Pesquisa desenvolvida no IE constata que o padrão de segregação urbana no município se aprofundou, agravando as desigualdades sociais entre seus moradores
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A melhora dos indicadores econômicos e sociais do Brasil nos anos 2000 não foi suficiente para promover alterações no padrão de segregação urbana registrado historicamente na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), a capital em particular. Ao contrário, a despeito das estatísticas positivas, o problema se aprofundou no período. Esta é a principal constatação da tese de doutorado do economista Armando Palermo Funari, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, sob a orientação da professora Mariana Fix. “Isso ocorreu porque o cenário de desigualdade na cidade de São Paulo foi agravado. A renda aumentou, mas de forma assimétrica, com maior benefício para os mais ricos, em detrimento das camadas médias da sociedade”, considera o pesquisador.
Funari vai buscar no trabalho do urbanista Flávio Villaça, ex-docente da USP, as bases para a sua investigação. Villaça é conhecido por analisar como as classes sociais se distribuíram pelas regiões metropolitanas brasileiras, a de São Paulo entre elas, e as consequências desse processo. “Em linhas gerais, Villaça mostra que o padrão de desenvolvimento da cidade de São Paulo, por exemplo, é marcado pela concentração das classes de alta renda numa determinada porção territorial, que ele chama de Quadrante Sudoeste. Eu utilizei a metodologia proposta por ele e procurei trazer novos dados para analisar a temática em período mais recente”, explica o autor da tese.
De acordo com o economista, Villaça demonstra que o padrão de segregação urbana reflete e reforça, em boa medida, as grandes desigualdades sociais verificadas historicamente no país. “Quando uma classe social de elevada renda ocupa uma dada região do município, ela acaba concentrando outras vantagens, de caráter essencialmente urbano, que se somam às vantagens econômicas que já detém. Ou seja, o urbano atua sobre essa situação de desigualdade social à medida em que os espaços da cidade são ocupados de forma distinta”, pontua Funari.
Ademais, prossegue o pesquisador, as classes de alta renda exercem um papel ativo na configuração das questões sociais tanto no âmbito do município quanto no da RMSP. “A ação dos mais ricos acaba levando mais serviços e infraestrutura para os locais onde vivem, o que amplia o abismo sociourbano em relação a outras áreas da cidade”, afirma Funari. A pergunta que orientou a tese do economista é se a melhora dos indicadores econômicos e sociais registrada nos anos 2000 teria sido suficiente para modificar essa tendência. “Infelizmente, o que constatei é que a situação não somente persistiu, como se aprofundou. De fato, o bolo cresceu nesse período, mas as maiores e melhores fatias continuaram sendo oferecidas para os mais ricos”, acrescenta.
Questionado sobre a capacidade de o Plano Diretor ser capaz de ao menos atenuar essas desigualdades sociourbanas, Funari observa que, em tese, o instrumento poderia cumprir esse papel. Entretanto, ele lembra que normalmente as discussões em torno da formulação das políticas públicas voltadas ao ordenamento urbano são protagonizadas por grupos e corporações do segmento imobiliário, de grande poder financeiro e alta influência política, como construtoras e incorporadoras. “Frequentemente, a sociedade civil tem pouca capacidade de interferir nas decisões”.
Um exemplo da força desse lobby vem do processo de elaboração do Plano Diretor de São Paulo durante a gestão do prefeito Fernando Haddad (2013-2016). Conforme o autor da tese de doutorado, a proposta partiu de um diagnóstico acertado, mas sofreu inúmeras modificações ao longo do tempo, principalmente quando tramitou na Câmara de Vereadores. “Ao final do processo, a legislação não se mostrou tão progressista quanto a Prefeitura gostaria e menos ainda em relação ao que deveria ser”, analisa.
Funari lembra que o padrão de segregação urbana verificado em São Paulo tem consequências extremamente danosas para a sociedade. “A começar pelo seu caráter antidemocrático. No regime democrático, vale assinalar, as pessoas são consideradas equivalentes. No entanto, é preciso que essa equivalência ocorra para além do momento da eleição, no qual cada eleitor representa um voto. Uma decorrência do modelo de ocupação urbana das nossas metrópoles é o apartamento da sociedade. Estão sendo criados cidadãos de primeira, segunda e terceira classes. Nós precisamos de mais equidade. Não é possível que continuemos reproduzindo um padrão que legitima mecanismos tão evidentes de promoção de desigualdades”, entende.
No limite, continua o economista, quando se determina onde uma e outra parcela da população deve viver, também se está delimitando outras questões. “Na semana em que defendi a tese, foi divulgado um estudo que contrapunha os indicadores dos distritos que compõem a cidade de São Paulo. Um dos dados revelava que num determinado local a expectativa de vida do morador era entre 20 e 25 anos maior que a de outro. Ora, quando o padrão de segregação estabelece onde a pessoa deve morar, ele também está indiretamente demarcando até que idade essa pessoa pode viver”, assinala.
Dito de outra maneira, sem qualquer verniz, o que o pesquisador constatou é que São Paulo não é uma cidade para todos, mas sim para alguns poucos. “As opções de quem pode escolher onde viver acabam travando as possibilidades daqueles que não têm escolha. Com isso, o abismo se aprofunda. Hoje, temos claramente dentro do município uma Dinamarca e uma Zâmbia”, assevera. Funari entende que é possível e urgente construir cidades mais democráticas.
Para isso, adverte, é necessário não fazer uso de soluções prontas ou importadas e dar maior atenção às pessoas que à estrutura. “Quando o poder público age sobre um espaço da cidade sem qualquer infraestrutura, esse espaço fica qualificado. Com isso, as pessoas que pagam aluguel nessa porção correm o risco de ser expulsas, por já não conseguirem mais arcar com o custo de vida local, por causa da valorização do metro quadrado. Essa é uma questão que precisa ser melhor analisada, inclusive dentro do conceito de cidade inteligente que vem ganhando espaço na agenda dos administradores públicos. É preciso entender que não adianta agir sobre o espaço sem considerar as pessoas que o ocupam”, reforça.
A universidade pública, conclui Funari, poderia colaborar com essa discussão ao colocar à disposição da sociedade o conhecimento gerado sobre o tema por seus pesquisadores. “A universidade está inserida nesse contexto. Sem dúvida, nós contamos com profissionais qualificados para ajudar na proposição de soluções para os diferentes problemas urbanos, entre eles a ocupação desigual dos municípios”.
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