sábado, 17 de março de 2018

O projeto que tipifica o crime de importunação sexual é adequado? NÃO e SIM, FSP


O projeto que tipifica o crime de  importunação sexual é adequado? NÃO

Uma proposta em aberto




Imagem do ônibus em que um homem ejaculou sobre o pescoço de uma mulher na Avenida Paulista, em agosto de 2017
Imagem do ônibus em que um homem ejaculou sobre o pescoço de uma mulher na Avenida Paulista, em agosto de 2017 - Reprodução/TV Globo
René Ariel Dotti
Entre os diversos matizes da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, está o universo profundo e sensível da dignidade sexual. Há pouco tempo, a lei 12.015/2009 mudou radicalmente o título VI do Código Penal ("Dos crimes contra os costumes") para indicar os ilícitos com adequada rubrica: "Dos crimes contra a dignidade social".

As ofensas atingem ambos os sexos, mas a repulsa social ao estupro e outros graves ilícitos é intensificada quando as vítimas são mulheres, justificando a severidade das penas previstas.

Um homem foi preso em flagrante por ter ejaculado em uma passageira dentro de um ônibus em São Paulo. Foi solto no pressuposto de que a malsinada conduta caracterizaria simples contravenção, prevista no artigo 61 da LCP (Lei das Contravenções Penais) e punida somente com multa: "importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor".

O caso gerou imensa e compreensível reação social pela impunidade e reiteração da nefasta prática pelo mesmo sujeito, que aparenta ser mentalmente desequilibrado.

A Câmara dos Deputados aprovou o substitutivo ao projeto de lei nº 5.452-C/2016 do Senado Federal (PLS nº 68/2015), que prevê os delitos de importunação sexual e divulgação de cena de estupro.

A revogação do artigo 61 da LCP é clara evidência da neocriminalização, ou seja, a reação estatal que agrava hipóteses de infração penal já existente, amplia contornos típicos, aumenta penas ou reduz garantias do acusado. Esse é o perfil do proposto novo ilícito de importunação sexual, punível de um a cinco anos de reclusão, pela prática, "na presença de alguém e sem a sua anuência, [de] ato libidinoso, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro".

Apesar do louvável esforço do legislador e dos nobres movimentos de respeito à mulher, a norma incriminadora, tal como proposta, é uma caixa de Pandora que, aberta, espalhará diversos males de insegurança e terror.

Exemplos nos fazem refletir: (a) o sujeito frustrado poderá registrar, por vingança, um boletim de ocorrência contra a ex-namorada que, no cinema, beijava lascivamente um novo parceiro, pois não anuiu com aquele ato libidinoso; (b) no banco da praça onde descansa uma atenta senhora, um casal homossexual compartilha afagos, sendo, por isso, objeto de acusação de ato libidinoso público por parte dela.

Penso que o melhor caminho para suprir eventual lacuna normativa será a modificação do artigo 61 da LCP, assim: "importunar alguém, de modo ofensivo ao pudor, para satisfação da própria lascívia ou de terceiro". Além de uma multa, deve ser cominada a reclusão, atendendo à proporcionalidade entre pecado e castigo.

Um grande avanço do "disegno di legge" [projeto de lei] é a criminalização da torpe propagação de cena de estupro, de sexo, nudez ou pornografia (art. 218-C) por inúmeros meios, a exemplo do WhatsApp. Mas é essencial aprimorar a redação do caput porque multiplica desnecessariamente os verbos típicos, caracterizando a "técnica de espingarda de cano cerrado" pela ampla dispersão do chumbo. É preciso, ainda, rever a conveniência de alguns outros tipos (218-D e 225).

O texto substitutivo ainda voltará ao Senado. Abre-se, então, a oportunidade para a revisão de vícios como o abusivo aumento de algumas penas e a falta de técnica de redação legislativa.
RENÉ ARIEL DOTTI, advogado e professor titular de direito penal, foi corredator do anteprojeto de reforma da Parte Geral do Código Penal (lei nº 7.209/1984)  

O projeto que tipifica o crime de importunação sexual é adequado? SIM

Não aceitaremos ser importunadas!

Imagem de ônibus em que um homem ejaculou sobre uma mulher na avenida Paulista, em agosto de 2017
Imagem de ônibus em que um homem ejaculou sobre uma mulher na avenida Paulista, em agosto de 2017 - Reprodução/TV Globo
Marina Ruzzi
Muito se fala da impunidade e da baixa efetividade dos crimes contra a dignidade sexual no Brasil. Em um país em que 99,6% das mulheres afirmam já ter sofrido assédio sexual na rua, em uma cidade onde o Metrô afirma haver ao menos quatro denúncias formais de assédio por semana, fica claro que o direito não está oferecendo uma resposta à altura para proteger suas cidadãs e punir seus assediadores.

Apesar dos sensíveis avanços nos debates acerca da cultura do estupro, ainda nos deparamos com muita naturalização desse tipo de comportamento. A dignidade sexual das mulheres não pode ser relativizada. 

Nossos corpos não são públicos, e qualquer tipo de constrangimento nesse sentido deve ser condenado pelo Estado, até mesmo para poder cumprir o que foi determinado seja pela Constituição, seja em tratados internacionais, como a Convenção Belém do Pará, que determina que o país deve tomar todas as medidas cabíveis, inclusive legislativas, para prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra as mulheres.

Claro está que a legislação atual é mais do que insuficiente para proteger suas cidadãs, razão pela qual até mesmo o homem que cometeu o grotesco ato de ejacular no pescoço de uma passageira num ônibus em São Paulo saiu praticamente ileso dos tribunais, gerando grande inconformismo na opinião pública.

Porém, o que poderia ser feito se não temos leis que de fato amparem o Judiciário para condenar esse tipo de conduta?

O tratamento legal que temos hoje apresenta um grande hiato entre o crime de estupro ---que é hediondo, imprescritível, com uma pena bastante elevada--- e os demais tipos de violência sexual contra a mulher, o que acaba fazendo com que as já poucas denúncias realizadas nem cheguem a ser enquadradas como algum crime. Afinal, para que seja configurado o crime de estupro, é absolutamente necessário que o agressor tenha se utilizado de violência ou grave ameaça para constranger a vítima.

E para as diárias importunações que acontecem nos locais públicos, em que a vítima nem chega a ter tempo de reagir diante das investidas ou palavras do assediador?

Resta a nós, operadoras do direito comprometidas, uma figura praticamente abandonada da Lei de Contravenções Penais, de nome de difícil memorização: importunação ofensiva ao pudor, que pode gerar, no melhor dos casos, uma insignificante multa.

A ideia de tipificar essa conduta não vem de simples desejo punitivista nem de populismo penal frente às reivindicações populares pelo fim da cultura do estupro e pela igualdade de direitos. Vem como conquista do movimento de mulheres para garantir reconhecimento.

Mediante a aprovação do projeto de lei que busca criminalizar a importunação sexual, estamos afirmando que, para essa nova sociedade que estamos construindo, é inaceitável todo tipo de conduta que busca reduzir a mulher a mero objeto, aquela surdez seletiva que não quer entender que "não é não", bem como o (esperamos) moribundo entendimento de que o corpo da mulher é público.

O que se deseja não é que lotemos cadeias com assediadores. Ao contrário, busca-se com isso alterar a realidade, oferecendo recursos para que as mulheres possam se resguardar e se sentir mais seguras nas cidades em que habitam, sem receio de se locomover e de frequentar espaços. Uma lei não tem poder de fazer isso sozinha, claro. Mas é um primeiro e necessário passo.
MARINA RUZZI, advogada, é sócia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas e membra da Rede Feminista de Juristas

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