e poemas, como "The Waste Land", do T.S. Eliot, reassistir aos poucos e incríveis filmes que frequentaram minha alma.

Gente, em resumo, como é lindo viver.


Sim, educação é essencial, FSP

 Wlamyra Albuquerque

Doutora em história social pela Unicamp e professora associada do Departamento de História e do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal da Bahia.

Sim, educação é essencial. Depois de sete horas discutindo, o Congresso Nacional chegou a essa conclusão surpreendente. O projeto de lei 5529/20 propõe que educação seja serviço essencial durante pandemias. Sim. Educação é essencial mesmo no caos. Daí as instituições e os profissionais da área estarem trabalhando tanto remotamente e/ou presencialmente.

Para profissionais, pais e alunos, educação é mais que serviço; é essencial, quando calamidades nos afetam nos hospitais e no Palácio do Planalto. A velocidade do contágio e a desastrosa gestão federal explicam por que os prédios das escolas e das universidades foram esvaziados e as salas em plataformas virtuais estão lotadas. São essenciais as opiniões dos epidemiologistas e especialistas em saúde pública sobre as aulas presenciais. Deixemos que avaliem os riscos.

O caso aqui é saber até onde vai a essencialidade da educação no Congresso Nacional. Espera-se que, com esse status, a CPI da Covid também investigue por que, com negligência e sabotagem, o governo federal inviabilizou, junto aos estados, a garantia de pacotes de dados e computadores para que todos os estudantes das redes públicas tivessem acesso às aulas. Sim, educação é essencial para que as desigualdades não se aprofundem no Brasil.

E quanto ao MEC e a essencialidade da educação? Desde 2019, o orçamento destinado às universidades tem sofrido cortes que chegam a 25%, comprometendo o funcionamento delas durante o trabalho remoto e inviabilizando aulas presenciais dentro dos protocolos sanitários. Espera-se que a CPI julgue essencial termos um grupo de trabalho capaz de avaliar, elaborar e executar um plano para a educação básica que vislumbre melhorar os índices de desempenho escolar, mesmo no caos.

Sim, educação há de ser essencial para a CPI. Se não for, vai ficar parecendo que aquilo que está previsto nos projetos de lei não é tão essencial assim.

Renda sem omissão, editorial FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Pouca gente se lembrava, até o Supremo Tribunal Federal deliberar sobre o tema, de que o Brasil tem instituído na legislação um programa que garante a todos os seus residentes, independentemente da condição socioeconômica, uma mesma renda básica.

A lei 10.835, de janeiro de 2004, é exemplo dos mais eloquentes de como boas intenções e medidas ambiciosas, até bombásticas, podem chegar ao papel sem produzir nenhum efeito prático.

Aprovado sem maior controvérsia pelo Congresso nos primórdios do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o texto servia como uma espécie de prêmio de consolação para a militância de esquerda e, em particular, para o então senador Eduardo Suplicy (SP), o mais notório defensor da proposta no país.

Na época, a administração petista estava mais preocupada com reformas e ajustes orçamentários, enquanto lançava um programa social bem mais realista —o Bolsa Família, com foco apenas nos estratos mais carentes da população.

A ideia de que o bem-sucedido Bolsa Família pudesse ser gradualmente ampliado até se converter em uma renda universal de cidadania caiu no esquecimento.

Nunca houve entendimento técnico e político para levar adiante uma empreitada cujos custos, a depender do formato adotado, podem atingir algo entre 5% e 10% do Produto Interno Bruto (a conta do Bolsa Família ronda 0,5% do PIB).

Passados 17 anos desde a sanção da lei, eis que o STF concluiu, na segunda (26), que o Executivo se omitiu na regulamentação do benefício —no que tem toda a razão.

A corte determinou que o programa seja implantado gradualmente a partir de 2022. Prevaleceu, porém, a tese de que seu alcance não deve ser universal, mas limitado a famílias com renda per capita até R$ 178 mensais. Nesse ponto, apesar da louvável preocupação orçamentária, os magistrados se aventuraram a legislar sobre o tema.

O debate, que é dos mais pertinentes, deve se dar no Congresso Nacional. Lá já tramitam propostas para o aperfeiçoamento e eventual ampliação das ações de seguridade. O projeto da Lei de Responsabilidade Social, por exemplo, constitui um bom ponto de partida.

Sob Jair Bolsonaro, o Executivo não tem sido capaz de apresentar nada relevante nessa matéria —o auxílio emergencial na pandemia foi movimento parlamentar.

Para que novas iniciativas não venham a cair no vazio, sua formulação precisa estar associada à discussão do Orçamento. Do contrário, serão inócuas ou, pior, gerarão crises que agravarão a pobreza.

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