quarta-feira, 20 de abril de 2011

Bullying” contra o português

Nosso idioma é vulnerável aos ataques do inglês, e ninguém está disposto a protegê-lo... até porque falar errado virou chique
LUÍS ANTÔNIO GIRON
Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
Na semana passada, minha mulher comprou um pote de geleia de mirtilo, com o seguinte selo: “Geleia de blueberry”. Num acesso de hipercorreção, risquei a palavra “blueberry” e escrevi por cima “mirtilo”, não sem antes passar um “branquinho” sobre o rótulo. “Você está louco?”, me disse Miriam ao descobrir o trote. “É assim que nascem os serial killers!”, exagerou. Respondi no meu espírito habitual: “Brincadeira sem graça. E por que não ‘assassinos seriais’?” Ela atacou: “Porque você diria que é anglicismo”. Neutralizado pela jogada dela, fiquei tentando encontrar um correspondente em português para “serial killer”, mas não consegui. Tive de me resignar à expressão americana. “Tudo bem, assassino serial, tudo em nome da língua portuguesa. Não aguento mais escreverem tudo errado!” Ela riu: “Se constasse ‘mirtilo’ em vez de ‘blueberry’ no rótulo, o produto não venderia! Sabe por quê? Porque ninguém sabe o que é mirtilo.” Pois é, ninguém leva a questão da pureza da língua a sério. Sobrei eu. Ou nem eu... 

Mas, como diriam os sambistas, ainda posso ser considerado um dos “últimos baluartes da língua portuguesa”. Pode parecer um título pretensioso, até porque não recebi de ninguém outorga ou procuração para a função. Ou ridículo, por lembrar o personagem do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915, de Lima Barreto: Policarpo é aquele coronel aposentado que infla o peito quando fala de Brasil e se orgulha de tudo o que é nativo, a ponto de propor que o tupi-guarani seja elevado a idioma oficial da república. Claro ele que dá com os burros n’água e é ridicularizado por todos, inclusive pelo narrador. Não sou xenófobo nem avesso a influências estrangeiras em qualquer que seja a cultura, a brasileira inclusive. Defendo o acesso universal à cultura e aos idiomas em um planeta cada vez menor. Costumo dizer que é sempre melhor um plus a mais do que um less de menos. Há situações, porém, que me causam tamanha irritação, que tem gente me chamando de Novo Policarpo Quaresma. Já peguei a fama na minha própria causa por causa do mirtilo, mais conhecido por aqui como blueberry. 

Nessas, quem se estrepa sou eu. O que me exaspera é a preguiça e a assumida ignorância dos usuários do português no Brasil. Chamam urubu de meu louro, e blueberry de mirtilo. As pessoas estão falando e escrevendo em um português cada vez mais estropiado. E a causa principal se encontra na tenaz e persistente contaminação do inglês. Pior, acham o máximo cometer erros simultaneamente nas duas línguas, inglês e português. Assim, tenho sido forçado a lutar pela língua, como se envolvido em uma guerra. Não fui convocado ao serviço militar do léxico, mas eis-me no campo de batalha. E aí, como diz o ditado, agora dou uma boiada para não sair mais da briga. Como se mal diz hoje, eu me voluntariei (leia-se em bom português: “ofereci-me”). Chamem-me do que quiserem. Ao ataque! 

Hoje em dia, a turma que entende das coisas adora falar que os estudantes “sofrem bullying”. Ô, palavrinha mais antipática... O tal do “bullying” está na boca do Brasil inteiro, e com pronúncia errada (as pessoas gostam de dizer “bãling”, o que as torna ainda mais ridículas). A palavra “bully” tem uma origem chã: provém de “bull”, touro, do inglês do século XVII e significava originalmente “fanfarrão”, “mata-mouros”. Só mais modernamente passou a designar perseguição e agressão, em português. O correto seria dizer: “Os estudantes sofrem perseguição nas escolas”. Não ouso afirmar que a língua portuguesa está sendo agredida. Para convencer meu interlocutor, tenho de “refrasear” (em vez de “refazer”) a afirmação para: “O português está sofrendo bullying”. Aí todos entendem, batem palmas e pedem bis – ou, como se diz em inglês, “encore”. Isso porque agora o correto já virou incerto. Eu não posso falar que temos um prazo final no fechamento desta edição. Para parecer mais sofisticado, tenho de alertar que não há prazo final, e sim um “deadline”. Sinto-me mais bacana por dizer “deadline” e “approach”, entre outras baboseiras do atual jargão do jornalismo. 

Tenho a impressão de que todo mundo, inclusive eu, esqueceu-se das palavras precisas para designar determinadas situações e objetos. O bombardeio dos termos em inglês provoca amnésia linguística e tornou legítimos barbarismos como “provocativo” em vez de “provocador” e “basicamente” em vez de “fundamentalmente”. Ainda mais risível é quando usam “eventualmente” no sentido de “finalmente” – “eventually” em inglês. Realizou? 

Nesse campo da prática de abusos, os críticos de música e cinema são tradicionalmente os piores: eles enxameiam seus textos de termos em inglês e expressões esdrúxulas. Só que agora andam a abusar do direito que se autoatribuíram (daqui a pouco vão dizer “se self atributiram” ou qualquer coisa do tipo). Ninguém mais estraga prazeres ao contar o desfecho de um filme; agora o que vale é o popular “spoiler alert”. Quando você vai contar a trama de um filme, terá de dizer assim: “Cuidado que tem spoiler!” Quando um crítico me diz isso me dá vontade de pular, pois a palavra soa como uma espécie de escaravelho ou baratagigante. 

No dia a dia, o pessoal vive se metendo em “brainstorming”, vocábulo inglês que pode ser facilmente traduzido para confabulação. Que tal confabular em vez de “fazer um brainstorm”? Acho uma troca vantajosa, até porque é menos barulhenta, “brainstorm” evoca tempestades com raios e trovões. Nada melhor que confabular, trocar ideias e histórias. Além de tudo, soa melhor. 

O português surgiu por volta do século XII (embora haja documentos de duzendos anos antes) a partir da evolução do latim vulgar na Península Ibérica, com contaminações de termos celtas, visigóticos e árabes. No começo, era chamado de “galego-português” porque a fala e a escrita apareceram no norte de Portugal, na fronteira com a Galícia. As poesias palaciana, de amigo e de escárnio e maldizer foram criadas e publicadas antes mesmo da consolidação de idiomas como espanhol, italiano, alemão e... inglês. Língua venerável, o português. Um idioma imperial do século XVI. Por isso, bonita como uma caravela engalanada, clara e solar como as igrejas góticas de Lisboa. 

Amo os meios-tons que suas vogais contêm, aparentadas francês. É um grande prazer remexer no léxico riquíssimo do idioma, brincar com a possibilidade que ele oferece de alongar as frases quase ao infinito, pois o português flui como uma plácida corrente de rio. Adoro certas palavras que não constam de línguas irmãs, como a (quase) intraduzível “saudade”, ou aquelas que existem em outras, que ganham um sabor delicado no vernáculo, como “brisa”, “maçã” e “paixão”. Os ecos artísticos são grandes. Eu sei que blueberry consta de um belo filme de Wong Kar-Wai. Trata-se de My blueberry nights, traduzido em português pelo título pedestre Beijo roubado em vez de “Minhas noites de mirtilo”. Blueberry é uma palavra que a gente amassa com dois dedos. Mirtilo, não. O vocábulo está em Camões e Petrarca, que, por sua vez, beberam na fonte de Horácio e Virgílio. Mirtilo evoca pastores do Parnaso e da Serra da Estrela. É antigo e lírico, como o português. 

Por isso, podem vir com seu temível bullying contra a língua portuguesa, que estarei a postos para toureá-lo, apagá-lo e substituí-lo pelo castiço verbo agredir. Que mais “geleias de blueberry” arremetam contra mim, que as receberei com meu poderoso corretor. Não sou besta. Sei que as línguas são dinâmicas e abertas a influências externas. São organismos vivos. Mas daí a se render totalmente à ignorância dos próprios recursos, de seu thesaurus, vai um abismo. Os tão festejados e pouco praticados “laços lusófonos” só têm ajudado a apagar a delicada língua de Camões das areias da cultura. Parece que quase ninguém está disposto a preservar o que quer que seja, quanto mais suas referências espirituais. Restam alguns poucos Quaresmas neste país. Mas se eu for o último homem em pé para proteger o idioma, pelo menos terei orgulho do que deixei de realizar, mas ao menos tentei.
(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras.)

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