04/10/2011 - 10h22
A classe média tupiniquim
por Marcelo Côrtes Neri*
No pico histórico da desigualdade brasileira de 1989, os 50% mais pobres tinham 10,56% da renda, os 10% mais ricos, 50,97%. Números invertidos e fáceis de guardar. Os 40% do meio auferiam quase a mesma parcela na renda. Esse foi o ponto de partida para a análise da classe média em termos relativos na minha tese de mestrado sobre o boom de consumo do cruzado. Os limites da classe média seriam as fronteiras para o lado indiano e para o lado belga da Belíndia brasileira, auferindo a renda média da sociedade, ou seja, seria a classe média no sentido estatístico.
Na década passada, os lados indiano e belga brasileiros parecem ter se espelhado no crescimento dos respectivos homônimos. A renda dos nossos 50% mais pobres cresceu 67,93% contra 10,03% dos 10% mais ricos. Hoje, a metade mais pobre tem 15,4% da renda agregada e os 10% mais ricos, 42,8%. Segundo David Lam, o que diferencia a concentração de renda do Brasil da dos Estados Unidos, que não é um país particularmente igualitário, são justamente os 10% mais ricos. Estudo do qual participei com Sam Morley confirma o peso dos 10% mais ricos para explicar a desigualdade de renda brasileira e latino-americana.
Utilizamos aqui o conceito de polarização para debater e precisar o que é ser (ou estar) classe média. A fim de diferenciar o significado de polarização e desigualdade, lançamos mão de um exemplo simples. Seja uma sociedade de seis pessoas chamadas de A, B, C, D, E e F com rendas de R$ 5, R$ 4, R$ 3, R$ 2, R$ 1 e R$ 0, respectivamente. Suponha que se transfira um real de D para F e de A para C. As medidas de desigualdade que respeitam o princípio das transferências vão cair. Reparem, entretanto que, depois das mudanças, teremos toda a distribuição polarizada em dois pontos, a saber: renda R$ 1 para as pessoas D, E e F e renda R$ 4 para as pessoas A, B e C. A sociedade agora está dividida em dois grupos polarizados que são internamente homogêneos. Apesar de menos desigual, a sociedade se tornou mais polarizada em extremos que tendem a antagonizar uns aos outros. Podendo levar à piora de conflitos, violência e instabilidade política entre outros males.
O exemplo artificial foi propositalmente formulado para diferenciar os conceitos de desigualdade e polarização. Em geral, os dois caminham na mesma direção. Se calculamos a polarização de Esteban e Ray (1994) e o Gini, a primeira tem queda mais expressiva que a desigualdade até 2001, mas posteriormente acontece o reverso, de forma que no período 1992 a 2009 o deslocamento observado é similar.
A nossa definição é consistente com outra medida de polarização proposta por Esteban, Gradin e Ray (2007), apelidada de EGR. A estratégia EGR nos interessa, por gerar de maneira endógena os cortes de renda da distribuição de renda observada na prática. A combinação de nossas classes econômicas D e E resulta quase perfeitamente no estrato inferior do EGR. A combinação de nossa classe econômica central está quatro pontos de porcentagem menor que o estrato intermediário gerado pela metodologia EGR.
Os cortes escolhidos são os que melhor distinguem os grupos no sentido de tornar menores possíveis as diferenças internas desses grupos de renda e em contrapartida maximizar as diferenças entre estes grupos. Calculamos os grupos de renda para o caso de três segmentos que, segundo os autores, é aquele que, para os países analisados por eles, maximiza o critério de polarização estendida proposto. Nossa estratégia aqui é gerar medidas relativas e depois manter constantes os valores inicialmente arbitrados em 2002 antes da mesma retomar a sua trajetória iniciada no pós-Plano Real. O objetivo é medir mudanças absolutas no tamanho das classes no tempo.
A distribuição de renda no Brasil é próxima daquela observada no mundo. Temos uma renda ajustada por paridade de poder de compra (PPC) similar à mundial, e o Gini interno é similar àqueles observados entre o Produto Interno Bruto (PIB) per capita entre países. Logo, conceitos extraídos diretamente delas são necessariamente similares.
A nossa classe média é mais representativa da classe média mundial do que a norte-americana. A renda média norte-americana, mesmo depois da crise, caiu para US$ 400 dia PPC por família de quatro pessoas. Logo, quase todos os países que se compararem aos padrões norte-americanos serão considerados pobres, sejam africanos ou latino-americanos. O american way of life é para poucos. O norte-americano mediano, isto é, aquele que está no meio da distribuição de renda norte-americana tem 94% da população mundial mais pobre que ele. Já o brasileiro mediano tem 62% da aldeia global abaixo dele, na China esse número cai para 43% e na Índia 18%.
A classe média tupiniquim é uma boa fotografia da classe média mundial. Não é a toa que Obama aqui falou dela. Obviamente, conceitos são arbitrários. Aí justamente reside a vantagem da estratégia EGR de fixação de classes econômicas, derivados da distribuição de renda de maneira a maximizar o poder explicativo entre classes. Por exemplo, as classes econômicas da FGV conseguem explicar a desigualdade entre grupos num dado ponto do tempo quase 20 pontos percentuais acima da distribuição em três grupos de tamanhos iguais.
* Marcelo Côrtes Neri é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da Fundação Getulio Vargas.
** Publicado originalmente no jornal Valor e retirado do site IHU On-Line.
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