José Márcio Camargo*, O Estado de S.Paulo
15 Agosto 2017 | 05h00
Durante mais de 70 anos, as relações entre patrões e empregados no Brasil foram geridas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), legislação criada ao longo da ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1943. Por causa do receio de que a Revolução Russa pudesse ser “exportada” para o Brasil via conflito entre capital e trabalho, essa legislação tinha como um de seus principais objetivos transformar esse conflito numa questão de Justiça. Afinal, Justiça não se discute, obedece-se. Para tal, foi criada a Justiça do Trabalho, com acesso gratuito pelo trabalhador, e dada a ela o poder de interferir diretamente nos contratos de trabalho e definir sua validade.
Para evitar o fortalecimento dos sindicatos, criou-se um imposto sobre o salário para financiá-los, tornando desnecessário qualquer movimento no sentido de buscar apoio dos trabalhadores para se autofinanciar.
Como desejado pelo legislador, este arranjo institucional gerou dois resultados importantes: o juiz do Trabalho passou a ser, em última instância, o agente que define o que vale e o que não vale nos contratos de trabalho e os sindicatos de trabalhadores, com poucas exceções, se tornaram organizações puramente burocráticas e pouco efetivas na negociação coletiva.
Em outras palavras, os contratos de trabalho no Brasil são, a priori, falsos. Somente deixam de sê-lo quando aprovados pelo juiz no fim da relação de trabalho.
As consequências dessa legislação extrapolam o mercado de trabalho. Regulações geram incentivos e as pessoas respondem a incentivos. Como a relação entre empresas e trabalhadores é uma das mais importantes numa economia de mercado, tanto do ponto de vista econômico quanto social, esse arranjo institucional tem inúmeras consequências sobre o desempenho do mercado de trabalho, da economia e da sociedade como um todo.
Contratos são assinados para serem respeitados e, desde que obedeçam à legislação, serem preservados da interferência da Justiça. Um dos princípios fundamentais para o bom funcionamento de uma economia de mercado é o respeito aos contratos.
Se o contrato de trabalho pode ser mudado pelo juiz, como justificar que outros ramos da Justiça não tenham o mesmo direito, caso entendam que as cláusulas dos contratos estejam fora do padrão de justiça desejado pelo juiz de turno?
Por outro lado, ao assinar o contrato de trabalho, trabalhadores e empresas sabem que existe uma grande probabilidade de que ele seja renegociado na Justiça. Sendo assim, o trabalhador não tem qualquer incentivo para discutir os termos do contrato e lutar por seu cumprimento ao longo de sua existência e a empresa, para cumpri-lo. Afinal, elas sabem que, ao fim do contrato, o trabalhador poderá entrar na Justiça do Trabalho e pleitear uma renegociação. E é o que efetivamente ocorre. Mais de 4 milhões de novas demandas entram na Justiça do Trabalho todos os anos.
Ou seja, a legislação induz a um comportamento oportunista de trabalhadores e empregadores. E, como a maior parte da vida das pessoas se passa nos locais de trabalho ou em relações sociais com pessoas com as quais convivem nestes locais, esse comportamento oportunista acaba “contaminando” as relações pessoais na sociedade e questões do dia a dia como obedecer horários, cumprir compromissos, executar tarefas combinadas, etc.
Ao estipular que uma parte importante dos contratos de trabalho terá de ser respeitada, sem interferência do juiz, e ao eliminar o imposto sindical, a reforma trabalhista deverá extrapolar o mercado de trabalho, podendo ter efeitos importantes sobre o funcionamento da sociedade brasileira como um todo, reduzindo o incentivo ao comportamento oportunista e ao descumprimento dos contratos. Caso essa conjectura se materialize, os ganhos de produtividade e o crescimento da economia serão afetados de forma bastante positiva.
*PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC/RIO E ECONOMISTA DA OPUS GESTÃO DE RECURSOS
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