terça-feira, 2 de outubro de 2018

Anjos pornográficos, FSP

A vida sexual dos millennials não se recomenda. Não sou eu quem o diz. É o Times de Londres, que partilhou um estudo detalhado sobre o assunto.
Quando pensamos na tribo, imaginamos vidas liberais e modernas, onde o sexo rola fácil entre os sócios do clube. Pena não ser verdade. Parece que 25% dos casais na casa dos 30 têm existências castas, ou quase: menos de dez relações por ano.
Eu sei, leitor: falamos do Reino Unido. Como diz o bordão, "no sex, please, we're English". Mas é importante lembrar que, no Reino Unido, habita hoje o mundo inteiro. Que dizem os especialistas dessa fome internacional?
Duas reflexões merecem destaque. Para começar, o ritmo da vida moderna e a precariedade da "economia líquida" não casam bem com o romantismo a dois (ou a três).
Além disso, é preciso ter em conta que os millennials foram alimentados, desde tenra idade, com um excesso de pornografia que os deveria habilitar para proezas homéricas.
Pelos vistos, não habilitou. Pior: é precisamente o irrealismo das proezas homéricas que eles viram nas telas que inibe a "performance" real. Moral da história?
Vivemos a agonia do Eros no meio de tanta liberalidade. E se falo em "Agonia do Eros" é porque existe um livro com esse título que osmillennials deveriam ler. O autor é Byung-Chul Han e já chegou ao Brasil.
Como explicar essa agonia? Existe uma resposta automática que as melhores cabeças gostam de debitar: no mundo das possibilidades infinitas, nunca existe uma entrega romântica total. Há sempre o fantasma das vidas não vividas (e dos homens e das mulheres que ainda não conhecemos) que retira ao interesse romântico a sua urgência e perpetuação.
O professor Han discorda. O problema não está na nossa impermanência, saltitando de caso em caso com medo de perder a festa. O problema está no "desaparecimento do outro", que deixa de existir em nós e para nós.
Vivemos em "sociedades de rendimento", ou seja, sociedades em que os indivíduos buscam desesperadamente as medalhas da carreira, da riqueza ou do estatuto. Aparentemente, isso é uma manifestação de liberdade: eu, senhor do meu destino, lanço-me no mundo para conquistar o meu lugar.
Mas o "sujeito do rendimento" não é livre. Ele é apenas escravo de si próprio. Contrariamente ao que sugeria a caricatura marxista, já não existem exploradores e explorados. Hoje, essas duas categorias fundiram-se no mesmo indivíduo. A luta de classes, se alguma vez existiu, existe agora na mesma alma.
Resultado: sem a possibilidade de culparmos o capataz exterior, rapidamente concluímos que o capataz somos nós. Eis uma visão infernal que a "Sociedade do Cansaço" (outra categoria de Han, analisada em ensaio com esse título) representa na perfeição: esgotamo-nos porque não conseguimos parar de nos esgotar. Pelo menos, até a exaustão depressiva nos jogar no tapete.
Mas o "desaparecimento do outro" não acontece apenas porque estamos encerrados em nós próprios, nessa corrida louca para nos libertarmos e escravizarmos. Byung-Chul Han dedica algumas páginas magistrais à pornografia. Para sentenciar: "O obsceno, no pornô, não consiste num excesso de sexo, mas no fato de nele não haver sexo".
Verdade. O sexo depende da nossa fantasia erótica. Para usar uma linguagem bem crua, antes de querermos comer o outro é preciso fantasiar o outro. Mas como fazer isso, se uma cultura de exposição permanente foi entorpecendo o órgão sexual mais importante que temos —a imaginação?
A esse respeito, Byung-Chul Han cita "The Gioconda of the Twilight Noon", conto magistral de J.G. Ballard. É a história de um homem que se retira para uma casa de praia para recuperar de uma doença dos olhos.
Com o tempo, a privação da visão desperta nele uma tendência para o sonho que o encanta e arrebata. Mas quando volta a experimentar a luz da realidade, é como se a invasão do sol prometesse "queimar as suas fantasias". Desesperado com essa ameaça, o homem acaba por se cegar. É a única forma de continuar a viver naquela "escuridão visível".
Em interpretação antiplatônica, conclui Byung-Chul Han: o homem destruiu os seus olhos para ver mais.
Longe de mim recomendar métodos tão drásticos para aquecer o leito dos millennials. Mas desconfio que a única forma de animar esses sepulcros passa por "ver mais" —no caso, o ente desaparecido.
Isso implica que o "sujeito do rendimento" é capaz de sair da valsa narcísica onde baila dia e noite; e de perceber, talvez pela primeira vez, que o desejo só existe e persiste para quem tem imaginação.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
TÓPICOS

#2014não, Marco Aurelio Ruediger, FSP

O ano de 2014 de certa forma ainda não terminou. Nos últimos quatro anos, as cicatrizes da eleição presidencial e seus trágicos desdobramentos não se fecharam; ao contrário, se ampliaram. Talvez, desde a redemocratização e do Plano Real, este seja o momento mais crucial da vida pública do Brasil. Um momento de decisão ímpar, numa eleição absolutamente ímpar.
O ambiente mercurial que nos engolfa, acelerado pelas redes, é reforçado por ambiguidades dos principais contendores, a partir de sinalizações preocupantes no tocante a princípios basilares sobre a democracia, os direitos individuais e a lógica econômica. Não é à toa que economia, além de corrupção e segurança, sejam os temas que dominam a pauta de discussões por nós mensurada. Essa dinâmica privilegia duas narrativas de fundo antagônico, até agora sem as devidas mediações. 
Pela esquerda, a reorganização da vida pública por critérios de justiça social, promovida pela extensão do escopo e de ação do Estado. Pela direita, também uma reorganização, mas focada na eficiência, por critérios de desregulação e diminuição desse mesmo Estado. Na primeira, o Estado opera para promover a busca dessa melhoria. Na segunda, o sujeito tem como garantia a possibilidade dessa busca por si, sem os entraves excessivos do Estado.  
A questão é que os polos se esquivam da possibilidade de calibragens entre essas posições. Pior, as submergem em uma narrativa de esterilização do contraditório. O problema reside aí, na narrativa.
Nas redes, o debate acima é percebido claramente nas expressões de desconfiança e reafirmação de descrédito da política, das instituições e do homem público. A desconfiança radical torna-se assim o novo normal no país, e a política deixa de ser mediadora razoável para a vida do cidadão comum. 
Essa desconfiança, exacerbada na narrativa esterilizante do outro, faz com que apoiadores periféricos a cada polo nele se concentrem temerosos, diminuindo a porosidade à mensagem de outros atores políticos alternativos. Daí a dificuldade da terceira via. 
O discurso radicalizado retroalimenta a polarização, num contínuo perverso ao debate democrático. O problema é que isso nos prende mais a 2014. Há uma grande irresponsabilidade em apostar na polarização extrema. A vitória do pleito pode se tornar uma derrota estratégica no pós-eleição.
Em síntese, um debate que deveria ser plural torna-se uma categorização binária de bem e mal. O que se disputa é quem representa qual categoria. Tem-se a impressão, pelas declarações, de que os atores da ponta querem uma adesão incondicional. No entanto, seria necessária uma sinalização mais firme de contrapartida destes, seja em autocrítica ou na reafirmação da relação democrática e respeitosa com a Constituição, com a eleição e com uso do aparelho estatal. 
O ponto central é que o que torna possível a busca da felicidade é justamente a preservação dos valores democráticos e a liberdade do indivíduo, como Thomas Jefferson tão elegantemente expôs na fundação da nação americana.
A naturalização disso pela sociedade é a essência do sucesso dos Estados Unidos. Deveríamos absorver essa lição.
Convido o leitor a uma reflexão. Devemos nos perguntar se nossas opções no primeiro e segundo turnos têm compromissos que assegurem o diálogo, a democracia e a liberdade, com a maioria e a minoria. Se seu escolhido será capaz de lidar com o contraditório e de ter racionalidade em suas proposições econômicas, sem optar por uma marcha da insensatez, como vemos desde 2014. 
Se a resposta é não, então pense melhor, não se deixe levar a uma armadilha. Afinal, não se trata de torcidas em jogos de campeonato, mas do destino do país, e de todos nós. Bom voto!
 


Marco Aurelio Ruediger
É chefe da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV-DAPP)

A insanidade chegará ao 2º turno?, FSP Joel Pinheiro da Fonseca

Racionalmente, sei que não vale a pena gastar energia para tentar o rumo das eleições. Ainda assim, um ato de fé no brasileiro me faz acreditar que dá para evitar o pior: um segundo turno entre Haddad e Bolsonaro. Isso seria especialmente violento, permeado por boataria e notícias falsas. Promoveria o esgarçamento dos laços sociais e familiares e envolveria dois lados que, em suas palavras e seus atos, não demonstram apreço pela democracia. 
Não pretendo dizer a ninguém em quem votar. Quero apenas fazer um raciocínio estratégico e mostrar o óbvio: se você quer, acima de tudo, evitar Bolsonaro, não vote em Haddad. E se você quer, acima de tudo, evitar o PT, não vote em Bolsonaro. 
O medo, o ódio e o ressentimento nos levam a decisões ruins. Vemos José Dirceu falando em tomada do poder fora das urnas, em tolher o Ministério Público e o STF. A reação automática de muitos é querer o inimigo mais bombástico do PT: Bolsonaro. Mas será que ele tem as melhores condições de vencer o PT? Vamos considerar dois cenários.
No primeiro, o segundo turno é entre Bolsonaro e Haddad. Nesse caso, Bolsonaro receberia o voto de quem votou nele no primeiro turno, mais os votos de quem escolheu Álvaro Dias e uma boa parte de João Amoedo e Meirelles. Os eleitores de Alckmin se dividiriam, segundo estimativa do Datafolha, quase que igualmente entre Haddad e Bolsonaro. Haddad, por sua vez, ficaria com praticamente todos os votos que foram para Marina e Ciro Gomes, mais a metade de Alckmin.
Agora vamos considerar o segundo turno entre Haddad e Alckmin. As coisas mudam: Alckmin, além de todos os seus votos próprios, terá todos os votos que foram para Bolsonaro (eles podem detestar o tucano, mas certamente o preferirão ao PT), assim como os de Amoedo, Meirelles e Alvaro Dias e ainda uma parcela dos votos de Marina e Ciro Gomes — gente de esquerda que não quer o PT mas que jamais votaria em Bolsonaro. Não dá para garantir que Alckmin vença, mas é certo que ele irá melhor no segundo turno do Bolsonaro. 
O mesmo vale, na esquerda, para Haddad e Ciro Gomes. A rejeição de Ciro entre todos os eleitores da direita e de centro é menor do que a de Haddad. Então Ciro terá, assim como Haddad, o voto da esquerda, além de mais votos do centro e da direita.
Com Marina isso se dá para ambos os lados. As pesquisas curiosamente indicam uma enorme rejeição a ela, mas isso deve ser mais sintoma de uma má vontade presente e não um reflexo fiel do voto caso ela chegue no segundo turno. Afinal, contra Haddad, é evidente que todo mundo que votou em candidatos de direita votará nela (melhor do que deixar o PT voltar!). Contra Bolsonaro, ela leva todos os votos da esquerda (por mais que os partidos de esquerda a acusem de traidora, o eleitor de esquerda preferirá colocá-la no poder do que entregá-lo ao Bolsonaro). 
Quem domina o centro, vence. Estamos nos encaminhando para um segundo turno entre as duas figuras mais polarizadoras da campanha. Além de ser ruim para o governo futuro — que terá forte oposição a tudo que fizer — e de ser um risco para a democracia, é também uma escolha irracional por parte dos eleitores. Não deixemos a irracionalidade vencer. Ainda dá tempo!


Joel Pinheiro da Fonseca
Economista, mestre em filosofia pela USP.