editorial Oesp
02 de janeiro de 2012 | 3h 03
Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na UFRGS - O Estado de S.Paulo
A imagem do Judiciário é vital para a democracia brasileira. Sem a sua correção e sem os seus valores a República se veria privada de um dos seus pilares. Nos últimos anos esse Poder, graças ao Supremo Tribunal Federal (STF), tem se destacado publicamente interpretando - e muitas vezes regrando - questões controversas, vindo a aparecer como uma instância de recurso de alta propriedade moral, e não apenas legal. Pode-se mesmo dizer que no vácuo criado pelo Poder Legislativo ele veio a ocupar um novo espaço propriamente político.
Essa "nova" função do STF, no entanto, não se faz sem algumas condições, pois novas tarefas exigem, também, novas qualificações. Dentre estas, a imagem de moralidade é uma das mais essenciais, sobretudo considerando que foi aí que o Legislativo e o Executivo mais sofreram baques nos últimos anos. Corrupção e desvio de recursos públicos se tornaram, infelizmente, o cotidiano dos brasileiros. Ou seja, no que diz respeito a esse critério, o Judiciário e o Supremo, sua instância máxima, não podem ser um Poder como os outros.
O corporativismo tem sido uma forma de imoralidade ao privilegiar os interesses de uma corporação determinada em detrimento do bem coletivo, isto é, do bem de todos os outros cidadãos, que não fazem parte da corporação em questão. Isso é tanto mais flagrante porque os recursos dos contribuintes, pagos em impostos e contribuições dos mais diferentes tipos, são limitados. Se alguns têm privilégios, outros não os terão, pois os privilégios, por definição, são exclusivos, só valendo para alguns. São "direitos" exclusivos de tipo muito especial.
Tomemos um dos motivos de toda a celeuma sobre as investigações que estavam sendo conduzidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Tribunal de Justiça de São Paulo e foram sustadas por atendimento de uma liminar impetrada por uma associação corporativa. O que estava em questão era um passivo trabalhista que remonta à década de 90 do século passado, algo legalmente reconhecido, que alguns desembargadores, à diferença dos demais, teriam recebido de uma só vez. Em alguns casos, o montante seria superior a R$ 1 milhão.
Um privilégio consistiria nesse montante muito elevado, principalmente considerando que o Judiciário é entre os Poderes o que usufrui maiores salários e benefícios. Alguns juízes, inclusive, estariam reclamando de por que teriam recebido em parcelas o que outros receberam de uma só vez. Aqui se trata de uma questão interna à própria corporação, pois não está em causa a legitimidade do privilégio, mas o fato de ele ter distinguido, sob a forma do recebimento, os seus beneficiários.
A questão, no entanto, deveria focar-se no recurso trabalhista em pauta, isto é, qual é a sua proveniência. Aí reside o problema. Trata-se de um auxílio-moradia que, já usufruído por deputados federais e senadores, foi estendido pelo ex-ministro Nelson Jobim a todos os juízes. Houve o atendimento de uma demanda essencialmente corporativa, que se apresentou como uma espécie de equivalência "justa" com os parlamentares.
Ora, a situação é apenas parcialmente equivalente. Se deputados e senadores usufruem um auxílio-moradia, isso se deve ao fato de exercerem suas funções em Brasília, longe de seus respectivos domicílios, por um período determinado. Nesse sentido, o auxílio em questão é plenamente justificado. Analogicamente, ele poderia, portanto, ser estendido a ministros do Supremo e dos tribunais superiores, também constituídos por pessoas das mais distintas procedências. Daí não se segue, porém, que ele deveria valer para todos os juízes do País, até mesmo para os aposentados. Aí surge a imoralidade.
Por que um juiz ou desembargador de qualquer Estado, com domicílio, deveria usufruir um auxílio-moradia, se já tem uma? Por que um aposentado deveria usufruir esse mesmo auxílio, se nem mais trabalha nos tribunais? Ainda seria compreensível que tal auxílio fosse concedido a juízes cujo local de trabalho não coincida com o seu domicílio, o que ocorre com muitos magistrados em início de carreira, mudando constantemente de comarca. Agora, concedê-lo a todos os juízes e desembargadores indiscriminadamente é uma flagrante imoralidade, contrastando com a situação de todos os outros cidadãos brasileiros, que devem trabalhar para pagar sua moradia.
O corporativismo tem essa estranha "virtude" de tornar legal um interesse particular, exclusivo, coagindo todos os contribuintes a financiá-lo. Quando questionado sobre a sua legitimidade, a única saída consiste em dizer que ele é legal, procurando, com isso, que a questão essencial seja esquivada, a saber, a da sua imoralidade.
Nesse sentido, o trabalho do CNJ tem dado uma inestimável contribuição à democracia brasileira, saindo atrás de irregularidades no funcionamento do Judiciário, verificando os seus disfuncionamentos e morosidades, procurando prestar contas à sociedade de seu trabalho. Um Poder republicano que não se abre à sua análise corre o risco de se encastelar em seus privilégios e interesses corporativos.
A polêmica em torno da competência concorrencial ou subsidiária do CNJ em relação às Corregedorias próprias dos tribunais lança luz sobre um aspecto crucial da moralidade, ou seja, a transparência das ações, no caso, dos atos e procedimentos dos diferentes tribunais. Se as Corregedorias funcionassem a contendo, talvez o CNJ nem tivesse sido criado. Se o foi, foi para equacionar uma lacuna existente. Mais ainda, permitiu que a sociedade, em seu conjunto, pudesse vir a exercer publicamente controle sobre o modo de funcionamento do Judiciário.
A transparência é outro nome da moralidade. Em seu escrito sobre a paz perpétua, Kant elaborou um imperativo que pode ser transcrito da seguinte forma: "Aquilo que não pode ser publicizado, tornado público, é imoral". Ainda, segundo ele, poderíamos dizer que a satisfação de um interesse corporativo que não vale para todos os cidadãos, que não pode ser universalizado, é imoral.
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