Pelos próprios valores que representa, a neutralidade da rede deve permanecer intocada no Brasil
O Estado de S. Paulo, O Estado de S.Paulo
31 Dezembro 2017 | 03h00
A Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC, na sigla em inglês) decidiu, por 3 votos a favor e 2 contrários, derrubar uma série de normas que garantem a chamada neutralidade da rede global de comunicações, um princípio que assegura acesso livre e igualitário a qualquer tipo de conteúdo no ambiente online, tanto para os que produzem como para os que consomem.
Por esse princípio, as operadoras de telecomunicações – empresas responsáveis por comercializar os meios de acesso à internet – não podem restringir o acesso a sites ou a serviços oferecidos online, beneficiando alguns produtores de conteúdo em detrimento de outros por meio da cobrança diferenciada aos usuários de acordo com o conteúdo que estes desejam acessar.
O que a princípio pode parecer apenas um debate acerca da aplicação das regras de livre mercado ao mundo digital, na verdade embute uma discussão bem mais preocupante sobre concentração de mercado e liberdade de expressão, temas dos mais caros a todos os países democráticos, como é o caso dos EUA, evidentemente.
Tal como acontece no Brasil, há localidades nos EUA que são atendidas por apenas uma empresa de telecomunicações, única provedora de acesso à internet para toda a população local. Sem as regras que asseguram a neutralidade da rede, essas empresas sem concorrência estarão livres para escolher o que pode e o que não pode trafegar por suas redes, exercendo uma espécie de curadoria de conteúdo que dá azo a todo tipo de manipulação. Em última análise, um indevido poder sobre a informação circulante.
A neutralidade da rede é um pilar da internet livre desde seu advento, ou pelo menos desde que a chamada World Wide Web (WWW) começou a ter uso comercial e privado, e não apenas militar. Em outras palavras, ao votar pelo fim da neutralidade da rede, a agência que regula as telecomunicações nos EUA votou por acabar com a internet tal como ela é conhecida.
A decisão da FCC, é importante destacar, não tem caráter terminativo, ou seja, para valer precisará ser aprovada pelo Congresso norte-americano. Pesquisas de opinião realizadas pouco depois da sessão da comissão indicavam que 83% dos eleitores são favoráveis à manutenção das atuais regras que garantem a neutralidade da rede, dado que pode ter influência sobre os votos dos congressistas.
Dependendo do resultado da votação no Congresso dos EUA, ainda sem previsão para ocorrer, terá início uma longa batalha judicial. A Netflix, gigante do setor de produção e difusão de conteúdo digital, criticou a decisão da FCC e, em comunicado à imprensa, disse que a neutralidade da rede foi o princípio que “conduziu a um período de inovação, criatividade e engajamento cívico sem precedentes”.
No Brasil, a neutralidade da rede está garantida pela Lei 12.965/2014 – o Marco Civil da Internet –, que no inciso IV do artigo 3.º estabelece que a “preservação e garantia da neutralidade da rede” é um dos princípios que disciplinam o uso da internet no País. Embora o SindiTelebrasil, entidade que representa as empresas de telecomunicações, venha defendendo a flexibilização dessa regra, a neutralidade da rede deve permanecer intocada, seja por consistir no mais importante dispositivo do Marco Civil da Internet, seja pelos próprios valores que representa.
O diploma legal brasileiro chegou a ser elogiado pelo criador da WWW, o cientista britânico Tim Berners-Lee, que afirmou que, com o Marco Civil, “finalmente um projeto de lei reflete como a internet deve ser: uma rede aberta, neutra e descentralizada, em que os usuários são o motor para a colaboração e inovação”.
A neutralidade da rede é um princípio que reflete no ambiente online os valores democráticos sobre os quais estão assentados países como o Brasil e os Estados Unidos. Enquanto prevalecer intocado, nenhum argumento poderá servir de subterfúgio para a adoção de práticas comerciais abusivas ou restritivas à livre circulação de informações.
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