terça-feira, 27 de agosto de 2019

João Pereira Coutinho - Uma conspiração de estúpidos, FSP

Uma conspiração de estúpidos

Se trocarmos políticos corruptos por idiotas, teremos razões para festejar?

Contra a estupidez, até os deuses lutam em vão. Assim falava Schiller. E assim falo eu, que dedico há anos uma atenção obsessiva ao assunto. Há gente que gosta de olhar para pássaros. Eu gosto de olhar para estúpidos, motivo por que me dediquei ao comentário político em solo luso. 
Atenção. Não falo da estupidez pontual, acidental, pessoal. Não atiro a primeira pedra: os meus atos de estupidez, que são vários e continuarão a ser vários, fazem parte da minha imperfeição.
Eu falo da estupidez consistente, estrutural, constitucional. Falo de uma estupidez que não é possível apagar, corrigir, civilizar. E que jamais pode ser confundida com a mera ignorância. A ignorância tem cura. A estupidez, não.
Mas o que é a estupidez? De onde vem? Como podemos neutralizá-la, se é que podemos? 
A resposta foi dada, de forma inultrapassável, por Carlo M. Cipolla em “The Basic Laws of Human Stupidity”. Conhecia o ensaio (de nome), mas ainda não o tinha lido. Foi preciso viajar para a Itália e encontrar o tesouro numa livraria de Milão. Quase chorei de alegria. 
Cipolla, um dos mais importantes historiadores econômicos do pós-Segunda Guerra, escreveu o ensaio em 1976 com o mesmo rigor científico com que tratou da política monetária de Florença no século 14. 
A primeira lei parece razoavelmente consensual: todos subestimamos o número de estúpidos em circulação. É um fato. O pasmo que sentimos quando nos encontramos com um representante da espécie é prova desse otimismo absurdo, que só diminui com a idade (experiência pessoal). 
Ilustração
Angelo Abu/Folhapress
Por outro lado, uma concepção igualitária dos seres humanos tende a atribuir à educação, à sociedade e à cultura a última palavra em matéria de estupidez. 
É um erro. A estupidez é determinada pela natureza, como a cor dos olhos ou a ondulação do cabelo. É isso que explica a existência de um número mais ou menos constante de estúpidos em todas as classes sociais, em todas as profissões, em todos os países. 
Para ficarmos apenas na universidade, um microcosmos que eu conheço bem, o número de alunos estúpidos não difere do número de professores estúpidos. O fato de os primeiros não terem diploma e os segundos terem uma parede coberta de honrarias não altera a estupidez essencial. 
Mas é na terceira lei da estupidez que Cipolla se supera. Para ele, os seres humanos se distribuem em quatro categorias fundamentais: os inaptos, os bandidos, os inteligentes e os estúpidos. 
O inapto, quando age, beneficia os outros e prejudica a si próprio. O bandido, pelo contrário, prejudica os outros para se beneficiar pessoalmente. O inteligente, quando age, consegue beneficiar todos (por isso é inteligente). 
O que distingue o estúpido é a capacidade que ele tem para provocar dano a terceiros sem retirar daí nenhuma vantagem própria. Pelo contrário: ele pode incorrer em danos também. 
No fundo, é a irracionalidade do estúpido que o torna a criatura mais perigosa do mundo (lei final). Talvez por deformação iluminista, as pessoas comuns acreditam que a racionalidade foi universalmente distribuída. E que ninguém, em juízo perfeito, irá atuar contra os seus próprios interesses. 
Nesse sentido, aceitamos (e lamentamos) o destino dos inaptos; admiramos os inteligentes; e até entendemos a cabeça de um bandido. 
Mas os estúpidos nos desarmam. Na linguagem da economia, eles têm uma vantagem competitiva sobre os restantes porque operam num plano onde as leis da lógica não têm vez. 
O ensaio de Cipolla tem a rara qualidade de iluminar o mundo. Não apenas o mundo cotidiano que habitamos (“afinal, o meu primo é só estúpido, não é bandido”) mas o mundo político em particular. 
Aplicando os tipos ideais de Cipolla à política, eu diria que políticos inteligentes são raros; e que políticos inaptos, daqueles que beneficiam os outros pelo sacrifício dos seus interesses, são mais raros ainda. 
A maioria se distribui entre a bandidagem e a estupidez, e eu não sei qual delas será pior. Quando nos livramos de políticos corruptos e importamos políticos estúpidos, teremos razões para festejar? 
Só num ponto discordo de Cipolla: ele acredita que, à medida que as sociedades se desenvolvem, o número de pessoas inteligentes será capaz de manter os estúpidos no seu lugar. 
Pobre Cipolla. Ele esqueceu a primeira lei do seu tratado: nunca subestimar o número de estúpidos, nem mesmo nas sociedades mais desenvolvidas. 
Se ele ainda estivesse vivo (morreu no ano 2000), era só olhar ao redor.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

domingo, 25 de agosto de 2019

Jornal Nacional faz 50 anos em meio a radical polarização no Brasil, fsp

Aniversário será marcado por lançamento de livro com artigos de apresentadores

Nelson de Sá
SÃO PAULO
​​Paulista de Ribeirão Preto, William Bonner se lembra do clima de curiosidade em casa, em 1969, quando os pais falaram que estava chegando “o novo jornal na televisão”.
Na infância e na adolescência, ele se tornaria “telespectador fiel”, como seus pais e irmãs. “O JN era um momento que reunia os cinco diante do televisor”, descreve em mensagem à Folha sobre o cinquentenário do telejornal, a ser completado em 1º de setembro.
Formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde começou como locutor da USP FM, Bonner estreou na Globo em 1986 e se tornou apresentador titular do telejornal há 23 anos. No mês que vem, fará duas décadas no cargo de editor-chefe do noticiário.
William Bonner e Renata Vasconcellos no novo estúdio do 'Jornal Nacional'
William Bonner e Renata Vasconcellos no estúdio do 'Jornal Nacional' - Sergio Zalis/TVGlobo
“A soma desses fatos explica o efeito que o som da vinheta do JN tem sobre mim”, diz ele. “O orgulho que guardo da minha participação nessa história, da minha profissão.”
Os 50 anos estão sendo celebrados pela Globo de várias maneiras, inclusive escalando apresentadores de afiliadas, do Amapá ao Rio Grande do Sul, para comandar a bancada aos sábados, a partir do dia 31.
Também com uma série especial de segunda a sexta sobre o cinquentenário, tendo por base as reportagens do próprio telejornal e mostrando “o que melhorou e piorou no país ou ficou na mesma”.
Mas a principal comemoração será o lançamento de um livro de 458 páginas, “Jornal Nacional: 50 Anos de Telejornalismo” (Globo Livros), com 118 profissionais e ex-profissionais comentando ou recordando como é feito o telejornal.
​Bonner é um deles, como outros apresentadores históricos, inclusive Cid Moreira e Sérgio Chapelin, Fátima Bernardes e Renata Vasconcellos, hoje também titular na bancada.
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Mais para o final do volume, escreve Maju Coutinho, que fazia a previsão do tempo e acaba de estrear como apresentadora do Jornal Hoje.
O livro abre com textos de João Roberto Marinho, presidente do conselho editorial do grupo, Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da Globo, e Ali Kamel, diretor-geral de jornalismo.
O primeiro lembra que o Jornal Nacional “realizou na prática um sonho que meu pai, Roberto Marinho, nutriu desde a década de 1950: unir o Brasil por meio da televisão em rede”.
Mas também busca olhar para a frente, afirmando que em jornalismo “a concorrência de meios de comunicação é cada vez maior” e vai além da TV aberta e paga, para “a internet com centenas de sites produzindo informação”.
João Roberto Marinho encerra sublinhando que “a Globo não defende partidos, não defende religiões, não defende formas de comportamento”.
Ao longo de 47 páginas, Kamel afirma que hoje “o Brasil, como muitos países mundo afora, vive uma polarização extremada”. Um ambiente em que “a imprensa vira alvo e é acusada de produzir fake news”, em que os fatos, “se contrariam ou incomodam uma parcela, qualquer parcela, são logo rotulados como fake”.
Contra isso, defende o jornalismo profissional. “Para as empresas que se impõem como missão praticar o jornalismo profissional, a atividade é entendida como uma forma de apreensão da realidade com regras que, se seguidas corretamente, levam ao relato e à análise dos fatos com um bom grau de fidelidade.”
Acrescenta que “quem mais tem condições de praticar o jornalismo como forma de conhecer a realidade é a grande imprensa”, incluída a televisão, com recursos tecnológicos e humanos, nos quais “investe grandes somas de dinheiro”.
Em seu texto, Maju Coutinho lembra a época em que a expressão “garota do tempo” não existia e “previsão era coisa de homem”. E destaca como, nos quatro anos em que esteve no programa, a questão se tornou mais ampla, com reflexo na cobertura.
Agora, “sempre que possível, a previsão do tempo do JN traz dados sobre o aquecimento do planeta, desmatamento e fontes alternativas de energia”, escreve ela.
A nova publicação não se detém sobre controvérsias históricas como a cobertura da manifestação pelas eleições diretas, em janeiro de 1984, já abordadas no livro “Jornal Nacional - A Notícia Faz História” (Jorge Zahar, 2004), que celebrou os 35 anos do programa.

CRONOLOGIA

1º de setembro de 1969Hilton Gomes abre as transmissões: ‘O Jornal Nacional da Rede Globo, um serviço de notícias integrando o Brasil novo, inaugura-se neste momento’ 
Agosto de 1987No dia da morte de Drummond, Cid Moreira encerra o programa declamando o poema ‘José’
Junho de 2001Reportagens de Marcelo Canellas e do cinegrafista Lúcio Alves traçam um mapa da fome
Novembro de 2002Heraldo Pereira se torna o primeiro negro a apresentar o JN, aos sábados
Fevereiro de 2019Maju Coutinho se torna a primeira mulher negra a apresentar o JN