domingo, 1 de setembro de 2019

O inferno de Moro, uma tragédia brasileira, Elio Gaspari, FSP

Há dois anos seria forte candidato à Presidência; hoje é uma fritura ambulante

Quando decidiu largar a toga, trocando o altar da Lava Jato pelo serpentário de Brasília, Sergio Moro fez uma escolha arriscada. Ele havia se tornado um símbolo da luta contra a corrupção, mandando para a cadeia gente convencida de que aquilo era lugar de preto e de pobre. 
Na última quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro chamou-o de "patrimônio nacional", mas Moro e as paredes do Planalto sabem que há poucas semanas ele o chamava de outra coisa. Quem já fritou um bife sabe que é preciso virar a carne, para não queimá-la. Moro é hoje uma fritura ambulante. Fritam-no (ou frita-se) no Planalto, no Congresso e no Judiciário.
Há dois anos ele seria um forte candidato na disputa pela Presidência da República. Essa viagem do paraíso ao inferno é uma tragédia brasileira que aponta para algo maior que ele. Mostra os vícios de soberba inerente à ideia do faço-porque-posso. 
Em 2004, antes de se tornar famoso, o juiz Moro escreveu um artigo sobre a Operação Mãos Limpas italiana e disse o seguinte:
"Os responsáveis pela operação Mani Pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. [...] A investigação da 'mani pulite' vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no L'Expresso, no La Repubblica e outros jornais e revistas simpatizantes. [...] Os vazamentos serviram a um propósito útil".
Moro e os procuradores da Lava Jato repetiram a mágica. Agora queixam-se de vazamentos e o ministro da Justiça lastimou que seus projetos "não têm tido a necessária exposição na imprensa".
O doutor não percebeu a mudança climática a que se submeteu trocando Curitiba por Brasília. Era um juiz que encarnava o combate à roubalheira e, junto com os procuradores, era também a melhor fonte de notícias. Afinal, era preferível ouvir Moro ou Deltan Dallagnol a dar crédito às patranhas virginais de empreiteiros ou de comissários petistas.
Moro, Dallagnol e os procuradores sempre souberam que seu serviço seria avaliado nas cortes superiores de Brasília. Confiaram numa inimputabilidade que lhes seria concedida pela opinião pública, até que vieram as revelações do Intercept Brasil e, acima de tudo, a decisão do Supremo Tribunal Federal que anulou a sentença de 11 anos de prisão imposta a Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil.
Os inimigos do procurador Dallagnol acusavam-no de manipular a fama com palestras bem remuneradas, mas ninguém seria capaz de supor que, de 20 palestras vendidas entre fevereiro de 2017 e fevereiro de 2019, 5 fossem patrocinadas pelo plano de saúde Unimed, com um ticket médio de R$ 32 mil.
Em setembro de 2018 o procurador queria ir à Bahia e perguntou a uma agenciadora: "Será que a Unimed Salvador não quer me contratar pra uma palestra na semana de 24 de setembro?". (A Lava Jato passou ao largo dos planos de saúde.)
Dallagnol fez o que achava que podia fazer. Desde o aparecimento das mensagens obtidas pelo Intercept, os procuradores da Lava Jato e Sergio Moro encastelaram-se numa defesa suicida de silêncio e negação. Danificaram a alma da Lava Jato com a soberba do encastelamento que levou as empreiteiras e os comissários do PT à ruína e à cadeia.
Para Moro, a conta do faço-porque-posso veio na semana passada, com a decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.

 
Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Marcelo Leite No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é, fsp

A pele é morena, pega cor fácil no sol. O cabelo grosso, que já foi mais preto, espeta rápido quando se corta curto. Quase sem pelos no torso, barba rala e falhada, olhos de um castanho escuro, altura mediana.
 
O biótipo de brasileiro da gema se estriba no DNA. Há 32% de conteúdo genético característico de ameríndios em seus cromossomos. Com 19% de origem africana na mistura, a ascendência europeia fica em minoria, apesar dos sobrenomes Nogueira e Leite, Camargo e Toledo.
 
Queria mesmo era chamar Aikanã, Aikewara, Akuntsu, Amanayé, Amondawa, Anacé, Anambé, Aparai, Apiaká, Apinayé, Apurinã, Aranã, Arapaso, Arapium, Arara, Araweté, Arikapu, Aruá, Ashaninka, Atikum, Asurini, Awá ou Aweti.
 
Ou então Baniwa, Barasana, Bororo. Canela, Chiquitano, Cinta-Larga. Deni, Desana, Dow.
 
Quem sabe Enawenê-Nawê. Fulni-ô. Gamela. Huni Kuin. Ikpeng. Jarawara. Kantaruré. Menky Manoki. Ñandeva. Oro Win. Palikur. Rikbaktsa. Shanenawa. Tumbalalá. Umutina. Uru-Eu-Wau-Wau. Wauja. Xokleng. Xingu. Yuhupde. Zoró.
Índios cantam e dançam no anexo II da Câmara dos Deputados, após reunião da CCJ, na qual foi votado e aprovado um projeto que permite atividades agropecuárias dentro de territórios indígenas, em Brasília (DF)
Índios cantam e dançam no anexo II da Câmara dos Deputados, após reunião da CCJ, na qual foi votado e aprovado um projeto que permite atividades agropecuárias dentro de territórios indígenas, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress

 
Uma pequena amostra da diversidade indígena que sobrevive, hoje, no Brasil. São 254 desses nomes sonoros na lista. Imagine como ela era ainda mais rica e poética antes da chegada das caravelas, do ferro e do sarampo.
 
Falam-se nas aldeias mais de 150 línguas e dialetos, 2% do total mundial, estimado em cerca de 7.000 idiomas. Antes do século 16, acredita-se, teriam sido mais de mil, no atual território nacional. Bastaram 519 anos para extinguir 850 delas.
 
O extermínio não impediu a miscigenação, ao contrário. Os portugueses se serviam das mulheres nativas ou das pobres escravas de África. Rolou muito sexo, quase sempre forçado ou imposto; terá havido também algum amor.
 
Sem nunca ter sido formalmente racista, o país continua segregado. A muito custo os negros conquistaram certo espaço na TV e nas capas de revista, quase nenhum nas baladas (exceção feita a jogadores de futebol e artistas). E os índios?
 
Seguem invisíveis. Se depender dos fazendeiros de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Acre, Pará, Roraima e Rondônia, ficarão também sem terra, ou debaixo dela. Não é uma predição, só temor: quando ocorrerão as primeiras mortes?
 
Na terça-feira (27), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) reuniu em Brasília governadores da Amazônia sob pretexto de apresentar medidas de seu governo no front de fogo e desmatamento que se espraia no Norte. Mas, seguindo exemplo do escorpião da fábula, inoculou mais veneno na região da qual só valoriza o subsolo, como as toupeiras.
 
Em lugar de tratar das queimadas, pôs-se a derramar ataques a demarcações e homologações de terras indígenas nos governos anteriores. Processos que, cabe lembrar, cumprem com grande atraso o mandamento da Constituição em seu artigo 231.
 
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, reza a Lei Maior.
 
Bolsonaro já disse que não demarcará mais um centímetro quadrado de terras indígenas, não por acaso áreas em que ocorrem os menores índices de desmatamento. Recusa-se a cumprir a Constituição. Despreza a floresta.
 
Age da mesma maneira quando trabalha ativamente para descumprir o Acordo de Paris ao incentivar o desmatamento –por exemplo, caluniando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
 
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, numa de suas frases sempre antológicas, diz que todo brasileiro é índio –exceto quem não é. Bolsonaro não é índio, é capitão. Do mato.
Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.