Toni Ramos que se cuide. Ao virar garoto-propaganda da Friboi, o ator meteu-se numa encrenca que mobiliza o setor de carne bovina no Brasil. Os pecuaristas vislumbram, com temor, a formação de poderoso cartel entre os frigoríficos. Ruim para a boiada, péssimo para o churrasco.
Começou há meses esse embaraço. Articulada com o apoio da conceituada ONG Amigos da Terra, uma série de reportagens do Fantástico (TV Globo) mostrava, com imagens horríveis, a triste situação dos abatedouros municipais no País. Moscas, ratos, urubus misturavam-se à sujeira sanguinolenta, atestando absoluta falta de higiene no descarne das reses. As matérias induziam o telespectador a descobrir a origem da carne que consumiam. Cuidado com a carne clandestina.
A tese está correta. O serviço de inspeção veterinária é fundamental para verificar a existência, no animal abatido, de certas zoonoses, como tuberculose e cisticercose, potencialmente transmissíveis aos humanos. Ademais, somente profissionais habilitados conseguem averiguar as adequadas condições de asseio, impedindo a contaminação local da carne. A morte do bicho ainda deve seguir as regras do abate humanitário, amenizando seu sofrimento. Nenhum frigorífico poderia funcionar sem obedecer a tais exigências.
Ao que tudo indica, porém, houve um jogo combinado. Logo na sequência daquele impactante jornalismo, começou a ser veiculada uma forte campanha de marketing enaltecendo a excelência da carne oriunda da Friboi. As peças publicitárias sugerem ao consumidor que somente o produto dessa empresa garante a qualidade do bife. Foi essa mensagem que irritou profundamente a senadora Kátia Abreu (PR-TO), presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
Em discurso na tribuna do Senado, a líder ruralista denunciou um "marketing enganoso" no ramo de comércio da carne bovina. Reforçando sua posição em artigo publicado na Folha de S.Paulo (Arquitetura do monopólio, 19/8), a parlamentar acusou o Grupo JBS, dono da marca Friboi, de se aproveitar de vultosos empréstimos obtidos no BNDES (acima de R$ 7 bilhões) para buscar o monopólio do setor. Com respaldo do poder público, estaria ocorrendo um "massacre publicitário" contra as demais empresas frigoríficas do País.
A polêmica avolumou-se. Roberto Smeraldi, sério ambientalista, responsável pela ONG Amigos da Terra, safou-se do conluio em favor do monopólio da carne. Disse apenas lutar, honestamente, pelo direito do consumidor de usufruir um produto sadio, mostrando ter servido de inocente útil na jogada do poderio econômico. O núcleo da questão reside no seguinte: seria saudável apenas a carne oriunda de grandes frigoríficos, ou os pequenos abatedouros também conseguiriam assegurar a qualidade de seu produto?
A legislação sobre a inspeção sanitária de produtos de origem animal no Brasil vem desde 1950. Atualizada em 1989, estabeleceu três níveis, crescentemente rigorosos, para o trabalho de fiscalização. Funciona assim: para a venda apenas dentro de cada município, vale o Serviço de Inspeção Municipal (SIM), a cargo das prefeituras; a distribuição em nível intermunicipal exige o Serviço de Inspeção Estadual (SIE), mantido pelos governos; sendo o negócio nacional ou internacional, manda o Serviço de Inspeção Federal (SIF), exercido pela União. Em qualquer um deles, a inspeção é obrigatoriamente realizada por médico veterinário pertencente ao quadro público. Um serviço estatal.
Esse modelo de inspeção, territorial e estatizante, vem sendo questionado há tempos. Em contraposição, defende-se um sistema integrado com as empresas processadoras, imputando a estas a responsabilidade de garantir a qualidade de seus produtos. Nesse caso, caberia ao Estado, com poder de polícia, verificar o cumprimento da legislação. Haveria vantagens para a produção artesanal, que seria certificada num processo distinto do industrial, e as barreiras geográficas seriam substituídas por requisitos tecnológicos. Assim se procede em quase todo o mundo.
Hoje se toma como princípio, equivocado, que o rigor na inspeção é exclusividade do SIF, sobrevalorizando o âmbito federal. Sim, é verdade, suas normativas são bastante exigentes. Mas, infelizmente, acabam definindo um padrão, oneroso e burocrático, incompatível com o processamento de pequena escala, favorecendo os grandes frigoríficos. O problema atinge outros setores. Boa parte, por exemplo, do queijo fresco, típico do interior, elaborado historicamente pelos agricultores familiares, é jogada na clandestinidade pelas normas que, em nome da qualidade, beneficiam sempre os maiores laticínios. A legislação conspira contra os singelos.
O atributo da carne na panela, ou do queijo na goiabada, não se mede necessariamente pela escala do negócio. Mais importante que fechar os abatedouros vagabundos, cabe ao poder público ajudar na transformação tecnológica dos pequenos e médios empreendimentos, que precisam ser melhorados, devidamente fiscalizados. Não é justo, nem realista, supor que as periferias metropolitanas e o interior do Brasil venham a ser abastecidos somente pelos grandes conglomerados da alimentação.
Não se pode recriminar Toni Ramos nem seus colegas artistas por ganharem seu pão. Nem mesmo a Friboi deve ser condenado por investir em sua imagem. Errado, isso sim, opera um sistema que, seja na política do BNDES, seja no esquema da inspeção sanitária, atua em favor dos poderosos. Existem cerca de 1.300 frigoríficos espalhados pelo País que contribuem, bem ou mal, para oferecer a proteína e o gosto da carne na mesa das famílias. Seria bom vê-los aprimorados, não engolidos pela truculência capitalista.
*Xico Graziano é agrônomo, foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: xicograziano@terra.com.br
ARTIGO Notícia da edição impressa de 23/08/2013
Conversa para “Friboi” dormir
Tarso Francisco Pires Teixeira
Diz o ditado que a propaganda é a alma do negócio. Mas para ser eficaz, a publicidade de um produto ou serviço jamais pode investir na desinformação do grande público, sob pena de vender um engodo ao consumidor. Phillip Kotler, considerado o “papa” do marketing, diz que a maior ferramenta da propaganda é a verdade. É por isso que em boa hora a presidente da Confederação Nacional da Agricultura, senadora Kátia Abreu, usou a tribuna do Senado para protestar contra a campanha de mídia que a JBS Friboi tem feito em todo País. Quase todos já viram as cenas em que Tony Ramos entra em supermercados e fala das grandezas da “carne Friboi”, com seus trabalhadores uniformizados, regras rígidas de higiene e o Selo de Inspeção Federal. Pena que a propaganda omita ao consumidor a informação de que estas características, vendidas como diferencial competitivo, são regras básicas para o funcionamento de todos os mais de 209 frigoríficos brasileiros.
Este marketing agressivo (e pouco transparente) coincide com o crescente monopólio da companhia na indústria de carnes, adquirindo frigoríficos menores Brasil afora, tudo regado com dinheiro público, a financiamentos camaradas do Bndes, que ao invés de fomentar projetos de desenvolvimento nacional, atua para capitalizar barões da indústria, a juros que não são encontrados no mercado. Com esta mãozinha amiga do governo, a empresa engole a concorrência, regulando praticamente sozinha o preço pago aos produtores. No entanto, o Cade (Conselho de Defesa Econômica) nada faz, mais preocupado em transformar a Siemens em munição política contra a oposição.
A carne brasileira, especialmente a gaúcha, formada basicamente por raças britânicas, é uma das mais competitivas e de maior qualidade em todo o planeta. Alimentando seu gado apenas com pasto, sem ração animal e sem riscos de “vaca louca”, nosso pecuarista destina 70% da produção ao mercado interno e, mesmo exportando apenas 30%, transformou o Brasil no maior exportador de proteína animal do planeta. A qualidade gaúcha já merecia ações de marketing coerentes, como um Selo de Origem e Qualidade. No entanto, esta competitividade será afetada se este monopólio se consolidar. Isso é fato, o resto é conversa para “Friboi” dormir. Em tempos de protestos, diria que o Tony Ramos não me representa.
Presidente do Sindicato Rural de São Gabriel e vice-presidente da Farsul