quarta-feira, 30 de maio de 2012

Especialistas criticam projeto do TAV brasileiro



Ter, 29 de Maio de 2012 16:57
Abandonado há décadas, o transporte ferroviário de passageiros voltou ao radar do governo com o Trem de Alta Velocidade (TAV), obra cujo custo é estimado oficialmente em R$ 30 bilhões, mas que, acreditam analistas, pode chegar a R$ 60 bilhões. Mas o projeto — que quer ligar o Rio a São Paulo e Campinas em uma hora e meia a 300 quilômetros por hora e passagem por volta de R$ 200 — não sai do papel. A nova previsão, depois de diversos adiamentos, é que o primeiro leilão de licitação aconteça no primeiro semestre de 2013. O projeto, porém, é criticado pela maioria dos especialistas no setor.
— O trem-bala é fora da realidade. O trem de média velocidade, que chega a 180 quilômetros por hora, não é muito mais caro que o convencional, o que permitiria que tivéssemos ligação com mais cidades pelo mesmo custo do trem-bala — afirma Paulo Fleury, professor da UFRJ e diretor do Instituto Ilos.
Segundo Paulo Tarso Vilela de Resende, coordenador do Núcleo CCR de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, o trem de média velocidade, também conhecido como trem-flecha, poderia ter mais estações intermediárias.
— A linha de média velocidade seria muito mais eficiente, poderia ter mais estações, mais cidades, que o TAV não consegue. Quando dispara a 300 quilômetros por hora, não pode parar. Faria a ligação Rio-São Paulo em três horas.
Hostílio Xavier Ratton Neto, professor de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ, discorda e diz que o TAV também seria indicado para os trechos São Paulo-Curitiba e Rio-Belo Horizonte.
— As classes C e D estão andando de avião e não vão querer voltar a andar de ônibus quando a capacidade do setor aéreo estourar. Por isso, pensar no TAV é a alternativa mais possível. Até 300 quilômetros é uma distância indicada para percorrer de carro e acima de mil é grande demais, o tempo gasto nos procedimentos em aeroportos compensa.
ANTF diz que trem-bala reabriu debate sobre modal
Rodrigo Vilaça, presidente-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), acredita que o debate sobre o trem-bala foi positivo para colocar o transporte de passageiros sob trilhos em destaque no Brasil. Ele lembra que diversos governos começam a retomar projetos urbanos de metrô, trens e VLTs, e que, em uma segunda etapa, deverão ser retomados os trens de passageiros de longa distãncia. Apesar disso, ele não acredita que o modelo da Vale, que compartilha os mesmos trilhos com carga e passageiros, seja o melhor:
— Isso até pode ocorrer em agumas linhas, mas, nos locais mais populosos, isso é um complicador. Temos problemas hoje na Grande São Paulo com o compartilhamento. E na Europa quase sempre há linhas dedicadas ao serviço de passageiros — comenta ele. (Fonte: O Globo)

O papel da Universidade, por Luis Nassif



Coluna Econômica - 30/05/2012
Participei na manhã de ontem de um seminário em São Paulo sobre universidade e empreendedorismo.
O expositor norte-americano trouxe um conjunto de informações sobre essas relações, nos Estados Unidos que, a rigor, batem em muito com a realidade brasileira – guardadas as devidas proporções.
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O questionamento ao papel da Universidade começou a se dar na segunda metade dos anos 90. O isolamento, a compartimentalização, os “papers”, como única maneira de avaliar desempenho, o distanciamento das empresas e do entorno, tudo isso deu margem a uma enorme discussão sobre o papel da Universidade.
A discussão se resolveu com um trabalho do físico Britto Cruz. Nele, definia que o papel principal da Universidade era o ensino. Depois, a pesquisa. Eventualmente, a inovação.
Mas o ambiente central para a inovação eram as empresas.
A partir dessa visão, verbas de pesquisa foram direcionadas para que empresas contratassem pesquisadores, comandando a inovação.
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Foi uma mudança importante, mas que exige alguns ajustes de rumo.
Na primeira fase – da Universidade fechada – havia pouca governança, pouca transparência de gestão e muitos donos do pedaço.
Na segunda fase – de aproximação com o setor privado – esbarra-se no mesmo problema de governança e em algumas características da economia brasileira diferentes do modelo de universidade norte-americano.
O primeiro, é o pequeno hábito de pesquisa das empresas brasileiras. Anos de câmbio apreciado tiraram a competitividade da pesquisa própria, em favor da importação de tecnologia. Hoje em dia, a pesquisa de ponta está apenas em grandes grupos, como Petrobras, Odebrecht, Embraer, no segmento de cosméticos e não muito mais.
Em que pese algumas iniciativas relevantes, como o MEI (Movimento Empresarial pela Inovação), pequenas e médias empresas ainda estão longe de avançar no campo da inovação.
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Para tentar reduzir o fosso que a separa do empreendedorismo, muitas universidades criaram agências visando estimular registro de patentes.
Mas o empreendedorismo no país padece de uma vulnerabilidade maior: não sabe trabalhar modelos de negócio.
O sucesso dos grandes campeões da Internet – Apple, Google, Facebook – está muito mais no modelo de negócio desenvolvido do que propriamente no diferencial tecnológico.
O caminho poderia ser abreviado com empresas de “venture capital” – investindo em empresas nascentes do setor de tecnologia. Há boas experiências, bem sucedidas, mas ainda sem escala para alavancar o setor.
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Com o advento das novas tecnologias da informação, no entanto, o grande mercado para a Universidade é o seu metier, a educação. Em breve a Internet acabará com os intermediários de conteúdo – editoras de livro didático, cursos apostilados etc. O diferencial será o conhecimento e os novos modelos pedagógicos.
E quem os têm ainda é a Universidade pública. E conseguirão desempenhar esse papel se houver políticas públicas capazes de viabilizar o novo modelo.
Pelo menos no campo da educação, a base continuará sendo a universidade pública. Caberá ao MEC definir conteúdo e adquirir o conhecimento diretamente de seus autores.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Centenário de Walther Moreira Salles



Coluna Econômica - 29/05/2012
Ontem completou cem anos de nascimento do banqueiro e diplomata Walther Moreira Salles. Sua vida confunde-se com a própria história da República brasileira no século 20.
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Por muitas razões, Moreira Salles nunca foi um empresário típico brasileiro da sua época. Sua visão de mundo, de empresa, da própria política estava décadas à frente.
Havia dois personagens em Moreira Salles: o empresário e o homem público. E uma enorme influência do padrão norte-americano de embricamento empresarial-governo.
Essa visão foi-lhe passada pelo pai João Moreira Salles. Em uma carta endereçada ao filho, ainda adolescente, ele menciona o modelo americano, a economia voltada para  iniciativa privada, a responsabilidade do empresário na construção nacional.
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Esse modelo seria aprofundado com os contatos posteriores do jovem Walther com o mundo financeiro norte-americano: um estágio em bancos de Nova York, tendo por cicerone o norueguês Berent Friele, presidente da American Coffee, controlada pelo grupo Rockefeller. Foi Friele quem o aproximou dos irmãos Rockefeller, David e, especialmente, Nelson, de quem se tornou grande amigo e, posteriormente, sócio, em uma grande fazenda do Mato Grosso.
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Antes mesmo da visita aos Estados Unidos, Walther já tinha consolidado alguns princípios de gestão pouco comuns na época. Um deles, o da associação ou fusão, visando ganhar musculatura. Foi assim na fusão do Banco Moreira Salles com o Banco de Botelhos, de Pedro di Perna – que o liberou para tocar outros projetos.
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Em Poços de Caldas mesmo, Walther pode acompanhar modelos associativos, como os do Silva Prado na Companhia Melhoramentos de Poços. Ou as tentativas do famoso coronel Zeca da Pedra de construir uma ferrovia ligando Poços a Botelhos.
Foram ensinamentos preciosos. Os primeiros movimentos de Walther ocorreram nesse modelo, juntando grupos de amigos para investimentos em áreas pioneiras.
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Seu passo seguinte foi se mudar para o Rio de Janeiro, montando uma ampla rede de relacionamentos, graças a uma capacidade única de encantar pessoas, com seus modos afáveis e atenciosos.
Foi assim que percebeu a eminente explosão do rodoviarismo e conseguiu a concessão da Caterpillar no Brasil, através da Sotreq. A empresa estava sufocada pela burocracia brasileira de importação. Por conta da guerra, as guias de importação eram ferreamente controladas, gerando uma insegurança fatal para a empresa.
A aproximação com Augusto Frederico Schmidt e Lulu Aranha – irmão de Oswaldo Aranha -, foi fundamental. Ambos controlavam a alfândega.
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Assim como Barão de Mauá e os modernos financistas, grande parte da acumulação financeira de Walther se deveu a seus conhecimento do mercado internacional de dívidas.
A Segunda Guerra jogou no Rio de Janeiro parte da elite financeira mundial. Dois financistas foram fundamentais para seu aprendizado: o francês Andres Rueff (um dos controladores da Galeria Laffayette) e o húngaro Emeric Khan.
Com ambos, Walther aprendeu os segredos do mercado internacional de títulos e de moedas, que se formava após o acordo de Bretton Woods.

Dívida pública

Um dos instrumentos mais eficazes de acumulação financeira no Brasil, desde o século 19, foi o mercado internacional de títulos públicos. Credores emprestam aos países até o limite do default. Com a incapacidade de pagamento, há a moratória e uma renegociação da divida. No meio do processo, grandes oscilações nos preços dos títulos, indo do valor ínfimo ao valor de face.

Ignácio Rangel - 1

Esse movimento foi identificado pelo grande Ignácio Rangel, economista do BNDES, em seu clássico “A inflação brasileira”. Depois do processo de industrialização iniciado no período Vargas-JK, Rangel dizia que o último passo para o país se tornar potência residia na capacidade do setor financeiro em acumular capitais para alavancar os investimentos. E a instabilidade monetária era o caminho.

Ignácio Rangel – 2

Rangel era contra políticas monetárias ortodoxas porque via na instabilidade da moeda a grande alavanca para a acumulação de capitais. Faltava ao Brasil apenas grandes bancos e grandes investidores, dizia ele, por isso a política monetária deveria estimular esses ganhos, tornando o país capaz de gerar seu próprio capital para investir em novos setores, uma tese ousada mas que se mostrou verdadeira.

O empreendedor – 1

Coube a Walther o papel de pioneiro em várias áreas. Sua atuação foi fundamental para salvar o projeto da Refinaria União – cujas ações eram vendidas de porta em porta -, depois de uma primeira rodada fracassada. Depois, entrou na petroquímica, através do maior lançamento da época, o da Petroquisa, que mobilizou o mercado de capitais de maneira pujante. Entrou em pecuária, mineração, financeiras.

O empreendedor – 2

Com Rockefeller e outros banqueiros nacionais, criou o BIB, segundo grande bancos de investimentos brasileiro que, ao lado da Delta – de dois americanos que enriqueceram com compra de títulos de dívida – inovou o mercado de capitais brasileiro. Até o início dos anos 2.000, o Unibanco ainda era o líder inconteste de lançamento de ações de novas empresas, herdando o pioneirismo de Walther.

O único fracasso

O único fracasso de Walther foi nos anos 80, na era da reserva de mercado de informática. O Brasil apostou em quatro fabricantes de minicomputadores. Pioneiro do moderno mercado de capitais brasileiro, Roberto Teixeira da Costa montou a Brasilpart para investir em novos setores Apostou em uma empresa que não deu certo e demorou para sair. Pelo que me contou, foi das poucas vezes que viu o embaixador perder a calma.



segunda-feira, 28 de maio de 2012

Presidente do Supremo afirma que chegou a hora de julgar o mensalão


Daiene Cardoso, da Agência Estado
SÃO PAULO - Independentemente da polêmica envolvendo o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-ministro da Defesa e do Supremo Nelson Jobim, o presidente do STF, Carlos Ayres Britto, afirmou nesta segunda-feira, 28, que é chegada a hora do julgamento do maior escândalo do governo Lula, conhecido como mensalão. "Chegou a hora de julgar (o mensalão)", garantiu o ministro do STF, após participar do V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação, na capital.
A respeito da polêmica envolvendo o ministro Gilmar Mendes, o ex-presidente Lula e o ex-ministro Nelson Jobim, Ayres Britto limitou-se a dizer: "Foi um diálogo protagonizado por três agentes, dois desses agentes já falaram (Mendes e Jobim), falta o terceiro (Lula). Aguardemos a fala do terceiro". Segundo reportagem da revista Veja deste fim de semana, o ex-presidente Lula teria sugerido proteção a Gilmar Mendes, na CPI do Cachoeira, em troca do adiamento do julgamento do mensalão no STF, em encontro ocorrido no escritório de advocacia de Jobim.
Ainda sobre o julgamento do mensalão, Ayres Britto disse que ele será levado a julgamento assim que terminar o trabalho do ministro revisor deste processo, Ricardo Lewandowski. O presidente do Supremo lembrou que a corte já discute a logística e o cronograma do julgamento e afirmou que, a despeito de compreender a demanda da sociedade por esse julgamento, é "preciso que o processo ocorra sem predisposição para condenar ou absolver". 

Historiador americano vai assessorar Comissão da Verdade, Por Roldão Arruda


Os membros da Comissão Nacional da Verdade vão se reunir amanhã, em Brasília, com o historiador americano Peter Kornbluh, pesquisador do National Security Achive (Arquivo Nacional de Segurança),  organização não governamental que desenvolve esforços para a liberação e publicação de documentos oficiais secretos do governo americano. O objetivo do encontro é estabelecer formas de cooperação entre a comissão e a organização dos EUA.
As duas entidades poderão assinar em conjunto requerimentos endereçados ao governo americano, solicitando a liberação de documentos sobre a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Kornbluh tem pesquisado o papel brasileiro na Operação Condor, uma ação coordenada entre ditaduras militares do Chile, Uruguai, Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil, com o objetivo de perseguir e eliminar militantes de esquerda.
O historiador já esteve no Brasil em outras ocasiões. Foi um dos assessores do grupo que estruturou a Comissão da Verdade. A organização para a qual trabalha é vinculada à Universidade George Washington e em anos anteriores ofereceu colaboração semelhante às comissões da verdade do Peru, Guatemala e Equador.
Em recente entrevista à BBC Brasil, Kornbluh afirmou que os Estados Unidos estiveram envolvidos diretamente com as ditaduras latino-americanas. Uma das evidências desse envolvimento, afirmou, era a presença de muitos conselheiros especializados em questões de contrainsurgência na região. “Entre os documentos de rotina do Departamento de Defesa, deve haver relatórios sobre a infraestrutura e as unidades das forças de segurança brasileira que podem ajudar a relacionar quem eram os responsáveis por determinadas regiões onde ocorreram abusos de direitos humanos. Além disso, pode haver relatórios operacionais detalhados e específicos sobre operações de contrainsurgência, operações como a do Araguaia, que reportem a repressão que ocorreu.”
As petições do National Security Archive ao governo americano são baseadas na Freedom of Information Act, a lei de acesso à informação dos Estados Unidos, em vigor desde 1966. Ela dá aos aos americanos o direito de solicitar o acesso a documentos oficiais, mas nem sempre isso ocorre com facilidade. Segundo Kornbluh, chegou a hora de o governo de Barack Obama ajudar o Brasil a abrir a “caixa de Pandora” do regime militar.

Uma árvore, um voto


José Roberto de Toledo - O Estado de S.Paulo
Faltam 15 milhões de árvores nas cidades brasileiras. O número é estimado a partir da pesquisa de indicadores urbanos divulgada na sexta-feira pelo IBGE. Parece uma floresta, mas é um capão se comparado ao que as motosserras cortam por ano. Desde 2002 foram derrubadas mais de 2,6 bilhões de árvores na Amazônia brasileira. Os 15 milhões que faltam nas cidades é 0,6% dessa devastação, as árvores cortadas a cada 19 dias. É pouco em proporções amazônicas, mas plantá-las transformaria radicalmente a paisagem urbana do Brasil - e a sorte de alguns milhares de prefeitos.
Os recenseadores do IBGE anotaram dez melhoramentos urbanísticos que havia (ou faltava) na frente de cada domicílio urbano brasileiro. A arborização é um deles: diminui as ilhas de calor ao regular o microclima local, conserva o asfalto, retém água da chuva e captura carbono da atmosfera. E isso sem contar os benefícios indiretos que o plantio de árvores requer e provoca.
Duas em cada três moradias brasileiras já desfrutam de uma árvore próxima à sua fachada. O terço que falta corresponde às 15 milhões de árvores que precisariam ser plantadas. O problema é mais grave nos 25% dos municípios brasileiros onde menos da metade dos domicílios tem arborização à porta. Candidatos a prefeito dessas 1.412 cidades poderiam inovar no seu slogan de campanha: um voto para cada árvore plantada. Definir a arborização como "a" prioridade de um governo pode soar como blague. Não é.
Quando Paul O'Neill assumiu o comando da Alcoa, a gigante mundial do alumínio perdia clientes e lucratividade. Foi com esperança que investidores encontraram o novo CEO, em outubro de 1987, para ouvir seus planos. Mas a estupefação tomou o salão quando O'Neill, um ex-burocrata governamental, anunciou sua maior prioridade: "Pretendo fazer da Alcoa a empresa mais segura dos Estados Unidos. Acidente zero". Nenhum blá do blablabá tradicional sobre "sinergia", "redução de custos" e "maximização de lucros". A estupefação virou venda desenfreada de ações. Foi um mau negócio para quem vendeu.
Um ano depois, o lucro da Alcoa já batia recordes. Quando O'Neill se aposentou, em 2000, o faturamento líquido da empresa era cinco vezes maior do que quando ele lançou a política de "acidente zero". Quem comprara as ações dos estupefatos investidores em 1987 tinham visto seu investimento quintuplicar de valor em 13 anos, além de embolsar em dividendos um dólar para cada dólar investido. A história está em The Power of Habit, lançado este ano pelo jornalista Charles Duhigg, do The New York Times.
E tudo isso aconteceu só por causa da redução dos acidentes de trabalho? Não. O'Neill usou uma meta que todos os milhares de funcionários entenderam (acidente zero) para revolucionar a produção e o gerenciamento da Alcoa. Ele promoveu uma mudança de hábitos. Para ter zero acidentes, peões, gerentes e executivos precisaram, por exemplo, se comunicar melhor.
"Eu tinha que transformar a Alcoa, mas não podia simplesmente mandar as pessoas mudarem. Não é assim que o cérebro funciona. Por isso decidi focar em uma coisa. Se conseguíssemos quebrar os hábitos em torno dessa coisa, isso se espalharia através de toda a empresa", explicou O'Neill a Duhigg. Do mesmo modo que zerar os acidentes transformaram a Alcoa, plantar árvores tem o potencial de mudar o jeito que as prefeituras e prefeitos trabalham.
Arborizar não é caro. Entre muda e plantio, cada nova árvore sai por R$ 300 na cidade de São Paulo. Estudos acadêmicos - um feito em Curitiba e outro na Esalq/USP - chegaram a valores semelhantes. Plantar as 828 mil árvores que faltam nas ruas paulistanas, por exemplo, custaria menos de R$ 250 milhões - uma fração do que o prefeito Gilberto Kassab (PSD) guardou para investir no ano de sua sucessão. O problema não é dinheiro. É hábito.
Para plantar uma árvore, é preciso que a rua esteja pavimentada, que a calçada e o meio-fio existam. Ou seja, a urbanização precede o plantio. Se um prefeito impor a meta de zerar o déficit de árvores de sua cidade, terá que melhorar a urbanização junto. Duas cidades brasileiras têm 100% de ruas pavimentadas, com calçadas, meio-fio e uma árvore na frente de cada casa. Poderiam ser 5.565. Custa R$ 4,5 bilhões e novos hábitos.

Voo solo, in Carta Capital


Novo solteirismo, por 

Thomaz Wood Jr.

09.04.2012 07:39


O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre agora dá sentido a um fenômeno de massa. Se o inferno são os outros, então nossos contemporâneos parecem estar se movimentando para fugir das catacumbas sulfurosas. Segundo Eric Klinenberg, professor de Sociologia da Universidade de Nova York e autor do livro Going Solo: The extraordinary rise and surprising appeal of living alone (editora Penguin), cada vez mais pessoas optam por viver sozinhas.
O autor carrega nas tintas, embalado por um mercado editorial viciado em títulos de impacto, argumentos surpreendentes e fatos irrefutáveis, mas o livro tem méritos. Segundo Klinenberg, estamos presenciando uma inflexão histórica. Cultivamos, durante milênios, uma repulsa existencial e filosófica à solidão. “O homem que vive isolado, que é incapaz de partilhar os benefícios da associação política ou não precisa partilhar porque já é autossuficiente, não faz parte da pólis, e deve, portanto, ser ou uma besta ou um deus”, escreveu Aristóteles (apud Klinenberg).
As sociedades humanas se estruturaram em torno do desejo fundamental de os indivíduos viverem na companhia uns dos outros. O isolamento é frequentemente associado à punição. Uma criança mal comportada é separada de seus pares e colocada sozinha. Um prisioneiro malcomportado é trancafiado na solitária.
Entretanto, segundo Klinenberg, tudo isso está mudando. Nas últimas décadas, houve um aumento expressivo do número de homens e mulheres que passaram a viver voluntariamente sozinhos. O fenômeno é consequência do desenvolvimento econômico, que permite maior autonomia; da superação da lógica econômica do casamento, que dá maior liberdade às pessoas para buscar arranjos alternativos; da urbanização, que adensa as comunidades humanas; e da evolução das tecnologias de informação e de comunicação, que facilitam a interação entre as pessoas. Resultado: estamos casando mais tarde, prolongando o período entre o divórcio e o novo casamento, ou evitando um novo casamento, e escapando o quanto possível da possibilidade de viver com outra pessoa. É o novo solteirismo!
Nas grandes cidades norte-americanas, 40% das moradias têm um único ocupante. Em Washington e Manhattan, casos extremos, são 50%. E o fenômeno não se restringe aos Estados Unidos. Paris apresenta números superiores a 50% e, em Estocolmo, a taxa chega a 60%. China, Índia e Brasil, países em desenvolvimento, caminham no mesmo sentido.
Viver sozinho deixou de ser fonte de medo e causa de isolamento social. As vantagens são notáveis: -controle sobre a própria vida, liberdade de ação e melhores condições para perseguir atividades voltadas para a autorrealização. No imaginário social, vai surgindo um novo modelo ideal: o neossolteiro, um ou uma profissional de sucesso, -socialmente atuante e mestre de sua existência.
O fenômeno do novo solteirismo relaciona-se a outro fenômeno, maior, de enfraquecimento dos vínculos e das relações, que se manifesta na vida social e na vida profissional. Richard Sennet registrou a tendência no livro A Corrosão do Caráter (editora Record), no fim da década de 1990. De fato, o comprometimento dos indivíduos com instituições e organizações vem se fragilizando há algumas décadas. Hoje, transitamos por inúmeros grupos, empresas e comunidades, porém estabelecemos relacionamentos apenas tênues e temporários.
Nas empresas, depois de seguidas ondas de reestruturações, enxugamentos e terceirizações, os empregos “para toda a vida” estão quase extintos. Paradoxalmente, empresários e executivos continuam esperando alto grau de envolvimento e comprometimento de seus funcionários, e frustram-se quando não os conseguem. Com a ajuda de asseclas de recursos humanos, tentam tapar o sol com a peneira, programando palestras motivacionais, abraçando árvores e promovendo interlúdios culturais. Pouco adianta.
As novas gerações representam para as empresas um considerável desafio: os mais jovens são individualistas, inquietos e despudoradamente ambiciosos. Saltam de galho em galho corporativo sem olhar para trás. Habitam redes fluidas, sejam elas comunidades reais ou virtuais. São impacientes com o presente e ansiosos pelo futuro.
Neste admirável mundo novo, perde espaço o que é estável e profundo, ganha espaço o que é efêmero e superficial. Afirmam os profetas do mundo plano que terão vantagens os mais dinâmicos, os mais extrovertidos, aqueles com mais iniciativa e sem medo de errar, aqueles capazes de usar diligentemente seu capital social em prol da própria marca. E os incomodados que se mudem… de planeta?

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Chamando as coisas pelos seus nomes


RENATO LESSA - O Estado de S. Paulo
Há coisa de algumas semanas, um personagem sombrio, egresso do esgoto da memória nacional, deu seu testemunho a respeito do que andou a fazer durante a vigência do regime de exceção, implantado em março de 1964. Ex-delegado de polícia, o personagem ganhou notoriedade pela força de suas revelações sobre torturas, assassinatos e ocultamento de corpos de militantes da resistência ao descalabro. O livro encontra-se nas boas casas do ramo, e deve ser lido por quem tem estômago forte e um mínimo de apego à memória histórica. Se apenas, digamos, 10% do que diz correspondem à verdade, o efeito é estarrecedor.
No dia do lançamento, presidente afirmou que o grupo dos sete respeitará ‘pacto de democratização’  - Roberto Stuckert Filho/ ABR
Roberto Stuckert Filho/ ABR
No dia do lançamento, presidente afirmou que o grupo dos sete respeitará ‘pacto de democratização’
O saudoso deputado Ulysses Guimarães bem sabia do que estava a falar quando declinou seu ódio absoluto às ditaduras. Se vivo estivesse, e houvesse lido o relato do abjeto personagem, teria ali encontrado fartos motivos para sua aversão, que incidia sobre um regime que fez do suplício e da eliminação física prática corrente e meio de sustentação. Não é preciso aderir ao modismo das teorias a respeito da “biopolítica” para reconhecer que regimes políticos são inteligíveis pelo que fazem com os corpos de seus súditos. Regimes cuja sustentação exige o suplício e o assassinato de oponentes têm tradicional acolhida conceitual na história do pensamento político: são regimes despóticos, tiranias e estados de exceção.
A Comissão da Verdade, instalada há poucos dias pela presidente Dilma Rousseff, tem diante de si um desafio e uma oportunidade decisivos para fixar uma narrativa a respeito de história recente do país. Há duas ordens imediatas de objetivos, para a fixação de tal narrativa, de natureza incontornável: (1) elucidar, tanto quanto for possível, os parentes, amigos e o País sobre o paradeiro dos desaparecidos e (2) desfazer a funda assimetria instituída pelos termos da anistia, que tornou públicos os nomes e os atos dos presos políticos e ocultou os de seus perpetradores.

A anistia concedida em 1979 abrangeu, além dos então presos políticos, possíveis perpetradores de “crimes conexos”. Pelo eufemismo, estavam cobertas as ações do aparelho de repressão à dissidência política. A assimetria reside no fato de que a anistia concedida ao primeiro grupo – opositores ao regime -, por razão lógica, só pode ser concedida aos que reconhecida e publicamente praticaram atos julgados atentatórios à segurança nacional. É claro que isso não impede que a eventual descoberta posterior de ocorrência de ato dessa natureza tenha como implicação a aplicação da anistia. Mas o fato é que a viabilidade do usufruto da anistia por parte da esquerda exigiu a ostensão personalizada dos beneficiados.

Os perpetradores de “crimes conexos” foram agraciados por uma anistia generalizada, inespecífica e despersonalizada. Suas identificações não foram definidas como necessárias para o usufruto do perdão. Trata-se, é evidente, de assimetria forte e apenas mentes paranoicas podem supor que a possível reposição da simetria seja algo aparentado a “revanche”.
Mas, além desses dois objetivos , há ainda a valiosa oportunidade para a elucidação da natureza do regime vigente no País entre 1964 e 1985. Mais do que o inestimável serviço de inscrever na memória nacional os nomes e os paradeiros dos desaparecidos e de seus verdugos – em seus respectivos nichos -, trata-se de pôr à disposição dos brasileiros novos elementos para interpretar seu passado recente. O efeito principal poderá ser o da elucidação do que significa um regime de exceção com a implicação de que os que ocuparam sua direção devem ser chamados pelos nomes apropriados: ditadores, e não “presidentes”, como se pudesse haver alguma analogia com os que ocuparam a direção do País por força de procedimentos legítimos.

Independentemente do juízo que se possa fazer a respeito de Dilma Rousseff como chefe de governo, seu gesto como chefe de Estado inscreve-se em um dos momentos fortes da história republicana. A qualidade da peça lida pela presidente e a condensação política presente no ritual – mais do que completo e generoso, a ponto de incluir um presidente indigno e impedido – parecem à altura do fato nada trivial de termos na chefia de Estado – e no comando supremo das Forças Armadas – alguém que sentiu no próprio corpo o que significa uma ditadura. O consenso reunido representa o reconhecimento desse aspecto crucial.

O desconforto dos chefes militares na cerimônia mostra, lamentavelmente, quanto as forças sob seu comando têm dificuldade em se distinguir do que foi feito por alguns de seus antecessores. A cena beira o absurdo, pois afinal nada há no comportamento corrente dos militares brasileiros que autorize temor corporativo diante das atribuições da Comissão.

RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UFF, INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA E PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE

A justiça restauradora


Negociadores sul-africanos pós-apartheid optaram por anistiar quem admitisse publicamente ter violado direitos humanos, aplicando uma forma de justiça não destinada a 'punir', mas a 'curar'

20 de maio de 2012 | 3h 07
Desmond Tutu - O Estado de S.Paulo

Durante o período que antecedeu as eleições, os negociadores tiveram de decidir como lidar com o horrendo legado do passado recente. Algumas pessoas, em especial as que tinham feito parte do regime do apartheid, defendiam que uma anistia geral deveria ser promulgada a todos, de modo - assim imaginavam - que o passado seria simplesmente esquecido, não tornando reféns o presente e o futuro. Infelizmente, não existe mágica capaz de nos fazer dizer "agora, vamos esquecer o passado", que, então esquecido, morreria em silêncio. O passado tem uma capacidade inata de tirar todo tipo de esqueleto do armário para atormentar o presente. Perguntem ao general Pinochet.
George Santayana declarava frequentemente: "Quem esquece o passado está fadado a repeti-lo". Além disso, a anistia geral faz a vítima ser vítima uma segunda vez ao oficializar ou o que aconteceu - na verdade, não aconteceu - ou, ainda pior, o que teve pequena importância, de modo que as vítimas não vejam um encerramento da questão e acabem nutrindo ressentimentos que podem ter consequências nefastas para a paz e para a estabilidade por causa da agonia que envenena o espírito e faz ansiar pelo dia da vingança.
Já outros pensavam que o caminho mais fácil seria seguir o exemplo do tribunal de Nuremberg e levar a julgamento todos aqueles publicamente culpados ou suspeitos de cometer graves violações dos direitos humanos. Nuremberg aconteceu porque os aliados derrotaram os nazistas e optaram por impor o que chamaram de justiça dos vencedores. Em nosso caso, nem o governo promotor do apartheid nem os movimentos de libertação do Congresso Nacional Africano (CNA) e do Congresso Pan-Africanista (CPA) tinham a possibilidade de derrotar o lado adversário. Havia um empate em termos militares. É quase certo que as forças de segurança do regime do apartheid conseguiriam debelar qualquer plano de ataque pelo qual, no fim das contas, acabariam sendo apontadas como responsáveis. Além disso, a África do Sul não suportaria mais longos julgamentos, nem o já sobrecarregado sistema judicial conseguiria suportar o esforço.
Assim, os negociadores optaram por assumir um compromisso mútuo: anistia individual, em vez da anistia geral, em troca de toda a verdade a respeito do crime pelo qual se estava fazendo o pedido. "Anistia em troca da verdade?", muitos se perguntaram, com uma preocupação genuína. "E quanto à justiça? Isso não equivale a incentivar a impunidade?" Antes de tudo é necessário ressaltar que esse jeito de lidar com a situação foi proposto exclusivamente para esse delicado período de transição, ad hoc - de uma vez para sempre. Em vez de incentivar a impunidade, a opção escolhida para seguir adiante ressaltava a responsabilidade, já que quem procurasse a anistia deveria admitir ter cometido um crime. Inocentes e aqueles que alegavam inocência, obviamente, não necessitavam de anistia.
Alguns argumentaram que isso significaria deixar os culpados escaparem ilesos. Significaria mesmo?
Todos sabem como é difícil dizer "sinto muito". São duas das palavras mais difíceis de qualquer língua. Não acho fácil dizê-las nem na privacidade do meu quarto para minha esposa. Posso imaginar, portanto, o que deve ter significado para alguns deles terem de confessar publicamente, sob as lentes das câmeras de televisão. Era comum culpados serem considerados respeitáveis membros de sua comunidade. Provavelmente aquela seria a primeira vez que a família ouviria que aquele aparente bastião de virtude era, na verdade, membro de uma equipe policial responsável por torturas diárias de presos, ou que pertencia a um esquadrão da morte que tratava assassinatos como acidentes de percurso do depravado sistema de apartheid. O estigma da vergonha e da humilhação pública é um preço alto a se pagar, em alguns casos levando esposas ao choque e ao consequente pedido de divórcio.
Usar o argumento do "escapar ileso" significaria pensar apenas em termos de justiça punidora, cuja raison d'être é punir o perpetrador do crime. Há outro tipo de justiça: a restauradora, cujo propósito não é punir, mas curar. Ela estabelece como ponto central a humanidade até dos culpados das piores atrocidades, sem desistir de ninguém, acreditando na bondade essencial de todos que foram criados à imagem de Deus, defendendo que mesmo o pior de nós é filho de Deus e tem o potencial de ser uma pessoa melhor, alguém que pode ser salvo, reabilitado, que não precisa ser alienado, mas sim reintegrado à comunidade. A justiça restauradora acredita que um crime cause uma brecha, perturbe o equilíbrio social, o qual deve ser recuperado e a brecha, fechada, em um processo em que ofensor e vítima possam se reconciliar e retornar à paz.

História sem recalque


Ex-guerrilheiro que se tornou psicanalista fala do desamparo da tortura

19 de maio de 2012 | 16h 46

Ivan Marsigliae - O Estado de S. Paulo
Em 1970, aos 25 anos – um “adulto”, segundo diz – Reinaldo Morano Filho largou o quarto ano do curso de medicina na Pinheiros para se lançar em uma aventura tão incerta quanto perigosa. Paulista de Taquaritinga, com emprego no Banco do Brasil, diploma de direito e um Fusca 1967 para desfrutar da juventude sem aperreio, aderiu à Ação Libertadora Nacional (ALN) com a ideia de derrubar a ditadura militar pela força das armas.
A presidente e ex-presa política Dilma Rousseff se emociona na cerimônia de instalação da Comissão - Andre Dusek/ AE
Andre Dusek/ AE
A presidente e ex-presa política Dilma Rousseff se emociona na cerimônia de instalação da Comissão
Em pouco tempo seria preso, torturado e testemunharia o assassinato de companheiros. Foram 6 anos e meio nos porões da repressão, dos quais emergiu com sequelas que o tempo não desfaz. As menos dolorosas são as duas hérnias de disco (uma entre as vértebras L4 e L5, outra na região lombar) provocadas pela violência dos golpes. A pior, conta na entrevista a seguir, foi “a vivência do desamparo” da tortura.
Livre, Reinaldo tentou retomar a vida do ponto em que parou. Trocou apenas, e não por acaso, a pediatria pela psiquiatria, da qual derivaria para a formação na Sociedade Brasileira de Psicanálise. Hoje, mantém um consultório na zona oeste de São Paulo e ensina Freud a alunos da Escola Paulista de Medicina. Na semana em que foi instalada a Comissão da Verdade para apurar crimes cometidos por agentes do Estado entre 1946 e 1988, o analista de 66 anos pôs o País – e a si próprio – no divã.
A Comissão da Verdade é para valer?
Reinaldo Morano Filho - Tenho esperança de que ela vá suscitar debates e estimular revelações. Alguns já começaram a falar, aqui e ali, por conta do clima que se criou. As declarações daquele delegado do Espírito Santo (Cláudio Guerra, que detalhou sua participação na repressão em Memórias de uma Guerra Suja, da Topbooks) podem ser exageradas, mas parte do que ele fala é coerente com o que familiares de desaparecidos e pesquisadores de direitos humanos têm descoberto.
O que resta ainda por saber?
Reinaldo Morano Filho - Eu mesmo tenho coisas que gostaria de tornar públicas. Fala-se pouco dos furtos cometidos por agentes da repressão na época. Obras de arte, objetos pessoais, etc. Eu tinha um fusquinha 1967, adquirido com meu salário de funcionário do Banco do Brasil. Comprei da mãe de um colega do curso de medicina. Quando fui preso, dia 15 de agosto de 1970, o levaram. Anos mais tarde, acho em um arquivo de Campinas uma série de documentos: primeiro, um auto de apreensão do Fusca, datado de 16 de abril de 1971, quase um ano depois. Então, um encaminhamento do juiz auditor alegando que o veículo fora adquirido “com dinheiro da organização terrorista”. Em seguida, o mais fantástico: o carro foi transferido para o delegado Renato D’Andrea, citado em todas as listas de torturadores.
A Comissão recebeu críticas à direita e à esquerda. Para uns ela é revanchista; para outros, uma espécie de rendição, pois não tem dimensão punitiva. Qual sua opinião?
Reinaldo Morano Filho - A busca da justiça não é ressentimento, nem mágoa. Eu não tenho nem uma nem outra. Mas é nossa obrigação honrar a memória dos assassinados e perseguidos. Sobre eventuais punições, vai depender da correlação de forças. Não é assunto encerrado; pelo contrário, está se iniciando.
E a ideia, defendida por membros dos clubes militares, de que ela deveria investigar os ‘dois lados’ – também os crimes cometidos por militantes de esquerda?
Reinaldo Morano Filho - O palco da política é o Congresso, onde os termos da Comissão foram definidos. De que se trata? Do esclarecimento da prática de tortura, assassinato e desaparecimento enquanto política de Estado. Porque ela era institucionalizada, não um “excesso” cometido por poucos agentes.
Os clubes alegam que organizações como a de que o sr. tomou parte queriam implantar uma ditadura de esquerda.
Reinaldo Morano Filho - Não dá para tergiversar sobre a história. Qual foi o grande pecado do presidente João Goulart? Ele estava em vias de estabelecer um regime comunista? As chamadas reformas de base de Jango eram bandeiras de aggiornamento, de atualização democrática da sociedade, que na Europa já estavam resolvidas havia 200 anos. Quem interrompeu o debate democrático foi a ditadura, não as organizações de esquerda que se opuseram a ela depois.
Qual é a sua pior lembrança da tortura?Reinaldo Morano Filho - A vivência do desamparo. Um desamparo absoluto na hora em que você está pendurado num pau de arara com um bando de animais – que não são animais porque os animais não fazem isso – a sua volta batendo, gritando. Acontece de você precisar usar o banheiro, isso não ser permitido, e você acabar evacuando lá, ouvindo gozação. É uma situação extremamente humilhante.
Já encontrou um torturador pela frente?
Reinaldo Morano Filho - Em março de 1991, numa audiência na Câmara Municipal sobre as ossadas do cemitério de Perus. Fui depor contra Josecyr Cuoco (delegado do Deops paulista em 1970), que tinha participado da minha prisão. Ele foi o primeiro que me agrediu, na chegada, com um soco no nariz. Fazia exatamente 20 anos, eu já tinha feito análise, mas ainda assim a gente tem uma espécie de revival. O sentimento que prevalece é a raiva. Anos depois, vim a saber que Josecyr era sobrinho-neto da minha avó.
O torturador gosta do que faz?
Reinaldo Morano Filho - A (psicanalista e membro da CV) Maria Rita Kehl usou uma expressão para ser referir a isso: gozo, um termo lacaniano. Eu chamo de prazer mesmo. Um prazer sádico, do poderoso que é dono da situação diante de alguém desamparado. Esse sadismo se manifesta às vezes de forma sexualizada. Por isso, a quantidade de estupros e abusos.
De que maneira a psicanálise o ajudou a lidar com a experiência nos porões?Reinaldo Morano Filho - O registro de um trauma depende da pele psíquica de cada um, do quanto aquela agressão fere a pele psíquica do indivíduo. Após a tortura, o clima de terror permanece. E você compartilha de uma angústia coletiva a cada vez que um preso é levado para a sala de torturas ou para uma “diligência” onde, sabe-se, será assassinado. Freud tem uma passagem sobre o desamparo em que o localiza no nascimento do ser humano. O bebê humano, diferentemente do de outras espécies, é indefeso. Deixado à própria sorte, não consegue nem se virar, morre. Isso cria um registro na mente infantil, que gera o medo do desamparo. A experiência da tortura só faz exacerbar essa marca.
Que marca a tortura lhe deixou?Reinaldo Morano Filho - Mesmo com todos os anos de análise que fiz, hoje me vejo como alguém que tem um colorido... meio depressivo. Nada que me atrapalhe a vida, talvez até ajude em minha profissão. Mas fica uma espécie de nuvem, que eu não tinha antes.
Que efeito tem para o sr. a volta desse tema ao debate público nacional?Reinaldo Morano Filho - Quando outras narrativas começam a surgir, há um certo alívio. No sentido de que não somos mais os únicos a falar. Isso aconteceu mesmo, não éramos malucos.
Em um artigo na revista Piauí o ex-guerrilheiro, economista e um dos pais do Plano Real, Persio Arida, reavaliou seu passado na luta armada e concluiu que ela contribuiu apenas ‘por vias tortas’ para o retorno da democracia. O sr. concorda?
Reinaldo Morano Filho - Eu me lembro quando o grupo do Persio chegou ao DOI-Codi. A Beth Mendes (então militante política, depois eleita deputada federal pelo PT em 1983) foi presa com eles. A chegada do grupo causou certo rebuliço, porque eram todos muito jovens, estudantes secundaristas. Eu já tinha 25 anos, era um adulto, advogado formado. Considero minha adesão à luta diferente da do Persio. Eu tinha participado de toda aquela esperança pré-golpe. Não aderi à luta armada porque um dia de manhã acordei e falei “gosto de dar tiros, vamos ver onde posso saciar essa compulsão”. Fiz por falta de opção, por não poder participar da vida política. Não concordo com a opinião do Persio e prefiro a do (ex-guerrilheiro) Ivan Seixas: a ditadura foi alvejada de várias formas. Eu tomei parte em uma delas.

Falando mais como psicanalista que como alguém que participou dos acontecimentos, o sr. acha que ‘recalcar’ essa parte da história tem consequências no País hoje?
Reinaldo Morano Filho - A situação vigente, de tortura como método de investigação nas delegacias de qualquer biboca do País, tem a ver com essa história de violência. Que é anterior até à ditadura, vem da escravidão e da permanência de uma cultura da impunidade. “Bate, tortura, que não dá em nada.” O momento que estamos vivendo é a chance de uma outra fala: “Quer fazer, faça. Mas você corre o risco de ser denunciado. E, quem sabe, num País mais maduro, apenado.” O desrecalque é também uma redenção. Trata-se de uma necessidade, uma obrigação e uma contribuição que a gente tem que fazer para o Brasil.