A quantidade de informação a que temos acesso multiplicou-se infinitamente, mas nossa quantidade de tempo continuou a mesma. Assim, a superficialidade do conhecimento torna-se a regra
Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo
02 Julho 2017 | 05h00
SÃO PAULO - Pelo andar da carruagem aposto que a vida inteligente será a primeira a ser extinta no planeta. Não pelo fim da vida em si, mas pelo ocaso da inteligência que testemunhamos aproximar-se a cada alvorecer. Apesar de não ter uma definição precisa, de forma geral todo mundo sabe diferenciar a inteligência da estupidez. Diante de ambas, é possível identificar os lados de cada uma.
Mas às vezes ficamos na dúvida. Admiramos as capacidades intelectuais daquela pessoa culta, que tem muito conhecimento e é capaz de oferecer soluções inspiradoras. No entanto, quando notamos que, apesar de toda sua bagagem, o raciocínio lógico é falho, fazendo-a titubear diante problemas novos, sem relação com situações análogas, percebemos que fomos apressados em considerá-la inteligente.
O contrário também acontece: se achamos esperto o sujeito que pensa rápido, que abstrai facilmente conceitos difíceis, logo mudamos de opinião se lhe falta conhecimento ou sobra ignorância. É por isso que uma das teorias mais influentes sobre a inteligência a divide em dois componentes: inteligência fluida e inteligência cristalizada. A primeira constitui essencialmente o raciocínio abstrato, que permite resolver problemas lógicos independentemente de conhecimentos prévios, torna-nos mais adaptáveis a ambientes mutáveis. A segunda depende do acúmulo de experiência, desenvolvimento progressivo de habilidades, constituindo, entre outros, o vocabulário e a cultura geral. Juntas, elas constituem uma medida geral de QI, que – surpresa – vem aumentando a cada geração.
Por espantoso que seja para quem passa os olhos pelas redes sociais, testes de QI ao longo dos anos mostram que conforme as gerações se sucedem aumentam as pontuações. A bagatela de três pontos por década, em média. Veja então que não é só por preguiça que pedimos aos filhos para nos ajudar a encarar as novas tecnologias – de alguma maneira eles são realmente mais espertos que nós.
As explicações para esse fenômeno, chamado de efeito Flynn, vão da redução nas taxas de desnutrição do mundo até o aumento dos estímulos abstratos em nossa realidade tecnológica, passando pelo aumento do tempo das crianças na escola. Ninguém sabe a causa ao certo – ou quanto tempo durará.
Se ainda assim a estultice parece florescer ao nosso redor como cogumelo depois da chuva é porque sabedoria não tem relação necessária com o QI. Uma coisa é ser capaz de dizer a semelhança entre o elogio e a crítica (teste clássico da capacidade de abstração), outra é ser capaz de ponderar pontos de vista opostos que se refletem nos elogios e nas críticas. Da mesma forma, conhecer fundamentos de sistemas políticos não nos habilita para manejar a complexidade político-ideológica pós-moderna. Aliás, bem ao contrário, a forma como lidamos com o conhecimento hoje em dia contribui para a redução da sabedoria. Isso acontece porque a quantidade de informação a que temos acesso multiplicou-se infinitamente, mas nossa quantidade de tempo continuou a mesma. Assim, a superficialidade do conhecimento torna-se a regra, sendo raros os momentos em que nos dedicamos a, de fato, nos aprofundar em determinado assunto.
A consequência é que o descompasso entre o que sabemos e o que pensamos saber se aprofunda. Esse abismo, batizado de efeito Dunning-Krueger em homenagem à dupla de psicólogos que o descreveu na virada para o século 21, acontece quando não somos totalmente ignorantes em algum tema mas estamos longe de dominá-lo. Nessa situação temos a incontrolável tendência de superestimar nosso conhecimento. Pior: quanto menos sabemos, mais achamos que sabemos.
Ironicamente, quem realmente é expert em um assunto normalmente acredita estar longe de compreendê-lo tão bem. Só ao nos dedicarmos com afinco a algum tópico vislumbramos humildemente a profundidade abissal que a ignorância pode alcançar.
Por isso que a estupidez há de crescer. Diante de um mundo mais complexo, em que recebemos informações sobre cada vez mais assuntos com cada vez menos profundidade, enquanto não admitirmos nossas limitações não haverá aumento de QI que baste para nos salvar.
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