Pode-se dizer que já existe entre os profissionais que lidam
com a questão urbana um pleno consenso acerca da impropriedade do atual Código
Florestal no que se refere à sua aplicação ao espaço urbano. É uma legislação inspirada na problemática
rural, por decorrência, equivocada conceitual e estruturalmente para a gestão
ambiental do tão singular espaço urbano.
As cidades constituem a mais radical e severa intervenção
modificadora do homem no meio físico geológico, compondo um novo e particular
ambiente, total e inexoravelmente diverso do ambiente natural então imperante
no território virgem. Nessa nova condição recebem hoje como moradores e
usuários mais de 80% da população mundial, ou seja, cerca de 5 bilhões e 600
milhões de habitantes, que se proverão de altos níveis de qualidade espiritual
e ambiental de vida não por buscar ingênua e insanamente retornos ao ambiente
natural original, mas, sim, com sua deliberação e inteligência, por dotar o
novo ambiente dos requisitos naturalizantes indispensáveis à saudável e feliz
existência humana.
Ou seja, o meio urbano é um ambiente absolutamente
desnaturalizado (aqui no sentido exato da palavra, ou seja, que não guarda e
não se propõe a obrigatoriamente guardar relações e dependências diretas com o
meio natural original). A cidade foi feita pelo Homem para atender suas
necessidades em abrigo, defesa do grupo, produção econômica e trocas
comerciais, convívio social, cultura, lazer, vida material e espiritual, etc.,
etc., no padrão de qualidade da vida em que decidiu viver, e esses objetivos
são permanentes; e nos devem ser, especialmente aos técnicos e administradores
públicos, onipresentes.
Atributos ambientais válidos para o meio rural, e básicos no
atual Código, como biodiversidade de flora e fauna, corredores biológicos,
exploração sustentável de florestas, etc., não fazem o mínimo sentido para as
cidades.
Como também podemos entender, pelos interesses sociais
envolvidos, que áreas que teoricamente seriam definidas como APPs – Áreas de
Preservação Permanente pudessem vir a ser ocupadas por equipamentos urbanos,
como um corredor viário, ou um complexo hospitalar, por exemplo, tão
importantes quanto uma área florestada para a qualidade de vida urbana.
Considere-se que as
áreas florestadas no espaço urbano podem ser criadas deliberadamente e em
qualquer tipo de terreno ou situação geográfica pela administração pública e
pelos agentes privados, ou seja, não necessariamente teriam que ser resultado
da manutenção de corpos florestais naturais originais ou associados a APPs.
Aliás, fato real é
que se a cidade depender dos remanescentes florestais originais, ou de APPs
determinadas pelo atual Código Florestal, enfrentará um enorme déficit de áreas
verdes florestadas. E quanto mais áreas verdes florestadas melhor serão
cumpridas suas atribuições ambientais e funcionais de regulação climática,
redução da poluição atmosférica, retenção das águas de chuva/combate às
enchentes, recarga de aqüíferos, proteção de encostas contra a erosão e
deslizamentos, proteção de margens e mananciais, abrigo e alimentação da fauna
urbana, lazer, embelezamento da paisagem urbana e aproximação física e
espiritual dos cidadãos com a Natureza. Por isso, não bastam os bosques
remanescentes e APPs, é preciso cria-los onde a cidade o decidir.
Desse ponto de
vista, poder-se-ia falar em uma manutenção mínima de áreas florestadas no
espaço urbano, não havendo limite máximo para atributo tão benéfico. Tomando a
sub-bacia hidrográfica como território de gestão ambiental do espaço urbano,
pode-se, por exemplo, pensar na obrigatoriedade legal de uma cobertura
florestal com extensão mínima de 12% da área total da sub-bacia.
Outra situação
específica para o caso urbano: do ponto de vista de riscos geológicos e
geotécnicos, como deslizamentos e processos erosivos, as áreas de topo das
elevações topográficas são extremamente mais favoráveis do que as áreas de
encostas para uma segura ocupação urbana. Essa qualidade geotécnica das áreas
de topo de morro deve-se à formação de solos mais espessos e evoluídos,
portanto, mais resistentes à erosão, e à quase inexistência de esforços
tangenciais decorrentes da ação da força de gravidade. Situação inversa ocorre
com as encostas de alta declividade, instáveis por natureza e palco comum das
recorrentes tragédias geotécnicas que têm vitimado milhares de brasileiros.
Esse aspecto
geológico e geotécnico sugere que, dentro de um regramento ambiental da
expansão urbana, possa-se evoluir na concordância em se liberar, sob
condições, a ocupação dos topos de morro, aumentando-se as restrições para
a ocupação das encostas.
No que se refere ao
aumento de restrições para a ocupação de encostas na área urbana, veja-se que o
atual Código Florestal define como APP – Área de Preservação Permanente somente
as encostas com declividades superiores a 45º (100%). Outra vez a geometria se
impondo à Ciência. Os conhecimentos geológicos e geotécnicos mais recentes e
abalizados indicam que, especialmente em regiões tropicais úmidas de relevo
mais acidentado, há probabilidade de ocorrência natural de deslizamentos de
terra já a partir de uma declividade de 30º (~57,5%). Por seu lado, a Lei federal
Nº 6.766, de dezembro de 1979, conhecida como Lei Lehmann, que dispõe sobre o
parcelamento do solo urbano no território nacional, em seu Artigo 3º, item III,
proíbe a ocupação urbana de encostas com declividade igual ou superior a 30%
(~16,5º), abrindo exceção para situações onde são atendidas exigências
específicas das autoridades competentes. Consideremos que essas situações de
exceções possam ser admitidas, desde que justificadas e sob responsabilidade
técnica expressa, até um limite máximo de 46,6% (25º); pois bem, a leitura geológica e geotécnica dessa questão
sugere a providencial decisão de se reduzir de 45º para 25º o limite mínimo de
declividade a partir do qual as áreas de encosta devam ser consideradas APPs no
espaço urbano. Imagine-se o ganho ambiental para as cidades brasileiras que
decorreria de uma medida de tanta racionalidade como essa, ou seja APPs florestadas
em encostas já a partir de 25º, e não mais de 45º.
O exemplos explicitados ilustram a imperativa necessidade de produção
de uma legislação ambiental especificamente voltada à realidade urbana
brasileira. Uma legislação que tendo em conta e respeitando as dinâmicas
próprias do espaço urbano, seja capaz de contemplar e assegurar os atributos
ambientais indispensáveis à qualidade de vida dos cidadãos. Que se realize esse
bom debate em clima de soma e entendimento.
O autor do artigo preparou, com esse objetivo, e ao menos em seus
pontos básicos, uma primeira proposta de minuta do que seria um Código
Florestal Urbano, e tenta agora encontrar um núcleo institucional vocacionado
para centralizar e coordenar o bom debate a respeito da matéria. Debates que deverão
envolver, obviamente, todas as especialidades científicas e profissionais
envolvidas no tema, como geólogos, arquitetos, urbanistas, geógrafos, botânicos
e engenheiros florestais, biólogos, legisladores, representações comunitárias, etc.
Álvaro Rodrigues
dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
Geólogo formado pela Universidade de São Paulo; ex-diretor de
Planejamento e Gestão do IPT; autor dos livros “Geologia de Engenharia:
Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão” e
“Diálogos Geológicos” e “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual
Básico para Elaboração e Uso da Carta Geotécnica”, consultor em Geologia de
Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente.
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