Uma lenda de 40 anos, mas tida como verdade inquestionável, é desfeita nesta edição do Jornal Pessoal: de que o prefeito biônico de Belém, Mauro Porto, tinha mandado desmontar os coretos do largo de Nazaré e os levado para sua residência (ou sitio), em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Eu próprio endossei a história. Na época em que o fato teria ocorrido, eu morava em Sao Paulo, onde fiquei de 1969 até o final de 1974, com um intervalo de permanência em Belém. Quando voltei, era uma das histórias que se contava na cidade. Tentei confirmá-la. Nunca consegui.
Por linhas tortas, isso acabou acontecendo, a partir de uma nota que escrevi para a coluna Memória do Cotidiano.
Dizia o texto:
“Pouquíssimas pessoas sabiam quem era o engenheiro carioca Mauro Fernando Pilar Porto, quando o governador Alacid Nunes o nomeou prefeito de Belém, em março de 1970. Nessa época, nas capitais, o cargo era preenchido por indicação direta do governador do Estado. 0 prefeito era uma espécie de secretário especial para o município, subordinando e dependente ao chefe do executivo estadual. No auge do regime militar, iniciado seis anos antes, prevalecia a idéia de que tecnocrata, ainda mais quando de fora do local era o mais indicado para os principals cargos públicos. Porque sabia o que fazia e não tinha vínculos limitadores. No caso de Mauro Porto não houve mesmo limitações. Dele, restou na memória que conseguiu levar os belos coretos que havia na praça de Nazaré, instalando-os em Petrópolis. Mágica tecnocrática”.
Pouco depois, recebi a seguinte mensagem do personagem, que me surpreendeu em todos os sentidos, por seu conteúdo e pelo seu bom humor e espirito de tolerância:
“Por um mero acaso, ao pesquisar ‘Mauro Fernando Pilar’ na Internet para identificar um homônimo que me estava criando um problema, dei com esse texto, na sua ‘Memória do Cotidiano’.
Lúcio Flávio Pinto, pense um pouquinho, por favor.
Mauro Fernando Pilar Porto, prefeito tecnocrata de Belém, ‘conseguiu levar os belos coretos que havia na praça de Nazaré, instalando-os em Petrópolis’.
Como ele fez essa mágica?
As oito colunas de ferro fundido, que havia para levar, teriam ido 3.300 km de caminhão, pela inacabada Belém-Brasilia?
Ou, talvez, sendo os militares tão poderosos, transportados pela FAB para o Rio de Janeiro, e de la para o sitio em Petrópolis?
Mas… Como um simples capitão engenheiro poderia ter um sitio em Petrópolis durante os ditos ‘anos de chumbo’, em que a corrupção era inexoravelmente reprimida, e um Presidente da Republica demitiu um irmão por haver utilizado o carro de uma empresa (“demitido você já está, devolva o carro para evitar sua prisão”)?
O inspirador-coordenador da reforma da praça foi o Evandro Simões Bonna, benemérito diretor do Círio de Nazaré, competente e incorruptível ‘sub-prefeito’ de Icoaraci, desde os tempos de Stélio Maroja.
Em 1970, na última noticia que tive por ele, os restos mortais dos coretos estavam nos porões da Basilica, para serem remontados em Icoaraci, se valesse a pena reaproveitar.
E lá ainda estavam quando um juiz apressado erradamente arquivou a ‘ação popular’, juntamente com a ação de danos morais que fiz contra o politico do PMDB (nem sei mais quem foi, Moura Palha, talvez?) o autor da irresponsável denúncia, em 1973. É possível que ainda estejam la.
Eu ficaria bastante grato se você, com a sua retidão de jornalista, investigasse esse assunto e nos contasse o final da história”.
Agradeci ao ex-prefeito pela mensagem e pelo seu desejo de esclarecer de uma vez esse episódio, dispondo-me a participar dessa empreitada. Para tanto, solicitei-lhe que me esclarecesse qual sua participação (e da prefeitura, institucionalmente) na mudança da praça de Nazaré. Assegurei-lhe a publicação da sua carta. Ele prontamente me atendeu. Mandou um novo texto, mais completo, que se segue, além dos documentos comprovando tudo o que dizia.
Por se tratar de uma peça histórica, reproduzo-a na integra. Diz Mauro Porto:
“Quanto à obra da Praça de Nazaré”
Minha participação na retirada dos coretos é mais ou menos como a de Pilatos no Credo: aprovei a execução de um projeto que chegou pronto as minhas mãos.
Quem primeiro conversou comigo sobre a óbvia necessidade da obra foi o Evandro Bonna. Todos os que viveram na época com certeza se lembram da pobreza campestre daquela enorme praça de terra, esburacada todos os anos pelas barracas e o movimento do Círio.
Segundo Bonna, o que desejavam os diretores da festa era uma praça pavimentada com toques de verde, com lugares pré-programados para inserção dos suportes dos balcões e coberturas. Quando me foi trazido o projeto pela comissão, acompanhada pelo Secretário de Obras, não tive porque negar a aprovação.
Cabe aqui uma observação esclarecedora: não é bem verdade que naquela época o prefeito das capitais era uma espécie de secretário especial, escolhido por indicação do governador.
O fato é que o governador fazia uma lista quíntupla, mas a indicação vinha de cima. No meu caso, fui escolhido por [general Garrastazu] Médici [terceiro presidente do regime militar pós- 1964], por ser conhecido dele e de [general João] Figueiredo [quinto e último presidente do ciclo, que se estendeu ate. 1985 ], por meu trabalho anterior no Amazonas (de 1964/1967 fui Diretor fundador e Superintendente Geral da implantação da Companhia Amazonense de Telecomunicações).
A Camtel, bem antes da criação da Telebrás, aprontou a nova rede telefônica de Manaus, com interurbano para as principais cidades do interior, bem à tempo da inauguração da Zona Franca. Fui trazido a Belém para fazer o mesmo aqui e, depois de dois anos presidindo a Cotelpa, de repente me fizeram prefeito.
[O governador] Alacid [Nunes] só fez pressão para que eu nomeasse dois secretários escolhidos por ele, coincidentemente para as secretarias mais importantes, da Fazenda e de Obras.
Mantive os dois o tempo que foi necessário para ficar claro que se consideravam mais secretários do Estado que do Município, e troquei os dois por gente escolhida por mim.
Assim, as obras da praça de Nazaré foram inicialmente tocadas pelo [José Maria] Brito, depois pelo Mario Elisio Motta Pereira, sempre com a sempre bem-vinda assistência do Bonna.
Quanto à questão da “ação popular” e minha inoperante defesa
Morando no Rio de Janeiro, só quando comecei a ser citado como revel “por morar em lugar incerto e não sabido”, é que me dei conta do espetáculo que estava sendo montado ao meu redor.
Como os advogados que seriam minha primeira escolha declararam-se impedidos por trabalharem na Prefeitura, contratei o Paulo Klautau, indicado pelo Aldebaro. A carta dele foi uma paulada.
Exigiu nada menos que um “down payment” de sete mil e quinhentos dólares, e parcela igual a ser paga “no despacho do Juiz de Direito da Vara da Fazenda Municipal”, onde corria a “ação popular”.
Paguei imediatamente o que foi pedido, isso em junho de 1977, com instruções muito claras de que a ação teria que ser levada até o completo desmascaramento da farsa.
Semanas tornaram-se meses, meses viraram anos, até que, em janeiro de 1981, sem conseguir mais que evasivas quanto à solução da ação popular, e da nossa ação de danos morais, que a demora e a repercussão do caso tinha tornado imprescindível , escrevi ao que então era o causídico sênior do Escritório Klautau.
A resposta do Paulo Klautau é uma obra prima de irresponsabilidade profissional, que é desnecessário comentar.
Termina assim: “Creia, no entanto, que levei a efeito, e prosseguirei a envidar todos os vigores (!!), no sentido de encontrar breve e definitiva solução para a causa”.
Nunca consegui receber dele qualquer informação por escrito, e muito menos o texto de qualquer argumento ou ação que tenha sido proposta por ele.
Não teve nem a hombridade de comunicar o arquivamento do processo. Tive conhecimento disso por terceiros.
Que providencia tomei, em vista disso? Nenhuma. Conheço muito bem o pais em que vivo.
Com meu abraço, e um bocado de nostalgia, saudade dos meus tempos de juventude, e dessa magnifica Amazônia a que dediquei quase dez anos de minha vida”.
De fato, as peças desmontadas dos coretos foram guardadas no porão da basilica de Nazaré pelos padres redentoristas, mas eles se recusaram tanto a prestar informações sobre o material como a informar sobre o destino dado ao acervo, quando procurados, uma única vez, logo que a celeuma começou. Agora, com o testemunho de Mauro Porto, talvez se sintam na obrigação de se manifestar a respeito, ao invés de tomar decisões unilaterais, como aconteceu com os púlpitos da igreja.
Finalmente, a verdade começa a emergir das cinzas da memória. Quem puder acrescentar um ponto que relate seu conto.
(Jornal Pessoal – agosto de 2011 – 1ª quinzena)
Por linhas tortas, isso acabou acontecendo, a partir de uma nota que escrevi para a coluna Memória do Cotidiano.
Dizia o texto:
“Pouquíssimas pessoas sabiam quem era o engenheiro carioca Mauro Fernando Pilar Porto, quando o governador Alacid Nunes o nomeou prefeito de Belém, em março de 1970. Nessa época, nas capitais, o cargo era preenchido por indicação direta do governador do Estado. 0 prefeito era uma espécie de secretário especial para o município, subordinando e dependente ao chefe do executivo estadual. No auge do regime militar, iniciado seis anos antes, prevalecia a idéia de que tecnocrata, ainda mais quando de fora do local era o mais indicado para os principals cargos públicos. Porque sabia o que fazia e não tinha vínculos limitadores. No caso de Mauro Porto não houve mesmo limitações. Dele, restou na memória que conseguiu levar os belos coretos que havia na praça de Nazaré, instalando-os em Petrópolis. Mágica tecnocrática”.
Pouco depois, recebi a seguinte mensagem do personagem, que me surpreendeu em todos os sentidos, por seu conteúdo e pelo seu bom humor e espirito de tolerância:
“Por um mero acaso, ao pesquisar ‘Mauro Fernando Pilar’ na Internet para identificar um homônimo que me estava criando um problema, dei com esse texto, na sua ‘Memória do Cotidiano’.
Lúcio Flávio Pinto, pense um pouquinho, por favor.
Mauro Fernando Pilar Porto, prefeito tecnocrata de Belém, ‘conseguiu levar os belos coretos que havia na praça de Nazaré, instalando-os em Petrópolis’.
Como ele fez essa mágica?
As oito colunas de ferro fundido, que havia para levar, teriam ido 3.300 km de caminhão, pela inacabada Belém-Brasilia?
Ou, talvez, sendo os militares tão poderosos, transportados pela FAB para o Rio de Janeiro, e de la para o sitio em Petrópolis?
Mas… Como um simples capitão engenheiro poderia ter um sitio em Petrópolis durante os ditos ‘anos de chumbo’, em que a corrupção era inexoravelmente reprimida, e um Presidente da Republica demitiu um irmão por haver utilizado o carro de uma empresa (“demitido você já está, devolva o carro para evitar sua prisão”)?
O inspirador-coordenador da reforma da praça foi o Evandro Simões Bonna, benemérito diretor do Círio de Nazaré, competente e incorruptível ‘sub-prefeito’ de Icoaraci, desde os tempos de Stélio Maroja.
Em 1970, na última noticia que tive por ele, os restos mortais dos coretos estavam nos porões da Basilica, para serem remontados em Icoaraci, se valesse a pena reaproveitar.
E lá ainda estavam quando um juiz apressado erradamente arquivou a ‘ação popular’, juntamente com a ação de danos morais que fiz contra o politico do PMDB (nem sei mais quem foi, Moura Palha, talvez?) o autor da irresponsável denúncia, em 1973. É possível que ainda estejam la.
Eu ficaria bastante grato se você, com a sua retidão de jornalista, investigasse esse assunto e nos contasse o final da história”.
Agradeci ao ex-prefeito pela mensagem e pelo seu desejo de esclarecer de uma vez esse episódio, dispondo-me a participar dessa empreitada. Para tanto, solicitei-lhe que me esclarecesse qual sua participação (e da prefeitura, institucionalmente) na mudança da praça de Nazaré. Assegurei-lhe a publicação da sua carta. Ele prontamente me atendeu. Mandou um novo texto, mais completo, que se segue, além dos documentos comprovando tudo o que dizia.
Por se tratar de uma peça histórica, reproduzo-a na integra. Diz Mauro Porto:
“Quanto à obra da Praça de Nazaré”
Minha participação na retirada dos coretos é mais ou menos como a de Pilatos no Credo: aprovei a execução de um projeto que chegou pronto as minhas mãos.
Quem primeiro conversou comigo sobre a óbvia necessidade da obra foi o Evandro Bonna. Todos os que viveram na época com certeza se lembram da pobreza campestre daquela enorme praça de terra, esburacada todos os anos pelas barracas e o movimento do Círio.
Segundo Bonna, o que desejavam os diretores da festa era uma praça pavimentada com toques de verde, com lugares pré-programados para inserção dos suportes dos balcões e coberturas. Quando me foi trazido o projeto pela comissão, acompanhada pelo Secretário de Obras, não tive porque negar a aprovação.
Cabe aqui uma observação esclarecedora: não é bem verdade que naquela época o prefeito das capitais era uma espécie de secretário especial, escolhido por indicação do governador.
O fato é que o governador fazia uma lista quíntupla, mas a indicação vinha de cima. No meu caso, fui escolhido por [general Garrastazu] Médici [terceiro presidente do regime militar pós- 1964], por ser conhecido dele e de [general João] Figueiredo [quinto e último presidente do ciclo, que se estendeu ate. 1985 ], por meu trabalho anterior no Amazonas (de 1964/1967 fui Diretor fundador e Superintendente Geral da implantação da Companhia Amazonense de Telecomunicações).
A Camtel, bem antes da criação da Telebrás, aprontou a nova rede telefônica de Manaus, com interurbano para as principais cidades do interior, bem à tempo da inauguração da Zona Franca. Fui trazido a Belém para fazer o mesmo aqui e, depois de dois anos presidindo a Cotelpa, de repente me fizeram prefeito.
[O governador] Alacid [Nunes] só fez pressão para que eu nomeasse dois secretários escolhidos por ele, coincidentemente para as secretarias mais importantes, da Fazenda e de Obras.
Mantive os dois o tempo que foi necessário para ficar claro que se consideravam mais secretários do Estado que do Município, e troquei os dois por gente escolhida por mim.
Assim, as obras da praça de Nazaré foram inicialmente tocadas pelo [José Maria] Brito, depois pelo Mario Elisio Motta Pereira, sempre com a sempre bem-vinda assistência do Bonna.
Quanto à questão da “ação popular” e minha inoperante defesa
Morando no Rio de Janeiro, só quando comecei a ser citado como revel “por morar em lugar incerto e não sabido”, é que me dei conta do espetáculo que estava sendo montado ao meu redor.
Como os advogados que seriam minha primeira escolha declararam-se impedidos por trabalharem na Prefeitura, contratei o Paulo Klautau, indicado pelo Aldebaro. A carta dele foi uma paulada.
Exigiu nada menos que um “down payment” de sete mil e quinhentos dólares, e parcela igual a ser paga “no despacho do Juiz de Direito da Vara da Fazenda Municipal”, onde corria a “ação popular”.
Paguei imediatamente o que foi pedido, isso em junho de 1977, com instruções muito claras de que a ação teria que ser levada até o completo desmascaramento da farsa.
Semanas tornaram-se meses, meses viraram anos, até que, em janeiro de 1981, sem conseguir mais que evasivas quanto à solução da ação popular, e da nossa ação de danos morais, que a demora e a repercussão do caso tinha tornado imprescindível , escrevi ao que então era o causídico sênior do Escritório Klautau.
A resposta do Paulo Klautau é uma obra prima de irresponsabilidade profissional, que é desnecessário comentar.
Termina assim: “Creia, no entanto, que levei a efeito, e prosseguirei a envidar todos os vigores (!!), no sentido de encontrar breve e definitiva solução para a causa”.
Nunca consegui receber dele qualquer informação por escrito, e muito menos o texto de qualquer argumento ou ação que tenha sido proposta por ele.
Não teve nem a hombridade de comunicar o arquivamento do processo. Tive conhecimento disso por terceiros.
Que providencia tomei, em vista disso? Nenhuma. Conheço muito bem o pais em que vivo.
Com meu abraço, e um bocado de nostalgia, saudade dos meus tempos de juventude, e dessa magnifica Amazônia a que dediquei quase dez anos de minha vida”.
De fato, as peças desmontadas dos coretos foram guardadas no porão da basilica de Nazaré pelos padres redentoristas, mas eles se recusaram tanto a prestar informações sobre o material como a informar sobre o destino dado ao acervo, quando procurados, uma única vez, logo que a celeuma começou. Agora, com o testemunho de Mauro Porto, talvez se sintam na obrigação de se manifestar a respeito, ao invés de tomar decisões unilaterais, como aconteceu com os púlpitos da igreja.
Finalmente, a verdade começa a emergir das cinzas da memória. Quem puder acrescentar um ponto que relate seu conto.
(Jornal Pessoal – agosto de 2011 – 1ª quinzena)
Ilustrações do Blog da FAU ao texto de Lúcio Flávio:
Largo de Nazaré em épocas distintas onde é possível observar, com a ampliação da imagem, alguns dos coretos em ferro fundido.
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