Um sopro levou a alma mais linda e delicada que conheci. Antonio Candido foi durante toda a vida o melhor amigo de meu pai, o último de uma geração de intelectuais que interpretaram o Brasil, seu povo e sua cultura de uma maneira original. Apesar de estudarem na mesma faculdade, a de Filosofia, Ciências e Letras da USP, os dois se conheceram através das cartas. Dois anos mais velho, Candido já era um veterano e recebeu certo dia uma carta de Florestan comentando um artigo que havia publicado em um grande jornal. Foi o suficiente para eles começarem uma intensa correspondência que durou a vida inteira, mesmo depois de terem se conhecido pessoalmente. Candido me contou que eram cartas enormes, discutindo os mais variados temas. "O primeiro encontro que tive com Florestan foi no intervalo das aulas, no prédio da Filosofia. Ele estava encostado na parede, lendo a biografia do Buda." A amizade dos dois ia muito além das afinidades intelectuais, e se transformou numa relação fraternal e de companheirismo e cumplicidade.
Na época de estudante, Florestan se queixava com Candido do fato de ser discriminado em sala de aula por ter uma origem pobre. Certo dia Candido encerrou essa discussão dizendo: "Florestan, eu tenho uma filha com idade próxima da do seu filho. Se por acaso um dia os dois vierem a ter uma relação, eu terei muito orgulho disso".
No início dos anos 40, Candido e Florestan colaboravam nos dois principais jornais de São Paulo. Em um deles, meu pai escrevia sobre Literatura. Numa festa de escritores, Florestan pediu ao amigo que o apresentasse a Mário de Andrade: "Os dois ficaram muito tempo conversando. Quando me aproximei, Florestan já estava sozinho, e com um olhar surpreso me disse 'Candido, o Mário leu todos os meus artigos e discutiu um por um!'".
Vinte anos depois, em 1964, Florestan seria preso por desacato a um oficial do Exército que ordenou a ocupação do prédio da Filosofia. Após três dias de prisão, ele foi solto e surpreendido com uma homenagem feita pelos estudantes, professores e funcionários da Faculdade. Ao final da solenidade, emocionados, Florestan e Candido se abraçam e trocam beijos. Um repórter pergunta a Candido se os dois são parentes por conta do beijo que trocaram no rosto. A resposta foi desconcertante: "O senhor deveria estar preocupado, pois só faz essa pergunta quem não tem um amigo para beijar".
Nos anos 70, meu pai sofria a solidão de viver no exílio, dando aulas em universidades da América do Norte. Em uma das correspondências trocadas por eles, Florestan fala da alegria de ter reencontrado o casal amigo, Gilda e Antonio Candido, em um aeroporto nos Estados Unidos. Florestan chegando e Candido partindo, surpresos por se encontrarem separados por um vidro que dividia as alas de embarque e desembarque: "Foi muito bom poder ver vocês tão de perto. Me deu um ânimo para continuar enfrentando este difícil momento das nossas vidas, mesmo não podendo trocar um longo abraço", escreveu meu pai.
No final dos anos 90, encontro com o professor Antonio Candido numa solenidade em homenagem a meu pai, feita pelo ex-presidente Fernando Henrique. Ao me ver, Candido me abraça e me beija no rosto, dizendo: "A partir de agora, você passa a ter este direito".
Hoje não perdi apenas o beijo de Antonio Candido. Perdi a mais bela referência humana da existência de meu pai.
Na época de estudante, Florestan se queixava com Candido do fato de ser discriminado em sala de aula por ter uma origem pobre. Certo dia Candido encerrou essa discussão dizendo: "Florestan, eu tenho uma filha com idade próxima da do seu filho. Se por acaso um dia os dois vierem a ter uma relação, eu terei muito orgulho disso".
No início dos anos 40, Candido e Florestan colaboravam nos dois principais jornais de São Paulo. Em um deles, meu pai escrevia sobre Literatura. Numa festa de escritores, Florestan pediu ao amigo que o apresentasse a Mário de Andrade: "Os dois ficaram muito tempo conversando. Quando me aproximei, Florestan já estava sozinho, e com um olhar surpreso me disse 'Candido, o Mário leu todos os meus artigos e discutiu um por um!'".
Vinte anos depois, em 1964, Florestan seria preso por desacato a um oficial do Exército que ordenou a ocupação do prédio da Filosofia. Após três dias de prisão, ele foi solto e surpreendido com uma homenagem feita pelos estudantes, professores e funcionários da Faculdade. Ao final da solenidade, emocionados, Florestan e Candido se abraçam e trocam beijos. Um repórter pergunta a Candido se os dois são parentes por conta do beijo que trocaram no rosto. A resposta foi desconcertante: "O senhor deveria estar preocupado, pois só faz essa pergunta quem não tem um amigo para beijar".
Nos anos 70, meu pai sofria a solidão de viver no exílio, dando aulas em universidades da América do Norte. Em uma das correspondências trocadas por eles, Florestan fala da alegria de ter reencontrado o casal amigo, Gilda e Antonio Candido, em um aeroporto nos Estados Unidos. Florestan chegando e Candido partindo, surpresos por se encontrarem separados por um vidro que dividia as alas de embarque e desembarque: "Foi muito bom poder ver vocês tão de perto. Me deu um ânimo para continuar enfrentando este difícil momento das nossas vidas, mesmo não podendo trocar um longo abraço", escreveu meu pai.
No final dos anos 90, encontro com o professor Antonio Candido numa solenidade em homenagem a meu pai, feita pelo ex-presidente Fernando Henrique. Ao me ver, Candido me abraça e me beija no rosto, dizendo: "A partir de agora, você passa a ter este direito".
Hoje não perdi apenas o beijo de Antonio Candido. Perdi a mais bela referência humana da existência de meu pai.
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