Pela primeira vez, as campanhas eleitorais poderão incluir anúncios pagos na internet. Isso significa que os 13 candidatos à Presidência da República podem impulsionar propaganda em plataformas digitais como o Facebook.
O InternetLab, centro de pesquisa independente em Direito e Tecnologia, identificou que candidatos pagam para que seus conteúdos atinjam eleitores de outro espectro político. Esse e outros apontamentos foram divulgados pelo relatório do Você na Mira, uma ferramenta instalada em navegadores de internet, como Google Chrome e Firefox, que identifica a prática conhecida por “microdirecionamento”.
Microdirecionamento é quando um anúncio leva em conta características demográficas (como idade, gênero e geografia), bem como interesses específicos dos usuários, como posicionamento político e páginas curtidas no Facebook.
Com dados coletados desde o dia 1º de junho, o Você na Mira identificou mais de 27 mil anúncios de mais de 579 usuários. Dentre os maiores destaques das informações cruzadas até agora, estão a mira dos candidatos em usuários que curtem páginas de políticos de oposição (uma tentativa de angariar eleitores do lado adversário) e o foco em eleitores que curtem páginas populares no Facebook, como Quebrando o Tabu, Catraca Livre e Socialista de iPhone.
A equipe de campanha de Manuela D’Ávila, que seria candidata pelo PCdoB e agora integra a chapa do PT com Fernando Haddad, apresentou a estratégia mais elaborada nas redes sociais. Pagou para que conteúdos aparecessem a uma audiência jovem e com interesses em feminismo, movimento social, ativismo, comunidade LGBT, caridade e causas, voluntariado e filantropia.
Também mirou em pessoas que curtiram as páginas Catraca Livre e Quebrando o Tabu, e direcionou conteúdos a interessados em Dilma Rousseff e Marcelo Freixo.
Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, focou em uma audiência ampla, com um público de 18 anos ou mais em todo o Brasil, e sobretudo em quem já curtia a página do candidato. Um anúncio apresentou direcionamento mais específico: um vídeo sobre o Encontro Nacional do PT foi destinado à Região Nordeste.
A campanha de Guilherme Boulos, candidato do PSOL, mirou em pessoas de 16 a 45 anos.“Uma demografia de audiência em específico, contudo, chamou atenção. Dentre os anúncios veiculados por Boulos, um deles consiste em um vídeo no qual ele fala sobre o tema da depressão”, diz o relatório. Nesse caso, além de pessoas interessadas por política, o foco foi mulheres de 16 a 40 anos.
Já o candidato do MDB, Henrique Meirelles, foi o segundo maior anunciante na amostra coletada até agora. A audiência visada foi plural, com direcionamento a um público de 13 anos ou mais no Brasil.
Um vídeo chamado “Minha Trajetória”, que conta a história e experiência do candidato, foi segmentado a homens de 25 anos ou mais. Já o vídeo “Experiência e Coragem”, narrado por uma voz feminina, foi destinado a pessoas de 18 anos ou mais, homens de 25 anos ou mais e mulheres de 25 anos ou mais. No seu foco, também estão eleitores com interesse em agricultura e empreendedorismo.
Marina Silva, da Rede Sustentabilidade, teve oito anúncios coletados. O que mais chama atenção são dois vídeos, um que conta sua história e outro que critica o “centrão”. Ambos foram pagos para atingirem pessoas que curtem a página Quebrando o Tabu.
O Você na Mira coletou apenas dois anúncios veiculados pela página de Geraldo Alckmin, do PSDB: um vídeo sobre a fome no Brasil e um depoimento de apoio do apresentador Datena ao pré-candidato. Ambos foram direcionados também a pessoas que curtem a página do candidato do PDT, Ciro Gomes —o que refletia a disputa pré-eleitoral nas negociações pelo apoio do “centrão”.
A ferramenta Você na Mira é uma parceria com a Who Targets Me, versão europeia do plug-in, e não representa uma base estatística, visto que a maior parte dos usuários que instalaram a ferramenta estão concentrados no eixo Sul e Sudeste e se autodeclaram de esquerda.
Francisco Brito Cruz, diretor do Internet Lab e autor do relatório, esclarece que o programa é importante para auxiliar o usuário comum a entender qual partido lhe dirige conteúdo político.
“Para a sociedade, é importante saber como o impulsionamento é usado pelas campanhas. Esse relatório dá um primeiro retrato de como ele servirá de estratégia política. A ideia é trazer transparência para a estratégia e, depois, discutir suas consequências”, diz.
O microdirecionamento nas redes sociais ganhou atenção nos últimos anos por influenciar as campanhas políticas ao redor do mundo. O InternetLab lembra que estudos recentes apontaram para consequências democráticas diante de anúncios pagos em uma operação do serviço de inteligência russo com o objetivo de influenciar as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016.
O Você na Mira coleta dados que usuários fornecem ao instalar a extensão no navegador e os cruza com informações disponibilizadas pelo próprio Facebook.
“Nosso futuro afigura-se, com toda a probabilidade, catastrófico. É preciso admitir que estamos funcionando mentalmente à base de autoengano. É preciso encarar de frente as evidências”. O alerta, feito pelo historiador Luiz Marques, estará no centro dos debates do “Seminário Internacional Degradação socioambiental, catástrofe e distopias”, que acontece dias 13 e 14 de agosto na Unicamp.
O evento, que é organizado por Marques, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), e por Carlos Eduardo Berriel, docente do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), reunirá intelectuais de diferentes áreas do conhecimento, abrigando mesas que vão abranger um amplo leque de temas. “Apesar do risco de que tal heterogeneidade suscite fricções e talvez alguma cacofonia, a aposta de base é que a diversidade de perspectivas é intelectualmente produtiva”, afirma Marques.
“Dada a gravidade extrema e a pluralidade de aspectos das crises ambientais, nenhum saber isolado tem abrangência compatível com o caráter totalizante e globalizante dessas crises”, completa o docente, colunista do Jornal da Unicamp e autor, entre outras obras, do livro Capitalismo e Colapso ambiental(Editora da Unicamp), premiado com o Jabuti em 2016.
Marques refere-se a um quadro que, em suas palavras, resultará em “um colapso socioambiental inevitável”. Não à toa, no texto de apresentação do seminário, há uma declaração de Kevin Anderson, vice-diretor do Tyndall Centre for Climate Change Researchal: “Estamos conscientemente enveredando em direção a um futuro fracassado”.
E qual o lugar das distopias nesse cenário de terra arrasada? “Adistopia diz antes as mais graves questões de nosso tempo. Essa é sua importância”, observa Berriel, autor do livro Tietê, Tejo e Sena – a obra de Paulo Prado, idealizador do seminário e coordenador do U-TOPOS, Centro de Estudos sobre Utopia, cujas pesquisas, desenvolvidas no IEL, tornaram-se referência no país.
Leia a seguir a entrevista concedida por Marques e Berriel ao Jornal da Unicamp.
Jornal da Unicamp – Qual é o objetivo do seminário?
Luiz Marques – O seminário surgiu de uma ideia do professor Carlos Eduardo Berriel, diretor do U-TOPOS, Centro de Estudos sobre Utopia do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). O professor Berriel é responsável pelo caráter internacional dessa iniciativa, à qual eu me associei com muito entusiasmo, porque compartilhamos, com muitos de nossos colegas, as mesmas preocupações. Decidimos, assim, que o encontro será aberto no IEL e encerrado no IFCH, nos dias 13 e 14 próximos. Como já seu título o explicita, seu objetivo é afirmar que nosso futuro afigura-se, com toda a probabilidade, catastrófico e que é preciso admitir que estamos funcionando mentalmente à base de autoengano. É preciso encarar de frente as evidências.
JU – Quais seriam?
Luiz Marques – Dado o poder das petroleiras e demais corporações, bem como dos Estados a elas umbilicalmente ligados, a chance de que as emissões de gases de efeito estufa diminuam significativamente no próximo decênio são praticamente nulas, quando sabemos que elas já deveriam estar caindo rapidamente e estar zeradas até 2040, para conservarmos probabilidades significativas de manter a temperatura do planeta abaixo de níveis catastróficos de aquecimento.
Tal como o Protocolo de Kyoto, também o Acordo de Paris, os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e demais acordos internacionais em prol da conservação da biodiversidade terrestre e marítima não estão a caminho de atingir, nem de perto, suas metas. Esse seminário tem, portanto, o objetivo de contribuir, na medida de suas possibilidades, para um sobressalto das consciências acerca das ameaças que pesam sobre nosso presente e nosso futuro.
JU – O encontro reúne cientistas de diferentes áreas, com temas que vão de Darwin a Maio de 68, passando por diferentes dimensões das crises socioambientais, da econômica à política. Quais foram os critérios que nortearam as escolhas dos nomes e seus respectivos temas?
Luiz Marques – Em face das crises socioambientais extremamente graves de nossos dias, e da necessidade de elaborar respostas a elas, pareceu-nos imprescindível colocar em contato pessoas de saberes, experiências, sensibilidades, linguagens e horizontes de pesquisa muito diferentes, desde cientistas a estudiosos do imaginário literário e visual. Apesar do risco de que tal heterogeneidade suscite fricções e talvez alguma cacofonia, a aposta de base é que a diversidade de perspectivas é intelectualmente produtiva. Dada a gravidade extrema e a pluralidade de aspectos das crises ambientais, nenhum saber isolado tem abrangência compatível com o caráter totalizante e globalizante dessas crises, e não é capaz de avaliar o alcance material, cultural e mesmo espiritual de suas consequências.
JU – O texto de apresentação do seminário destaca que, “embora o imaginário do século XX, reminiscente por vezes de tradições escatológicas, tenha cultivado uma rica vertente distópica, a perspectiva de um futuro fracassado nunca havia sido formulada pelo consenso científico”. O sr. poderia falar sobre essa perspectiva e da dimensão desse consenso?
Luiz Marques – O que se nota, de fato, é que o imaginário distópico dos séculos XIX e XX foram, como não poderia deixar de ser, tributários seja da riquíssima tradição escatológica judaico-cristã, seja da ideia de “cansaço” e de declínio da natureza, recorrente na tradição clássica desde Homero e Hesíodo. O que se nota nos últimos decênios, entretanto, é que a ciência vem se somando às expectativas de um unhappy end de nossas sociedades ainda no horizonte deste século. Não porque essas tradições escatológicas ou porque as tendências irracionalistas contemporâneas tenham “contaminado” a ciência, como disso a acusam seus detratores e os chamados “mercadores de dúvidas”, fomentados pelas corporações.
A ciência emite prognósticos a partir de um acúmulo rigoroso e consistente de dados, modelos e análises das coordenadas do sistema Terra e esses prognósticos, sóbrios em suas formulações, são não raro mais sombrios que as mais assustadoras ficções de antecipação. Basta lembrar aqui um exemplo. Um aquecimento médio global de 3oC acima do período pré-industrial, que é, mantida a trajetória atual, a mais otimista projeção para este século, significa o fim das florestas tropicais e a conversão em savana do que resta da floresta Amazônica, pela ação combinada de secas e incêndios, com adicional liberação de CO2 na atmosfera. Há mais de 10 anos, em 2007, James Hansen alertava para o fato de que tal nível de aquecimento conduziria à ultrapassagem de pontos críticos no sistema Terra, além dos quais há alta probabilidade de uma transição para temperaturas ainda mais altas. Perto dos cenários projetados pela ciência, os cenários imaginados pela ficção parecem, em suma, cada vez mais tímidos.
JU – Outro ponto destacado na apresentação – e que também seria inédito – é que “esse consenso tem sido objeto de vários graus e estratégias de denegação, com crescente resistência política, ideológica e psicológica à ciência e a seus alertas”, inclusive de setores “com maior educação formal”. A que o sr. atribui essa resistência e quais são, em sua opinião, suas consequências?
Luiz Marques – É muito difícil e penoso para a sociedade admitir o fracasso puro e simples de nosso modelo econômico e civilizacional. A tendência é continuar a pensar segundo o paradigma do crescimento econômico e dos “milagres” criados pela revolução tecnológica permanente a que estamos habituados desde ao menos o Iluminismo e advento do capitalismo industrial no século XVIII. Economistas continuam a pensar como manter o crescimento econômico, cientistas e engenheiros são formados para “resolver problemas”, são problem solvers, cientistas sociais pensam e agem em prol de programas políticos mais aptos a distribuir melhor a riqueza, de modo a minorar as desigualdades e injustiças sociais, algo que permanece, obviamente e mais que nunca, necessário.
Mas o que muitos ainda não percebem é que pela via atual não resolveremos mais nossos problemas e não nos aproximaremos mais desses objetivos. Ao contrário, começaremos em breve – na realidade, em parte já começamos – a nos distanciar aceleradamente deles. São demasiado poucos ainda os que entendem que o grau insuportável de interferência antrópica no sistema Terra tornou anacrônica a farmacopeia das soluções propugnadas pela economia, pela ciência e pela política.
Um exemplo gritante dessa incompreensão é a ausência da questão ambiental no debate eleitoral no Brasil e mesmo em âmbito internacional. Os cientistas estão roucos de gritar que estamos próximos de superar pontos críticos, além dos quais nossa civilização, qualquer civilização, torna-se inviável. Mas suas advertências são duras de ouvir e é, portanto, compreensível, embora não justificável, que tais mensagens encontrem tantos ouvidos moucos.
Além disso, não se há de subestimar a capacidade das corporações de abafar o debate sobre as crises socioambientais, tal como ainda continuam a fazer em relação aos malefícios do cigarro, dos agrotóxicos etc. Enfim, é importante lembrar o espaço desproporcionalmente pequeno que a grande mídia reserva a esses alertas científicos, dependente que é da publicidade dessas corporações.
JU – Nesse quadro, qual o lugar das distopias? Como elas se manifestam?
Carlos Berriel – A distopia é um galho da grande árvore da utopia, pois paradoxalmente compartilham de elementos comuns. Há em toda utopia um elemento distópico, e vice-versa. A utopia, uma obra e gênero criados por Thomas Morus em 1516, se caracterizava pela criação de uma sociedade imaginária num lugar inexistente, porém conectada ao mundo real por serem o seu contrário, a sua visão especular. Os graves problemas da sociedade do autor utopista vinham resolvidos, como projeto e programa, nesta sociedade fictícia. As utopias eram marcadas, portanto, pela época de seu autor, sendo portanto datadas.
O elemento distópico – isto é, negativo – das utopias estava em que elas eram engessadas pelo seu tempo, pois se suas soluções eram “perfeitas”, não poderiam portanto serem aperfeiçoadas ou mesmo modificadas. A utopia era imediatamente u-cronias, isto é, sociedades estáticas, sem tempo. Aí está a distopia, o pesadelo social.
Quando a distopia se torna praticamente um gênero em si mesmo – talvez com Frankenstein, de Mary Shelley (1818) – há uma marca original: um elemento da sociedade real, uma ameaça em estado latente, é dilatado ao ponto de representar uma ameaça mortal para esta sociedade. Tendo como exemplo o mesmo Frankenstein, temos que uma ciência avançadíssima, porém desprovida de uma ética que a controle, gera monstros.
Pensemos na bomba atômica, nos agrotóxicos, etc. No século XX a distopia tornou-se dominante, enquanto a utopia desapareceu. O Estado totalitário, mantido pelo controle das mentes e pela universal vigilância dos indivíduos, está em 1984, de George Orwell. A destruição do planeta está em tantos filmes, como Blade Runner, que mostra também como a humanidade pode ser substituída por criaturas artificiais: quantos de nós já perderam o emprego para um robô? Então, a distopia diz antes as mais graves questões de nosso tempo. Essa é sua importância.
JU – Prof. Luiz Marques, a concentração do poder econômico e político é tema recorrente em artigos e trabalhos de sua autoria. Em que medida as distorções do capitalismo, entre aquelas estudadas pelo sr., são uma ameaça à democracia?
Luiz Marques – O capitalismo define-se por um ordenamento jurídico assente sobre a premissa de que as decisões estratégicas de investimento econômico pertencem aos proprietários do capital. Os boards que controlam as corporações e os grandes investidores nos mercados de capitais decidem o destino desses investimentos em função de sua expectativa de rentabilidade. Os investimentos já feitos na produção de mercadorias ou commodities, tais como combustíveis fósseis, plásticos, soja, óleo de palma, carne e outros produtos que estão desequilibrando o clima e destruindo a biodiversidade do planeta são da ordem de trilhões de dólares.
A maximização do retorno a médio e longo prazo desses investimentos na forma de lucros é a razão de ser deles e é algo a que os investidores jamais estariam dispostos a renunciar. Além disso, enquanto esses produtos oferecerem uma rentabilidade potencialmente atrativa, sua produção continuará a aumentar em decorrência de novos investimentos. Dado que, como dito, os investimentos de capital permanecem no capitalismo um direito inalienável de seus proprietários e dado que estes se guiam por sua rentabilidade, é claro que há uma incompatibilidade crescente entre os interesses vitais da sociedade, que necessitam deter esses processos ambientalmente deletérios, e os interesses vitais das corporações, que necessitam manter a rentabilidade de seus investimentos.
O terreno de confronto desse antagonismo de interesses é, na tradição democrática, o sistema político, vale dizer, o Estado e as organizações da sociedade civil – partidos, sindicatos, ONGs, movimentos etc – que com ele compartilham o poder. Ocorre que é crescentemente desfavorável para as sociedades a relação de forças entre, de um lado, os grupos que entendem a necessidade de desacelerar a degradação socioambiental e, de outro, as corporações e a alta burocracia do Estado por elas controlada, interessadas em manter o business as usual. De onde observarmos a ineficácia dos Acordos internacionais e a regressão generalizada da democracia, fenômeno particularmente acentuado no Brasil, onde o Congresso nacional é quase totalmente controlado por grupos de interesses econômicos e por bancadas extremamente conservadoras.
JU – Na condição de historiador e ao mesmo tempo de autor de trabalhos de referência – e premiados – na área ambiental, qual o seu prognóstico do que está por vir? O colapso é inevitável? O que pode ser feito para evitá-lo?
Luiz Marques – Sim, mantida a atual trajetória, e nada indica que esta sofrerá em breve uma inflexão relevante, um colapso socioambiental é inevitável. Esse é o prognóstico consensual da ciência. Não sabemos ainda quando ele sobrevirá e a forma histórica que ele assumirá. Mas é crescente a percepção de que ele deve nos surpreender antes, ou bem antes, do final do século e nos golpear com uma força particularmente destrutiva. Diante disso, é preciso reagir. Para tanto, a experiência histórica e política têm, a meu ver, que enfrentar dois desafios imensos.
JU – Quais são eles?
Luiz Marques – O primeiro é entender que a escala e a velocidade das transformações operadas pela economia globalizada na natureza são incomparavelmente maiores que jamais o foram e que isso tem consequências nunca experimentadas pela humanidade. Portanto, nossa experiência passada e nossas coordenadas já sedimentadas de pensamento não oferecem mais um quadro adequado de referências para perscrutar nosso futuro.
O segundo desafio é entender que o vínculo social, objeto inaugural e central das ciências humanas, não contém mais em si o princípio de sua inteligibilidade. Temos, historiadores, cientistas sociais, filósofos e políticos, que incorporar doravante a percepção de que as respostas da natureza aos impactos antrópicos, as chamadas alças de retroalimentação das crises ambientais, estão em vias de ganhar protagonismo e que em breve se tornarão mestras do jogo. Portanto, é preciso agir já, se quisermos mitigar as consequências do que já desencadeamos. Digamos sem rodeios o que é mais que tempo de dizer: não é mais razoável a expectativa de um futuro melhor para os jovens e para as futuras gerações.
Às crescentes emissões industriais de CO2 cujo efeito é cumulativo, soma-se a crescente liberação de metano pelos rebanhos ruminantes – sacrificados para o bife de cada dia de nossa sociedade crescentemente carnívora –, pelos incêndios das turfeiras, pela degradação dos plásticos, pelo degelo dos pergelissolos setentrionais e dos hidratos de metano no Ártico.
De modo que, mesmo que começássemos hoje, por um passe de mágica, a diminuir drasticamente as emissões industriais de gases de efeito, um aquecimento médio global superior a 2 oC nos próximos dois ou três decênios, e provavelmente superior a 3 oC ao longo da segunda metade do século já é, ao que parece, inevitável. A menos que sejamos capazes de detê-lo, o agronegócio global continuará igualmente a nos condenar a uma maior escassez hídrica, ao desmatamento e à perda de biodiversidade. Isso significa, em suma, que estamos condenados a um futuro pior. Possivelmente muito pior. Quão pior, ainda depende de nossa capacidade como sociedade de reagir às causas dessas crises, e elas são, fundamentalmente, repita-se, a voracidade energética de nosso sistema econômico, a crescente queima de combustíveis fósseis, o desmatamento e uso insustentável da água pelo agronegócio, a poluição e intoxicação generalizada dos organismos pelos agrotóxicos e pela sopa química em que a indústria banha insanamente nossas sociedades.