segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Mudar para sobreviver Por Tony de Marco. Meio Sábado

 Mudar para sobreviver

Por Tony de Marco

As corridas de carro existem desde a invenção do automóvel e hoje dividem-se em dezenas de categorias. Vão do Kart, cujos pilotos profissionais começam a correr a 60 km/h com apenas 6 anos de idade, até a Fórmula 1, onde velhinhos de 43 anos como o bicampeão Fernando Alonso (2005 e 2006) voam a 360 km/h. A F1 é a face mais vistosa do automobilismo, uma modalidade que muitos não consideram um esporte. Para acabar com essa dúvida, em 2011 o Comitê Olímpico Internacional reconheceu a FIA (Fédération Internationale de l’Automobile) como uma federação esportiva e incluiu o automobilismo como um esporte possivelmente olímpico.

Será que um dia teremos os três primeiros colocados em um pódio sem direito a champagne? Atletas do kickboxing, squash e caratê (outros esportes que também estão na fila do COI) tem mais chance de ganhar medalhas de ouro antes dos pilotos. Mas não é impossível que a popularidade acabe unindo as duas poderosas federações em alguma Olimpíada do futuro.

Tudo começou com o Rato
Mesmo sendo disputada desde 1950, para mim (e muitos outros brasileiros) a Fórmula 1 começou com Emerson Fittipaldi, quando ele ganhou o campeonato mundial em 1972 com a icônica Lotus preta e dourada, patrocinada pela John Player Special. Foi a primeira temporada com provas transmitidas para o Brasil via satélite (uma novidade) pelas TVs Tupi e Globo. Em 1973 o Grande Prêmio do Brasil, no autódromo de Interlagos, entrou no calendário da competição. Emerson ficou em segundo e, no ano seguinte, foi campeão mundial novamente pela McLaren.

O Brasil estava definitivamente apaixonado pelo “Rato”, apelido de Emerson, e pelo “circo” da Fórmula 1. O ano de 1975 trouxe mais emoção com um outro piloto brasileiro, José Carlos Pace (morto em em acidente aéreo em 1977), que venceu o Grande Prêmio do Brasil, com Emerson chegando na segunda posição, para delírio dos fãs. Fittipaldi terminaria o ano novamente em segundo no campeonato e tudo parecia bem até que o piloto entrou de cabeça num projeto faraônico: construir um carro brasileiro. Nascia a equipe Copersucar Fittipaldi, que produziu belos carros amarelos que nunca ganharam uma única corrida. Um segundo lugar em Jacarepaguá, em 78, e um terceiro lugar em 1980, nos Estados Unidos, foram seus melhores resultados.

Porém os brasileiros já tinham outro ídolo, Nelson Piquet, que chegou em segundo em 1980 e faturou o campeonato em 1981, pela Brabham. Piquet manteve o interesse da torcida vencendo também em 1983 e 1987. E então surgiu Ayrton Senna, também tricampeão em 1988, 1990 e 1991. Estes talvez tenham sido os anos mais loucos, com muita gritaria de Galvão Bueno, Tema da Vitória e um aumento de público, com velhinhos e crianças torcendo pelo ‘bom moço’. A festa acabou no dia primeiro de maio de 1994, quando Senna morreu após um acidente no Grande Prêmio de San Marino.

Daí para frente coube a Rubens Barrichello manter o interesse dos brasileiros pela competição. Mas mesmo com 68 pódios, a falta de um título mundial ofuscou o brilho do piloto. Ou seria o brilho excessivo de Michael Schumacher, seu companheiro na Ferrari, que faturou 5 títulos seguidos? Rubinho viu surgir Fernando Alonso (2 títulos), Lewis Hamilton (7 títulos), Sebastian Vettel (4 títulos) e saiu da categoria em 2011. Felipe Massa foi o último brasileiro a ter uma carreira sólida na F1, pilotando uma Ferrari após a saída de Barrichello e terminando a carreira na decadente Willams. Desde então o interesse dos brasileiros pelo esporte diminuiu, acompanhando um movimento global.

Após 40 anos sob o comando de Bernie Ecclestone, o púbico da Formula 1 estava estagnado e a categoria, endividada. Em 2017, o ‘Formula One Group’ foi vendido ao conglomerado Liberty Media por ‘apenas’ 8 bilhões de dólares. Um ótimo negócio para a empresa americana já que, no ano passado, rejeitou uma proposta de US$ 20 bilhões feita pelo fundo soberano da Arábia Saudita. Como tal valorização aconteceu?

Viva a revolução
Antes de apostar na F1, o Liberty Media já era dono da rede de estações de rádio Sirius XM e da produtora de eventos Live Nation. Decidida a modernizar o evento, a empresa ficou meses pesquisando os fãs e, principalmente, os potenciais novos fãs. O resultado apontou para uma mudança radical em relação às redes sociais, levando também à criação de uma série de produtos digitais e de serviços para o público que vai às corridas.

Ecclestone detestava as redes sociais e desestimulava seu uso pelos pilotos. Quando a Liberty Media assumiu, Lewis Hamilton mostrou dezenas de cartas enviadas pelos advogados de Bernie exigindo que parasse de postar vídeos das corridas em suas contas pessoais. O descaso era tanto que, em 2017, o Youtube da F1 tinha pouco mais de 270 mil inscritos. Sete anos depois já são quase 11 milhões. Hoje o canal apresenta o resumo das corridas, filmagens a bordo dos carros, a reação dos pilotos após as provas qualificatórias, transmissões ao vivo dos preparativos finais e até um resumo das etapas narrados por crianças. Agora pilotos e equipes são estimulados a aumentar sua presença nas redes. O antenado Hamilton colhe os frutos de sua teimosia com 37,5 milhões de seguidores no Instagram, enquanto o atual campeão mundial, Max Verstappen, tem “apenas” 12,5 milhões.

Sem medo de competir consigo mesmo, foi criado um serviço de streaming, a F1TV, rompendo com o histórico modelo de exclusividade de transmissão pelas redes de televisão. Além das corridas e treinos, o serviço tem programas exclusivos de entrevista e análise, documentários e um grande arquivo de competições. A própria transmissão das corridas ganhou mais emoção e informação. Os carros estão equipados com muitas câmeras: umas giram automaticamente para acompanhar as ultrapassagens, outras, instaladas no capacete, mostram o ponto de vista do piloto, algumas alteram a imagem para mostrar a inclinação de algumas curvas ou ficam apontadas para o rosto dos pilotos, mostrando suas reações. Para dar a sensação de estar dentro do carro, uma câmera de 360 graus pode ser controlada por quem assiste a esses vídeos no YouTube. Muita informação é apresentada em Realidade Aumentada, com gráficos e estatísticas projetados no painel dos carros. As equipes recebem dados de mais de 120 sensores e alguns são mostrados ao público, como velocidade, aceleração, ângulo da curva, consumo de combustível e até a força G a que o piloto está sentindo.

Correndo por fora
A ausência de mulheres no grid de largada sempre foi algo marcante. Das pilotas que tentaram se classificar para a categoria, apenas a italiana Lella Lombardi competiu e pontuou, correndo pelas equipes Brabham e March entre 1974 e 1976. Em 2023 começaram as provas da F1 Academy, uma categoria criada para descobrir e preparar as futuras pilotas, combater o sexismo e aumentar a diversidade dentro da pista. Para participar é preciso ter entre 16 e 25 anos e 110 mil dólares no bolso, já que apenas os custos dos carros são subsidiados. A primeira temporada foi vencida pela espanhola Marta García e, neste ano, a inglesa Abbi Pulling, de 21 anos, está liderando. E por falar em sexismo, em 2018 a organização finalmente acabou com as ‘grid girls’, que acompanhavam os pilotos com placas ou guarda-chuvas.

Além de ampliar, eles decidiram rejuvenescer seu público, e o vídeogame faz parte desta estratégia. Na década de 1970 a F1 já era jogada em arcades. Dos fliperamas pulou para o Atari, SEGA, Nintendo, MSX e outros, numa infinidade de versões. O game atual, chamado 'F1 24', da Electronic Arts, pode ser jogado no PC, PlayStation ou Xbox. Ou seja, pilotos não faltavam, bastava criar uma enorme competição. Nascia a Formula One Esports Series, recentemente rebatizada para F1 Sim Racing, que começou em 2017 quando mais de 60.000 jogadores tentaram se classificar para as finais da primeira temporada. Atualmente as equipes são as mesmas da corrida verdadeira, e o prêmio é de gente grande: 750 mil dólares.

Além dos ingressos, que não são baratos (US$ 640 para os três dias no Grande Prêmio do Brasil), foram criados camarotes VIP batizados de F1 Experiences. Neles é possível ver a lendas da Fórmula 1 de perto, assistir a prova no exclusivo F1 Paddock Club Lounge, comer pratos criados por chefs com estrelas Michelin, fazer caminhadas diárias no Pit Lane e beber até cair no Open Bar. Todo este conforto pode custar até US$ 7.000. Para sinalizar todas essas mudanças, adotaram uma nova música tema, redesenharam o logotipo e novas fontes tipográficas (incrivelmente belas) foram criadas unificando o visual do evento em todas plataformas.

Fórmula Netflix
No meio de tantas transformações, um produto é sempre apontado como decisivo para o sucesso: a série Drive to Survive (traduzido para Dirigir Para Viver) da Netflix. Foi com ela que me reconectei à competição após décadas de desprezo. Eu e a torcida do Flamengo, já que 30% público atual veio na boleia da série. Deixando de lado aspectos mais técnicos dos carros e focando nas pessoas, a série injetou um ingrediente novo: o drama. As brigas entre pilotos (muitas vezes da mesma escuderia), as tretas entre chefes de equipe, os escândalos financeiros dos dirigentes, os áudios cheios de palavrões, as tomadas de câmera exclusivas (a parada nos boxes, vista de cima, é a marca registrada da série), os comentário ácidos dos especialistas, o desespero das equipes menores em pontuar, tudo é ampliado para transformar a competição em entretenimento. Não importa se o campeonato será vencido pela Mercedes ou pela Red Bull. Hamilton, o campeão em 2018, mal aparece na primeira temporada da série.

O programa serve ainda para mostrar o apoio da família dos pilotos e de chefes de equipe, exibir ao máximo os patrocinadores e apavorar o público com trombadas cinematográficas. As primeiras temporadas abusam do carisma de Daniel Ricciardo, que troca a RedBull pela Renault e esta pela McLaren antes de sua carreira escorrer pelo ralo e de Guenther Steiner, o explosivo e engraçado chefe de equipe da Haas, infelizmente demitido em 2023. Ao longo da série, assistimos ao retorno da Red Bull à hegemonia e à ascensão de Max Verstappen, atual tricampeão da categoria. Não há melhor maneira de se atualizar sobre os últimos 5 anos da competição. Após maratonar a série (e fuçar a wikipedia atrás de mais informações sobre os personagens) eu estava pronto para acompanhar as provas. A boa notícia é que os anos de dominação da Mercedes e da Red Bull acabaram. Neste ano, Ferrari e McLaren estão disputando palmo a palmo as posições no grid de largada, no pódio e no campeonato de construtores. Haja coração, diria o Galvão.

IMAX e além
E se você acha que a corrida de automóveis atingiu seu pico de glamour, aguarde F1, o blockbuster da Apple e Warner Bros. Com o gostosão Brad Pitt, Kerry Condon, Damson Idris e Javier Bardem no elenco e um enredo sobre a criação da fictícia escuderia APXGP. A inédita parceria entre Hollywood e a Fórmula1 permite acesso da equipe de filmagem às corridas, gravando cenas antes das competições com a participação dos verdadeiros pilotos e o calor da torcida. Portanto vem aí mais tomadas de câmera absurdas, ensurdecedores roncos de motor, cenários paradisíacos, muito mais drama e... Guenther Steiner, desde já cotado para Oscar de melhor ator coadjuvante.

Você sabia?
• Para ser considerado um esporte olímpico, ele precisa ser praticado em pelo menos 75 países em quatro continentes diferentes.
• Em Portugal ainda se ouve a expressão “armado de Fittipaldi” para se referir a pessoa que dirige em alta velocidade.
• O Tema da Vitória, que embalou Piquet e Senna, foi gravado em 1981 pelo grupo Roupa Nova.

O tamanho do PCC na campanha eleitoral, MEIO Sábado

 Por Cristina Tardáguila*

Desde 1993 o Brasil convive com o PCC, o Primeiro Comando da Capital, maior organização criminosa do país. Nesses mais de 30 anos, viu-se como o grupo formado nos presídios de São Paulo conseguiu crescer, avançar por outros estados e orquestrar jornadas de terror, promovendo mega rebeliões e chacinas. O que o Brasil talvez ainda não saiba (ou talvez não queira saber) é quão grande é o PCC na conversa político-eleitoral.

Desde 5 de agosto, quando a Lupa começou a acompanhar (de forma sistematizada e anonimizada, via Palver) o que é dito em mais de 80 mil grupos de WhatsApp e Telegram, pelo menos 888 mensagens únicas citando o PCC e pelo menos um dos candidatos à prefeitura de São Paulo circularam por esses aplicativos.

Fazendo uma média aritmética simples, isso significa que, por dia, são produzidos e disseminados nesses espaços virtuais mais de 22 conteúdos que conectam o grupo criminoso aos políticos que pretendem administrar a maior capital do país. Dá quase uma mensagem por hora. Segundo a Palver, esse material já pode ter impactado pelo menos 640 mil pessoas desde o início de agosto. É mais do que todos os eleitores de uma cidade do porte de Santo André, no ABC Paulista.

E o que tanto se fala do PCC? A resposta é, ao mesmo tempo, fácil e preocupante. Tanto as campanhas (de todos os lados do espectro político) quanto suas respectivas militâncias têm investido pesado em disseminar postagens, com entrevistas, cortes de vídeos e links, que tentam convencer o eleitor de que outros candidatos na disputa têm algum tipo de elo com o grupo criminoso. O resultado é um imenso e perigoso ruído. A ideia de que muitos dos candidatos são supostamente ligados ao PCC afasta o cidadão do processo democrático. Reduz a confiança no poder do voto e, a médio prazo, impacta nos rumos do país.

Nesse tsunami de mensagens das últimas semanas, há acusações graves, ilações e dados fora de contexto ou desatualizados. Desinformação pura. Conteúdos plantados – talvez de forma proposital – para angariar ou tirar votos, sem considerar o estrago que podem provocar logo à frente.

Até a publicação deste artigo, absolutamente nenhum dos candidatos aceitos pela Justiça Eleitoral para disputar a prefeitura de São Paulo tinha qualquer conexão direta comprovada com o crime organizado. Mas as mensagens que viralizam nos aplicativos mais famosos do país dizem outras coisas.

No ranking do número de mensagens que ligam quem disputa a prefeitura paulistana ao PCC, Pablo Marçal (PRTB) é quem aparece em primeiro lugar. Desde 5 de agosto, foram 730 conteúdos únicos em pelo menos 230 grupos públicos que debatem política associando o candidato ao grupo criminoso. Dessas 730 mensagens, pelo menos 10 receberam da Meta (dona do WhatsApp) a seta dupla que indica altos índices de viralização dentro da plataforma.

Nesse universo, há quem questione a origem do dinheiro do ex-coach, quem diga que o “M” que ele faz com os dedos para se promover é, na verdade, um símbolo do PCC e quem distribua links para blogs críticos ao candidato, afirmando que membros de seu partido têm negócios com a organização criminosa. Há também trechos de vídeos (entrevistas ou debates) nos quais tanto Tabata Amaral (PSB) quanto Ricardo Nunes (MDB) acusam Marçal de ser sócio do crime. Tabata foi acionada na Justiça por isso.

Guilherme Boulos (PSOL) aparece em segundo lugar. Em quase 40 dias, pelo menos 165 mensagens únicas relacionando o psolista ao PCC impactaram 87 grupos públicos de WhatsApp e Telegram – espaços que reúnem ao menos 107 mil pessoas. Boulos enfrenta uma enxurrada de “notícias” de que um membro de sua campanha teria recebido dinheiro de um empresário de ônibus supostamente associado ao PCC. Fato é que o indivíduo mencionado nessas mensagens atuou na pré-campanha psolista e que a suposta doação, feita em 2020, não seria para Boulos, mas para a candidatura de vereador do próprio indivíduo. Aqui, quem turbina a narrativa é Marina Helena (Novo). Vídeos dela conversando sobre o assunto com o ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol ficaram entre os conteúdos mais virais desta semana.

Para fechar a lista de candidatos embrenhados em mensagens que citam o PCC, também aparece José Luiz Datena, do PSDB. Trechos do momento em que ele deixou o púlpito do debate organizado pela TV Gazeta e o canal MyNews no último dia 1o supostamente para esbofetear Marçal circulam pelos apps com frases lembrando que, como âncora de TV, Datena sempre atacou o crime organizado. Seria, aos olhos de seus apoiadores, um homem idôneo.

Enganam-se aqueles que pensam que as conversas ligando o PCC aos candidatos de São Paulo ficam dentro das fronteiras desse estado. Mapa feito a partir dos DDDs usados para falar desse assunto em grupos públicos de WhatsApp mostra a nacionalização da conversa. Nenhum dos Estados – nem o Distrito Federal – ignorou a forma como a política paulistana tem feito propaganda se aproximando ou se afastando do maior grupo criminoso do país.

Preocupa o uso aparentemente indiscriminado de uma das técnicas mais utilizadas em todo o mundo para disseminar notícias falsas: a amplificação do medo (ou fear mongering, em inglês). Alguns se lembrarão da atriz Regina Duarte compartilhando seu receio ante uma possível vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na campanha presidencial de 2002. É disso que falamos. O episódio ocupou preciosos minutos de TV e foi motivo de centenas de análises políticas – muitas delas apontando para o risco de misturar medo e política.

Em 2024, o medo também está sendo difundido, mas de forma mais silenciosa, pelo celular, sem que a maioria dos analistas consiga enxergá-lo. O preço a se pagar pode ser a estabilidade da democracia.


*Cristina Tardáguila é fundadora e sócia da agência Lupa. Este texto faz parte da parceria do Meio com a Lupa, que mapeia o que está fervendo em 80 mil grupos públicos do WhatsApp e do Telegram sobre as eleições municipais deste ano e publica na newsletter Ebulição.



Carro elétrico: evolução rápida e concorrência chinesa aceleram desvalorização e dificultam revenda, Cleide Silva -OESP

 A recente reviravolta no mercado global de carros elétricos, atualmente em desaceleração em países da Europa e nos Estados Unidos, provoca uma intensa queda nos preços de revenda e excesso de estoques nas lojas e fábricas. No Brasil, onde as vendas desses modelos estão aquecidas, ainda que sobre uma base pequena de comparação, a desvalorização de modelos 100% a bateria também preocupa. Automóveis com dois a três anos de uso e baixa quilometragem foram vendidos nos últimos meses com até 45% de deságio e, dependendo do modelo, por menos da metade do valor pago pelo novo.

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Após rodar 54 mil km, por dois anos e meio, com um Peugeot e-208, adquirido por R$ 249 mil, o empresário paulista Maurício de Barros decidiu vendê-lo. Fez anúncios em plataformas especializadas e, em quatro meses, não recebeu propostas. Em julho, entregou o modelo a uma concessionária por R$ 100 mil como parte da troca por outro elétrico. “Foi uma paulada”, diz.

Barros reconhece, contudo, ter “pago o preço por estar entre os primeiros a ter um carro 100% elétrico, quando não havia muitas opções e todos os modelos eram caros”. Seu consolo é ter adquirido um BYD Yuan Plus novo, com mais itens de tecnologia e 480 km de autonomia, ante 320 km do e-208. O modelo custou R$ 209 mil porque a marca deu desconto de R$ 30 mil para aquela versão.

A rapidez na evolução tecnológica dos automóveis elétricos, a deficiência na infraestrutura de recarga e a guerra de preços intensificada pelas empresas chinesas a partir do ano passado, que levou as demais marcas a baixarem seus preços, são os principais fatores que levam à desvalorização dos seminovos. Já os preços dos modelos híbridos usados têm comportamento mais próximo ao dos carros a combustão.

Maurício de Barros em seu BYD Yuan, para o qual deu de entrada o antigo Peugeot elétrico
Maurício de Barros em seu BYD Yuan, para o qual deu de entrada o antigo Peugeot elétrico Foto: Werther Santana/Estadão

Um Nissan Leaf Tekna 2023 zero, por exemplo, tem preço sugerido pela fabricante de R$ 298,4 mil, mas pode ser encontrado nas concessionárias com 15% de desconto, ou R$ 252,1 mil, de acordo com a consultoria automotiva Kelley Blue Book (KBB). A versão do mesmo ano com 14 mil km rodados custa, nas revendas, R$ 196,1 mil, um deságio de 22%. Já na troca por outro carro, os lojistas pagam 37% menos (R$ 158,8 mil).

Híbrido tem deságio menor

Com cerca de 33 milhões de visitas por mês e 1,5 milhão de leads (propostas de compra), a maior plataforma de venda online de veículos do País, a Webmotors, registra desvalorização média de 12% nos preços dos carros elétricos neste ano e de 6% para os híbridos. Os modelos convencionais têm perda média de 2,25%, informa o CEO Eduardo Jurcevic. Os elétricos são apenas 1,2% dos cerca de 400 mil veículos em estoque na plataforma. Os híbridos são 2,3%.

A demanda por elétricos na Webmotors é 12% menor em relação aos tradicionais. Os motivos, na opinião de Jurcevic, são o desafio da infraestrutura e, em muitos casos, o receio da duração da bateria de um carro já usado ou da necessidade de manutenção. O tempo médio para venda é 26% maior em comparação aos automóveis a combustão ou híbridos.

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No mês passado, a revenda Amazon, autorizada da Volkswagen em São Paulo, suspendeu as compras de elétricos devido ao longo período em que permanecem nas lojas. A concessionária tem cinco Nissan Leaf em estoque há um ano e meio, chegou a anunciá-los pela metade do preço da tabela Fipe (referência em preços de carros usados) e não teve interessados. “Nossos lojistas parceiros também pararam de comprar elétricos por causa da depreciação alta”, diz Marcelo Jallas, diretor da Amazon. A Volkswagen tem dois veículos elétricos no Brasil, o ID.4 e o ID Buzz, disponíveis apenas para a modalidade de assinatura.

Frota de locadoras

Nem mesmo as locadoras de veículos - tradicionalmente responsáveis por metade das vendas totais de automóveis das montadoras - estão buscando os elétricos. Juntas, elas têm 4,3 mil modelos com essa tecnologia e 6,8 mil híbridos em suas frotas, informa Paulo Miguel Junior, vice-presidente da Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis (Abla). O número equivale a menos de 1% da frota total.

A maior empresa do setor, a Localiza, encerrou 2023 com 2,7 mil elétricos e híbridos em uma frota de 631 mil veículos. As primeiras unidades de elétricos adquiridas pelo setor há cerca de três anos, principalmente de marcas tradicionais, foram revendidas a preços “muito abaixo do esperado, com cerca de 40% a 45% de depreciação”, diz Miguel Junior.

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Esses veículos, segundo a Abla, foram comprados por valores altos e em dois anos tiveram significativa desvalorização após a chegada das marcas chinesas, com ofertas mais competitivas e tecnologias mais avançadas. As montadoras tradicionais tiveram de reduzir seus preços para não perderem competitividade e quem comprou antes ficou com a conta do deságio.

Uma das pioneiras em ter frota de elétricos, a Movida adquiriu, a partir de 2021, cerca de 600 modelos Leaf, Renault Zoe, Fiat 500e e BMW i3. Em menos de dois anos, a maior parte estava parada nos pátios por falta de demanda e foi colocada à venda. Segundo fontes do mercado, alguns ficaram até seis meses encalhados. Vários foram vendidos com preços até 40% abaixo da tabela Fipe. O grupo suspendeu a compra da maior parte de um lote de 250 BYD Tan prevista para 2022. A Movida não comentou o tema.

GWM tem programa de recompra para seus modelos à venda no País
GWM tem programa de recompra para seus modelos à venda no País Foto: Felipe Iruatã / Estadão

Fora do Brasil o cenário é ainda pior. Uma das maiores locadoras dos EUA, a Hertz, desistiu neste ano da aquisição de 100 mil carros da Tesla por causa da desvalorização rápida dos seminovos. O comércio dos automóveis usados sempre foi importante fonte de receita para as locadoras.

Uso maior por aplicativos

Grande parte da frota atual de elétricos das locadoras brasileiras tem, em média, menos de um ano de uso e não completou o ciclo para revenda, tradicionalmente de até dois anos. Por isso, o presidente da Abla não sabe qual será o parâmetro de preços dessa nova leva, principalmente dos modelos chineses. Juntas, BYD e GWM são responsáveis por 58% das vendas de elétricos e híbridos novos neste ano.