terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O desafio de salvar o Jari, Época Negócios


O sonho frustrado do bilionário americano Daniel Ludwig de criar um pólo agroindustrial em plena amazônia está sendo revivido, quatro décadas depois. O empresário paulista Sergio Amoroso, presidente do grupo Orsa, tenta provar que o Projeto Jari é viável. Sua ambição: transformá-lo numa referência mundial de exploração sustentável, que combine a geração de riqueza com a conservação da floresta
POR CYNTHIA ROSENBURG
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FOTOS PEDRO MARTINELLI
Meados de abril de 2007 A lendária fábrica flutuante do Jari, no Pará, volta a funcionar depois de mais uma etapa do plano de recuperação que vem sendo implementado pelo Grupo Orsa. No porto, os fardos de celulose embarcam para o exterior. As embalagens trazem a inscrição "Jari Celulose S/A - Made in Brazil - A Socially Oriented Company" (Jari Celulose S/A - Feito no Brasil - Uma empresa socialmente orientada)
Naquele início de tarde de 16 de abril, uma segunda-feira, o céu parecia muito próximo do Rio Jari. Ali, na região do baixo Amazonas, o vapor denso e escuro que saía de uma torre da fábrica da Jari Celulose logo se misturava às nuvens carregadas. Vista de perto, a fábrica de 40 metros de altura, algo como um prédio de 15 andares, parecia mais imponente. O cheiro da celulose contaminava o ar e o ruído das máquinas abafava os sons dos pássaros. O cenário era de causar inquietação a um cidadão preocupado com o meio ambiente nestes tempos de aquecimento global. Mas, para as centenas de funcionários que circulavam agitados pela área, aquela não era a imagem de um drama ecológico. Era motivo de satisfação. O vapor jogado na atmosfera marcava o sucesso da retomada da produção depois de uma parada técnica de 21 dias, etapa crucial na recuperação da lendária usina do Jari.
Há 29 anos, 3,7 mil estacas de maçaranduba cravadas no fundo do rio sustentam as duas estruturas - uma termelétrica e uma unidade produtora de celulose - que formam o complexo industrial. Do lado de fora, é possível ver sob ele os enormes troncos de madeira escura que emergem da água. Construídas sobre plataformas flutuantes no Japão, as duas unidades viajaram três meses pelos Oceanos Índico e Atlântico em 1978, até adentrar os Rios Amazonas e Jari. A cena daquela estrutura monstruosa saindo por detrás da floresta numa curva do rio, registrada em filme, ainda hoje parece saída de uma história de ficção científica. Uma reportagem da revista National Geographic publicada dois anos depois descreveria da seguinte maneira o espanto de uma criança que presenciara o fato: "Uma cidade está vindo pelo rio!".
O empresário Sergio Amoroso é o dono do Jari desde 2000, quando seu grupo, o Orsa, assumiu a dívida de US$ 415 milhões do projeto. Amoroso é um empreendedor que cresceu comprando empresas falidas. Até adquirir o Jari, era pouco conhecido fora do setor de papel e embalagens. Com o projeto, ganhou visibilidade no Brasil e no exterior
A aventura transoceânica era parte do plano do bilionário americano Daniel Ludwig, que em 1967, aos 70 anos de idade, comprara no Brasil por US$ 3 milhões uma área quase do tamanho do estado de Sergipe, na fronteira do Pará com o Amapá. Integravam seu império estaleiros, refinarias de petróleo e empreendimentos imobiliários em 15 países. A construção de um pólo agroindustrial em plena floresta tropical entraria para a história como mais uma tentativa de exploração estrangeira na Amazônia - assim como já acontecera com o projeto de outro americano, o legendário Henry Ford, que fracassou na tentativa de produzir borracha na região do Rio Tapajós. No Jari, Ludwig abriu estradas, construiu portos, cultivou arroz e criou búfalos. Também substituiu áreas de mata nativa pelo plantio da Gmelina arborea, ou melina, uma espécie asiática trazida para a Amazônia para alimentar a fábrica de celulose. "Foi quase como desenvolver um país", disse ele, numa de suas raras entrevistas. "O começo da empresa foi bonito e melhorou muito a região", afirma o paraense Francisco Leite, de 59 anos, que na ocasião trabalhava como vaqueiro no Jari. "Quando vi o Ludwig sentado na carroceria de uma Toyota, branquinho, vestindo uma camisa assim muito simples, quase não acreditei que era ele o dono daquilo tudo."
Os problemas apareceram rapidamente. A melina não se adaptou ao clima local. As plantações de arroz superdimensionadas não vingaram. O governo militar não atendeu às reivindicações do americano para que assumisse os custos de infra-estrutura. A operação consumiu
US$ 1 bilhão e não rendeu lucros, que Ludwig planejava doar a seu instituto de pesquisa contra o câncer. Derrotado pela burocracia brasileira e pela floresta, ele deixou a Amazônia.

A fábrica do Jari é uma estrutura industrial em forma de navio, com 40 metros de altura, mais alta e mais compacta que as usinas tradicionais de celulose (à esq.). Alguns de seus corredores possuem corrimãos, que ajudavam os tripulantes a evitar tombos durante o transporte pelo mar. Instalado no último andar, o enorme painel original de controle de produção (à dir.) foi recentemente substituído por um sistema digital operado por computadores
O Jari de 2007 é outro. Num momento em que a comunidade internacional discute a crise ambiental e o futuro da humanidade, o que está em curso ali é a tentativa de criar um modelo de exploração sustentável, baseado na combinação entre a geração de riqueza e a conservação da floresta. À frente dessa empreitada está o paulista Sergio Amoroso, principal acionista e presidente do Orsa, um grupo de São Paulo formado por três empresas que, juntas, faturaram R$ 1,3 bilhão no ano passado. "O Jari pode ser um laboratório de experiências que sirvam de referência para a Amazônia e para o mundo", diz Amoroso. Até 2000, ano em que assumiu o controle do Jari, Amoroso - um empreendedor de origem humilde que ergueu seu negócio do nada - era pouco conhecido fora do setor de papel e embalagens. De lá para cá, ganhou visibilidade no Brasil e lá fora. Num domingo de abril, aguardava numa lanchonete do aeroporto de Belém a chamada do vôo que o levaria a Monte Dourado, a vila residencial criada por Ludwig no meio do Jari. Aos 52 anos de idade, vestindo calça e camiseta, com uma mochila nas costas onde levava uma raquete de tênis, Amoroso também não tem a imagem sisuda que se espera de um empresário que comanda uma operação grandiosa. No dia seguinte, ele visitou a fábrica e conferiu os resultados da parada técnica.
O VALE DO JARI HOJE
As principais atividades desenvolvidas pelo Grupo Orsa na região
Troncos de eucalipto e de madeira nativa, como angelim e cupiúba, descansam no pátio vizinho à fábrica. O eucalipto alimenta a unidade produtora de celulose e sua casca é usada como biomassa para geração de energia. A madeira nativa é cortada na serraria. Os dois processos contam com a certificação FSC, que atesta o manejo responsável de florestas
"Em sete anos já investimos mais de US$ 200 milhões em modernização", diz. Algumas mudanças vêm sendo feitas para melhorar aspectos ambientais. Uma torre de resfriamento foi instalada para permitir a reutilização da água, reduzindo a necessidade de captação no Rio Jari. O cloro usado no branqueamento da celulose foi substituído por oxigênio, em atendimento a exigências ambientais do mercado europeu, para onde vão cerca de 70% da produção. Também foram instalados filtros para a redução de emissões atmosféricas e realizadas mudanças nos sistemas de secagem e embalagem, para eliminar gargalos na produção.
A modernização da fábrica ainda não é suficiente para equacionar um problema histórico do Jari: o custo de sua infra-estrutura gigantesca. "A fabricação de celulose na Amazônia é 20% mais onerosa que a média nacional", diz Amoroso. "Quando chegamos, era 50% mais cara." A capacidade de produção da usina passou de 280 mil para 410 mil toneladas por ano. Estima-se que seria necessário alcançar 1 milhão de toneladas por ano para equilibrar as contas. Para ampliar a escala, o empresário planeja instalar uma segunda linha de celulose, ao lado da original, até 2015 - investimento de US$ 1 bilhão que deverá exigir a busca de parceiros ou a abertura de capital do grupo. Ele também estuda a possibilidade de construir a hidrelétrica da cachoeira de Santo Antônio, um item do projeto de Ludwig que não saiu do papel.
O tamanho das plataformas construídas no Japão inviabilizaria a passagem das fábricas do Jari pelo Canal do Panamá. Por isso, elas percorreram o caminho mais longo, pelos Oceanos Índico e Atlântico, até o Rio Amazonas (abaixo, no mapa). Na foto publicada pela National Geographic (acima), a usina de energia chega ao Jari. A reportagem relata o espanto de uma criança que vivia na região: "Uma cidade está vindo pelo rio!"
O Jari é um projeto que nunca conheceu o sucesso. Ao contrário, consumiu milhões, de empresários e do governo . Encontrar uma forma de viabilizar a operação é essencial para que Amoroso possa concretizar sua ambição de transformá-lo numa experiência que, além de lucros para o Orsa, gere benefícios econômicos, sociais e ambientais para a região. (Em maio, o BNDES aprovou financiamento de R$ 145,4 milhões para a Jari Celulose.) A tarefa de transformar a região é dificílima. O Jari ocupa área de 1,7 milhão de hectares marcados pela pressão sobre a floresta e por carências sociais históricas. Vivem ali mais de 130 mil pessoas, nos municípios de Vitória do Jari, Almeirim e Laranjal do Jari, e em 98 comunidades espalhadas pela região. Além da celulose, o Orsa desenvolve o manejo de florestas nativas, faz pesquisas com ativos da biodiversidade e experiências com agricultura. Em sete anos, o grupo teve conquistas importantes. Em 2003, uma gleba de 965 mil hectares recebeu certificação da organização Forest Stewardship Council (FSC), que atesta o manejo responsável de florestas. No dia-a-dia, porém, o plano de Amoroso enfrenta adversidades características de uma região complexa como a Amazônia.
UMA AVENTURA TRANSOCEÂNICA
O caminho percorrido pelas fábricas do Jari, do Japão à Amazônia, em 1978
Na floresta vulnerável
O angelim vermelho de número 70609 entrou na linha de produção da serraria da Orsa Florestal pouco depois das 12 horas, naquela tarde úmida de 19 de abril. Pelos registros da empresa, a árvore foi derrubada 227 dias antes. Em menos de 15 minutos, o tronco de 4 metros de comprimento e cerca de 1 metro de diâmetro perde os contornos arredondados. São necessários três homens para ajeitar na esteira o novo angelim, agora um bloco quadrado de madeira maciça, antes que ele comece a ser cortado em lâminas. Concluído o processo, a madeira ainda ficaria no galpão da serraria por quatro semanas antes de ser embarcada num navio com destino à Holanda.
O registro 70609 é o número de custódia do angelim - uma espécie de RG que as árvores nativas do Jari recebem quando são inventariadas no meio da floresta e que acompanha a madeira até sua entrega ao cliente. A prática é uma das determinações do manejo florestal certificado e tem como objetivo dar garantia de origem ao comprador. Nas auditorias feitas pela empresa certificadora, um técnico escolhe um número de identificação e vai para o meio do mato conferir se a placa com o RG foi mesmo colocada no lugar exato de onde saiu a árvore. Nesse tipo de atividade, há limitações para a quantidade de madeira que pode ser retirada e técnicas especiais de corte, para que a árvore venha ao chão sem provocar grandes danos à sua volta. Espécies raras têm de ser deixadas de pé. A área explorada num determinado ano fica em descanso por outros 30, que seria o período necessário para a recomposição do ecossistema.
De segunda a sexta-feira, por volta das 5 horas da manhã, centenas de moradores de Laranjal do Jari (à esq., ao fundo) pedalam suas bicicletas até a beira do rio que separa o município do distrito de Monte Dourado. Depois de guardá-las num estacionamento (à dir.), fazem a travessia em lanchas-táxis que cobram R$ 0,50 por pessoa. Na outra margem, ônibus da companhia Jari Celulose aguardam para levá-los ao trabalho
Os madeireiros ilegais que destroem grandes áreas na Amazônia, ocupadas depois pela soja e pela pecuária, não respeitam o tempo e as características da floresta. Estima-se que mais de 60% da exploração de madeira seja feita de forma predatória. As mudanças climáticas estão tornando mais urgente a busca de novas soluções para a região, uma vez que o desmatamento responde por 75% das emissões brasileiras de gases do efeito estufa. O manejo florestal é tido como uma alternativa na tentativa de combinar conservação ambiental com exploração econômica. "A certificação é uma forma de proteger a floresta e gerar riqueza para as populações locais", afirma Rubens Gomes, presidente do conselho diretor do FSC Brasil. A exploração feita dessa forma também é operacionalmente mais complexa e mais cara.
A gestão de florestas nativas é um negócio novo para o Grupo Orsa, que cresceu fabricando papel e embalagens. "Já coloquei US$ 15 milhões nisso e ainda não vi a cor do dinheiro", diz Amoroso. Criada em 2003, a Orsa Florestal faturou R$ 13,2 milhões no ano passado. A área certificada de florestas nativas, de 545 mil hectares, está dividida em 30 lotes. A empresa ainda não conseguiu explorar a área total permitida nos primeiros lotes por causa dos limites de produção da serraria e da falta de compradores para algumas espécies. Das mais de 800 identificadas no Jari, cerca de 20 têm valor comercial atualmente. "Já colocamos novas espécies no mercado, mas é um processo difícil", afirma Luciano Schaaf, gerente de planejamento da Orsa Florestal. "O mercado de madeira certificada é sofisticado e exige muito investimento em pesquisa para descobrir a melhor utilização para as novas espécies." Mais de 90% da produção de madeira do Jari vai para clientes europeus.
Gerar renda para apopulação é uma das tentativas do Orsa para evitar conflitos sociais
A Orsa Florestal já enfrentou dificuldades no relacionamento com os órgãos ambientais, com atrasos na autorização dos planos de manejo, e contratempos que ameaçaram paralisar a operação. Em meados de 2005, a região do Jari foi alvo de tentativas de invasão de terra e roubo de madeira, um problema que vem sendo enfrentado por companhias que trabalham com florestas certificadas na Amazônia - e que já levou algumas a fechar as portas. "Já apareceu gente por aqui oferecendo mil reais para cada 100 hectares de terra", diz o agricultor Manoel Santos, morador de uma comunidade do Jari.
Criar opções de geração de renda para as comunidades que vivem na área é uma das saídas do grupo para evitar invasões e conflitos sociais. É também uma forma de diversificar os negócios e encontrar outras atividades que possam ser lucrativas no futuro. Uma das possibilidades é a exploração de produtos não madeireiros, como o óleo da castanha-do-pará. Outra é a criação de projetos de agricultura como o do curauá, uma fibra usada na indústria automobilística. Já foram plantadas 125 mil mudas de curauá em áreas degradadas do Jari. Algumas estão no terreno cultivado por seu Manoel. Ele também integra o programa de fomento florestal, que será essencial para garantir o suprimento de eucalipto para a nova fábrica de celulose. "Já temos 600 hectares de fomento e esperamos chegar a 2 mil no ano que vem", diz Augusto Praxedes Neto, coordenador de relações institucionais da Jari Celulose. "Integrar a população a novos negócios que sejam viáveis a longo prazo é um dos maiores desafios."
HISTÓRIA DE UMA UTOPIA AMAZÔNICA
Os principais acontecimentos que marcaram o Jari, um projeto suntuoso que nunca conheceu o sucesso
1967>>> O americano Daniel Ludwig compra uma área de 1,7 milhão de hectares na divisa do Pará com o Amapá
1978>>> As duas estruturas flutuantes construídas no Japão - com uma usina de energia e uma de celulose - chegam ao Jarí
1979>>> Começa a produção de celulose. O empreendimento também englobava pecuária, agricultura e extração do caulim
1980>>> Em carta ao ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência, general Golbery do Couto e Silva, Ludwig pede que o governo brasileiro assuma a infra-estrutura do projeto
1982>>> Ludwig desiste do Jari. O controle é transferido para um grupo de empresários liderado por Augusto Trajano de Azevedo Antunes, da Caemi
1988>>> A explosão da caldeira da fábrica de celulose paralisa a produção por oito meses
1996>>> Morre Antunes. Seus netos Mário e Guilherme Frering assumem o controle e decidem vender a empresa, deficitária
1997>>> Outro incêndio interrompe a produção. Tem início um novo programa de renegociação da dívida
2000>>> A Saga Investimentos e Participações, do empresário Sergio Amoroso, assume a dívida e o controle do Jarí
2003>>> Uma área de 965 mil hectares - de florestas nativas e eucalipto - recebe a certificação FSC, de manejo responsável de florestas
2005>>> O planejamento estratégico do Orsa para 2015 prevê a expansão do manejo e a instalação de uma nova linha de celulose
Esqueletos no armário
A maranhense Euricelia Cardoso, de 31 anos, prefeita de Laranjal do Jari, quer acelerar o desenvolvimento do município. Uma de suas principais obras poderá ser a construção da ponte que o ligará ao distrito de Monte Dourado
Sergio Amoroso diz que tomou conhecimento da existência do Jari em 1997, quando foi convidado a "dar uma olhada" no projeto. Na época, o BNDES estava em busca de novos compradores para o Jari. Depois da saída de Ludwig, em 1982, o empreendimento havia sido vendido para um consórcio de bancos e empresas liderado por Augusto Trajano de Azevedo Antunes, do grupo Caemi. Com a morte do empresário em 1996, passou para netos de Antunes, que quiseram se desfazer do negócio. Depois de idas e vindas, o acerto com Amoroso saiu em março de 2000. A proposta do grupo teria sido considerada melhor que a da Tembec, fabricante canadense de papel e celulose.
A Saga Investimentos e Participações, de Amoroso, assumiu a dívida de US$ 415 milhões com o pagamento em dez anos atrelado ao fluxo de caixa. A garantia mínima oferecida por Amoroso foi de US$ 112 milhões. Até dezembro de 2006, segundo ele, o Orsa havia pago US$ 7 milhões da dívida e outros US$ 61 milhões de juros. Nascido numa família humilde em Birigüi, Amoroso trabalhou numa cartonagem na periferia de São Paulo e começou sua empresa em 1981. Fez o negócio crescer comprando e recuperando companhias falidas de papel para embalagem. "Amoroso encontrou seu espaço em meio a grandes grupos instalados desde o início do século", diz Horácio Lafer Piva, presidente da Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa) e membro do conselho de administração da Klabin. "Ele carrega uma marca de ousadia."
Com a compra do Jari, outros membros da família Amoroso que participavam do grupo decidiram sair da sociedade. "Eles achavam que era arriscado demais", diz Sergio. Ao iniciar a operação na Amazônia, ele percebeu que tudo realmente seria mais complicado do que imaginara. "Você abria uma gaveta e achava três caveirinhas", diz, referindo-se aos antigos "esqueletos" da operação. O Orsa herdou passivos ambientais e sociais. Um dos mais complicados, ainda hoje não totalmente regularizado, diz respeito à situação fundiária do Jari. Segundo o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), os títulos de propriedade hoje em mãos do Orsa são insuficientes para cobrir a área do projeto. Diante de um desafio de proporções amazônicas, o grupo precisou rever sua gestão. Amoroso contratou profissionais e criou um conselho de administração. "Ele tem visão empreendedora e preocupação social apurada", afirma Decio Zylbersztajn, coordenador do Programa de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial da Universidade de São Paulo e conselheiro do Orsa. "São características fundamentais para alguém que pretenda pilotar um negócio complicado como o Jari."
"Não comprei o Jari com olhar de negócios", diz Amoroso. "Há outras coisas importantes ali." Ele faz uma pausa antes de começar a contar uma história. "Quando comecei minha empresa, determinei o tamanho que gostaria que ela tivesse quando eu chegasse ao fim da vida. Nove anos depois o negócio era muito maior do que eu tinha imaginado. Comecei a achar que o dinheiro não me faria feliz e senti uma insatisfação enorme." Foi quando ele conheceu Décio Lauria, empresário de Campinas que largou tudo para se dedicar ao trabalho social. "Era uma pessoa evoluída espiritualmente", diz. "Ele tirou dinheiro do meu bolso para dar aos pobres. Estava me testando." Amoroso e o "irmão Décio" começaram a travar longas conversas sobre autoconhecimento e espiritualidade. "Certo dia, ele me disse: 'Sergio, você não tem de doar dinheiro. Tem de se doar'. Levei anos para entender."
Ônibus fazem o trajeto da área de palafitas, que deu a Laranjal do Jari o apelido de "Beiradão" ainda nos tempos de Ludwig, para os novos bairros, localizados na região de terra firme, batizada de "Agreste"
Nas conversas sobre sua trajetória, dois aspectos chamam a atenção em Amoroso. Primeiro, algumas referências espiritualistas e místicas. "Não é possível fazer certos movimentos na vida sem ter convicção de que existe algo maior", diz. Segundo, a maneira como fala de sua vida pessoal. Amoroso chega a ser de uma abertura desconcertante, a ponto de revelar a desconhecidos detalhes de sua vida íntima - como aspectos da recente separação de sua mulher, com quem teve três filhos e adotou três crianças. Mas o tema mais recorrente em seu discurso é a preocupação com as questões sociais. Em 1994, meses depois da morte de Lauria, Amoroso criou a Fundação Orsa. Uma regra determina que 1% do faturamento anual do grupo seja destinado à fundação, independentemente dos resultados financeiros.
Em 13 anos, mais de R$ 120 milhões foram destinados a ações sociais. A fundação atende, em média, 1,4 milhão de crianças e adolescentes por ano. Uma de suas experiências de sucesso foi a criação do método Mãe Canguru, voltado para a recuperação de bebês prematuros e de baixo peso, que virou política pública em centenas de maternidades em todo o país. Amoroso também participa de outras organizações, como o Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graac), do qual é o atual presidente. Sua visão social vai além da filantropia tradicional. "Quero encontrar modelos de atuação empresarial que combinem soluções econômicas com soluções sociais", afirma. É uma abordagem considerada de vanguarda no movimento da responsabilidade social empresarial.

A fundação quer ser empresa
Um dos desafios do Orsa é desenvolver novas atividades econômicas no Jari, integrando as comunidades que vivem na área. Entre as experiências com agricultura, o grupo aposta no plantio do curauá, uma fibra que se adapta a solos pobres e é usada pela indústria automobilística. Cerca de 125 mil mudas já foram plantadas em áreas degradadas
A fundação é hoje a face mais visível do Orsa no Vale do Jari. É a ela, e não às empresas, que os moradores da região se referem quando querem falar do grupo. Na Amazônia, seus profissionais depararam com questões sociais - como os altos índices de prostituição infantil - que extrapolavam o contexto com o qual estavam habituados a trabalhar. "Num primeiro momento, eles tentaram aplicar soluções que já tinham dado certo em outros lugares, mas as demandas eram diferentes", afirma João Teixeira Pires, pesquisador do Centro de Empreendedorismo Social e Administração do Terceiro Setor (Ceats), que fez um diagnóstico socioambiental da região para o Orsa. "Notamos que as ações da fundação ainda são pulverizadas e precisam ser mais alinhadas à estratégia de promoção do desenvolvimento sustentável local."
Na sede, instalada em Monte Dourado, há quadra de esportes e salas com computadores, mas o espaço está vazio. "Percebemos que aqui as pessoas se sentiam isoladas de sua realidade", diz Amoroso. "Tivemos de ir para as comunidades." Hoje a fundação tem cinco unidades espalhadas pelos municípios do Jari. Nelas, as paredes são pintadas com cores vibrantes e os profissionais andam com o crachá à vista. Quando o empresário aparece para uma visita com algum convidado, as crianças e os jovens logo se organizam para apresentações de música ou capoeira.
No Jari de 2007, busca-se combinar soluções econômicas com iniciativas sociais
Gilvandro Ferreira, de 21 anos, é um dos jovens atendidos pela fundação que participaram de um intercâmbio cultural com a Organização Intereclesiástica para a Cooperação ao Desenvolvimento (Icco). Durante um ano, ele viveu com uma família em Joure, na Holanda, onde freqüentou a escola e fez cursos de informática. Um dos objetivos da parceria é ensinar aos jovens atividades que possam desenvolver profissionalmente no Jari. Ferreira, porém, está sem trabalho. "Não encontrei muitos lugares onde pudesse usar o que aprendi na Europa", diz. Amoroso demonstra preocupação. "Se os jovens não encontrarem oportunidades por aqui, vão acabar indo embora."
Há cerca de dois anos, ele vem redirecionando a atuação da fundação. O objetivo é integrar as ações sociais às atividades das empresas do grupo, formando novas cadeias produtivas no Jari. Uma das experiências é um centro profissionalizante que já formou mais de 70 jovens em trabalhos com madeira certificada. A Orsa Florestal doa ao grupo restos de madeira, que viram mesas, cadeiras, suporte para cortinas e artigos para escritório. "Formamos os meninos e estamos tentando melhorar a qualidade, mas ainda precisamos achar mercado para os produtos", diz José Molinos, gestor do projeto incubadora da fundação. A cooperativa formada por alunos do centro está em busca de um terreno onde possa instalar sua sede, mas dificuldades na negociação com a prefeitura de Vitória do Jari estão atrasando o projeto.
Uma ponte para o Jari
Algo mudou no Jari desde que lá estive pela primeira vez, em 2005. O pequeno aeroporto foi reformado, ganhou uma lanchonete e uma lojinha de presentes. A plantação de eucalipto que acompanha a estrada de chão batido dali até Monte Dourado parece ter se adensado. Dois anos atrás, a travessia de cerca de dois minutos para Laranjal do Jari, na outra margem do rio, foi uma experiência marcante. A imagem da fileira interminável de palafitas se aproximando era semelhante às descrições que eu havia escutado sobre a ocupação desordenada do "Beiradão" por forasteiros atraídos pelo projeto de Daniel Ludwig. Na descida da lancha, lembro de ter visto mulheres lavando roupa e crianças nadando no rio coberto de lixo.
Nos tempos de Ludwig, a passarela de madeira do Beiradão abrigava um comércio efervescente, bares e bordéis. O cenário era palco de brigas que, segundo reza a lenda, provocavam vários óbitos por semana. Em 2005, a área ainda era uma das mais agitadas do município. Hoje é possível perceber que o movimento, em alguns pontos, despencou. Um incêndio queimou centenas de palafitas em outubro passado e, desde então, comerciantes e moradores vêm trocando o Beiradão pela região de terra firme, batizada de Agreste. "Incentivamos as pessoas a ir para áreas mais seguras, mas algumas ainda preferem viver sobre as águas", afirma a maranhense Euricelia Cardoso, de 31 anos, prefeita de Laranjal do Jari. "É a cultura ribeirinha."
OS SONHADORES
A trajetória e a ambição do criador do projeto Jari e de seu atual dono
>Daniel Keith Ludwig 
Origem: filho de um corretor imobiliário, nasceu em South Haven, Michigan (EUA), em 1897 Trajetória: aos 19 anos, pegou US$ 5 mil emprestados do pai e comprou um barco. Dez anos depois, era dono de um petroleiro. Na década seguinte, construiu petroleiros para o governo americano e montou um império que englobava estaleiros, refinarias de petróleo, minas de carvão, fazendas e empreendimentos imobiliários em 15 países. Em 1980 sua fortuna era calculada em US$ 5 bilhões Jari: comprou o Jari em 1967, aos 70 anos de idade Desafios: Ludwig teve de bancar toda a infra-estrutura do projeto, da criação de vilas à abertura de estradas. Dificuldades no relacionamento com o governo brasileiro, prejuízo operacional e custos altos fizeram com que ele deixasse a Amazônia
>Sergio Antonio Garcia Amoroso 
Origem: filho de agricultores, nasceu em Birigüi, no interior de São Paulo, em 1954 Trajetória: foi funcionário de uma empresa de cartonagem e, em 1981, criou o próprio negócio. Em três anos, dirigia a maior companhia de cartonagem do país. O Grupo Orsa cresceu comprando e recuperando empresas falidas. Hoje suas três empresas - Orsa Celulose, Papel e Embalagens, Jari Celulose e Orsa Florestal - faturam, juntas, R$ 1,3 bilhão Jari: assumiu o empreendimento em 2000, com uma dívida de US$ 415 milhões Desafios: o grupo teve de arcar com passivos sociais e ambientais. Para tornar o Jari viável, deverá ampliar a produção de celulose e desenvolver negócios baseados na floresta de maneira ambientalmente responsável e integrados à comunidade local
Na sala de entrada da prefeitura, onde há um painel com fotos de festas comunitárias e cerimônias de inauguração de obras, alguns moradores aguardam para falar com Euricelia. Eles a procuram para pedir tratamentos médicos, passagens de ônibus e tratar de outros assuntos pessoais. Em Laranjal do Jari, faltam saneamento e postos de saúde. De acordo com o diagnóstico socioambiental feito para o Orsa pelo Ceats, da USP, menos de um terço da população tem acesso a programas federais como o Bolsa Família. As oportunidades de trabalho formal são escassas, o que torna o município dependente de companhias que operam na região, como o Orsa e a Cadam, produtora de caulim.
A criação de um novo modelo de exploração sustentável no Vale do Jari depende de diversos fatores além da atuação do Orsa - entre eles, as estratégias do governo para a Amazônia e as aspirações das mais de 130 mil pessoas que vivem na região
Euricelia conta que pretende estreitar os laços com as empresas e acelerar outros projetos. Um deles é a criação de um novo conjunto habitacional, com 500 unidades. Outro é a polêmica construção de uma ponte sobre o Rio Jari. O plano é antigo e estava engavetado. Numa das pontas da passarela do Beiradão é possível ver homens uniformizados trabalhando na obra. Se for concluída, a ponte ligará Laranjal à "prima rica" Monte Dourado - uma vila planejada onde há água encanada, coleta de lixo e ruas asfaltadas.
Monte Dourado mudou pouco desde sua criação, nos anos 60, para abrigar profissionais que vinham de todos os cantos para trabalhar no Projeto Jari. Os empregados ganhavam casa mobiliada, com geladeira e máquina de lavar roupa. As casas de um pavimento, com garagem coberta ao lado da porta de entrada, jardim e cercas baixinhas lembram um subúrbio americano. Ainda hoje a fantasia sobre o projeto continua a atrair gente de fora. Um dos que chegaram recentemente é o engenheiro florestal Schaaf, de 32 anos, que trabalhava numa consultoria ambiental em Curitiba antes de ser contratado pela Orsa Florestal. "Vim porque queria fazer parte do projeto", diz. "Tinha dúvidas sobre as experiências com manejo sustentável e pensei: se há um lugar onde isso pode dar certo, é no Jari."
A transformação do Jari ainda exigirá anos de investimentos, superação de desafios e aprendizado. Criar um novo padrão de desenvolvimento, que proteja a floresta e gere riquezas para quem vive ali, depende de uma rede complexa de fatores - entre eles, os planos criados pelo governo para a Amazônia e as aspirações da população local. Para o Orsa, o sucesso dependerá também da capacidade de sustentar a estratégia desenhada por Amoroso. Ele é otimista. "Gostaria um dia de ver a fábrica produzindo 2,5 milhões de toneladas, os projetos de fomento e do curauá consolidados, empresas de móveis de madeira certificada criadas por gente da região e grandes negócios de produtos florestais", afirma. "Quando comprei o Jari, imaginei que precisaria de 30 anos para começar a apontar caminhos. Hoje acho que dá para fazer em menos tempo."
Quatro décadas separam os projetos de Ludwig (à esq.) e Amoroso - dois empreendedores que começaram seus negócios do nada e sonharam transformar a Amazônia. Ludwig tentou fazê-lo numa época em que o mundo começava a falar em preservação ambiental. Amoroso executa seu plano num momento de discussão sobre a sustentabilidade e de busca de alternativas econômicas que respeitem as condições socioambientais da floresta

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