domingo, 30 de setembro de 2012

A Justiça de meus sonhos


ETHEVALDO SIQUEIRA - O Estado de S.Paulo
Como milhões de brasileiros, sonho com uma Justiça muito melhor para o Brasil. Mas, para que esse milagre venha a ocorrer, precisamos envolver toda a sociedade nessa luta e nesse propósito, além de muitos líderes do próprio Poder Judiciário, do Congresso e do Executivo. Aliás, sempre desejei falar a magistrados e transmitir-lhes um pouco da percepção que o cidadão comum tem da Justiça e dar-lhes algumas sugestões fundamentais.
Para minha surpresa, acabo de realizar esse desejo. Anteontem, tive a oportunidade de ouro de falar durante 45 minutos a uma plateia de mais de uma centena de juízes. Sugeri, em resumo, duas reformas fundamentais para melhorar a Justiça brasileira. Uma delas consistiria, em síntese, na simplificação das leis e na redução dos recursos puramente procrastinadores. Outra seria a modernização da estrutura do Poder Judiciário, tarefa que envolve o aprimoramento permanente do quadro de pessoal, das instalações físicas e, em especial, do uso de novas tecnologias, com os equipamentos e sistemas mais modernos de processamento e transmissão de dados.
Olhar externo. Todas as instituições deveriam abrir-se periodicamente ao diálogo com a sociedade, como faz agora o Poder Judiciário de São Paulo ao convidar pessoas de diversas áreas para falar em seus eventos. Por isso, não hesitei em aceitar o convite do desembargador Renato Nalini, corregedor-geral da Justiça de São Paulo, para expor minhas ideias no evento denominado Ética para o Juiz: Um Olhar Externo, na Escola da Magistratura de São Paulo.
É claro que essa oportunidade de ouro foi oferecida a outras pessoas, mais ilustres e capazes que este jornalista, como os intelectuais Renato Janine Ribeiro, Sérgio Rouanet, Manuel da Costa Pinto, o historiador Marco Antonio Villa, o professor Vladimir Safatle e meu colega Tonico Ferreira.
Tenho conversado muito com amigos sobre esse tema, em especial, com o engenheiro Gilberto Garbi, do qual tomei emprestadas diversas observações e alguns casos exemplares que sintetizam os maiores problemas da Justiça brasileira. Como quixotes do século 21, Garbi e eu não temos a menor inibição em levar nossas críticas e sugestões a líderes e instituições respeitáveis. Na maior parte de minha apresentação, ressaltei aos juízes o potencial extraordinário que a tecnologia e suas ferramentas digitais oferecem hoje para agilizar e racionalizar a Justiça, como já ocorre em alguns países adiantados nessa área.
Nossa percepção. O cidadão brasileiro tem fome e sede de Justiça. Está a cada dia mais indignado com o que vê à sua volta e nos noticiários. Infelizmente, tem pouca esperança de que esse quadro - que perdura há séculos - venha a ser substancialmente alterado em sua geração. Eu sou um desses cidadãos. Como milhões de brasileiros, sonho com instituições bem melhores do que as que temos, não apenas a Justiça, mas o Legislativo, o Executivo, a Universidade e, claro, a própria Imprensa.
Não poderia, assim, perder a oportunidade de transmitir minha percepção sobre os problemas da Justiça àquela plateia de juízes. Sem nenhuma ofensa ou desrespeito, procurei dizer-lhes algumas coisas que há muito estavam entaladas em minha garganta. A maior parte da sociedade, suponho, já perdeu a esperança e parece até resignada, diante das sucessivas frustrações experimentadas ao longo de décadas. Isso ocorre, em especial, com as pessoas mais simples e de menor escolaridade.
Um retrato. A Justiça brasileira é lenta e excessivamente burocratizada. Perante a lei, só o cidadão é obrigado a cumprir prazos. Será que um processo como o mensalão precisaria de sete anos para ser julgado? No combate à corrupção, muitas sentenças buscam apenas atender exclusivamente aos aspectos formais, e não à ética. É incrível, mas mesmo diante de uma tonelada de evidências, os tribunais superiores acabam absolvendo réus famosos "por falta de provas" - como no caso de um ex-presidente cassado por corrupção.
Muitas decisões da Justiça se tornam, assim, conservadoras e imobilistas diante da dinâmica do mundo moderno. A morosidade dos julgamentos e as intermináveis procrastinações e apelações chegam às vezes a dar a impressão de que a instituição está mais interessada em permitir que o criminoso fuja do alcance do braço da Lei. A maioria dos recursos parece visar, sobretudo, à proteção do criminoso, e não de suas vítimas.
As brechas da lei permitem com frequência ao assassino ou fraudador de maior poder econômico apostar com sucesso na impunidade. Uma das portas por onde escapam é a prescrição dos crimes, decorrente muitas vezes da sucessiva procrastinação.
Impunidade. A sucessão quase interminável de recursos faz com que assassinos confessos permaneçam livres, desfrutando a vida, enquanto os familiares das vítimas amargam indignação e revolta diante da impunidade. Motoristas embriagados que matam pedestres ou ciclistas, pagam com cestas básicas as vidas que ceifam.
Todos os dias, temos diante dos olhos exemplos chocantes dessa desproporção entre a brandura das penas e a gravidade dos crimes. E pior: o Estado mostra-se incapaz em executar as penas que, finalmente, são impostas pelo Judiciário.
Até quando teremos de enfrentar tudo isso?

Massacre expõe os gargalos da Justiça


AE - Agência Estado
Em 2 de outubro de 1992, quando aconteceu o massacre na Casa de Detenção do Carandiru, a morte dos 111 presos se tornou um marco no debate sobre direitos humanos. Passados 20 anos, o caso serve também para revelar os gargalos da Justiça e sua incapacidade para responder a episódios dessa relevância.
Para entender o percurso da ação, sete professores da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) se debruçaram sobre os documentos e analisaram suas idas e vindas na Justiça, a fim de compreender o motivo da demora. "Esse caso revelou que nosso sistema penal tem enorme dificuldade para lidar com casos dessa complexidade", diz a professora Maíra Rocha Machado, uma das autoras da análise.
Segundo a professora, três foram os desafios principais. O primeiro está relacionado à obtenção das provas, que acabaram sendo basicamente testemunhais - foram ouvidas 469 pessoas, sendo 111 presos e o restante, policiais militares. Os detentos mortos em pavimentos diferentes foram levados para o 2.º andar, formando uma pilha de 98 corpos, o que dificultou o trabalho da perícia.
O exame de balística, para apontar a autoria dos disparos, não foi feito. Houve indício de que 13 revólveres foram "plantados" no pavilhão. Foram esquecidos, no entanto, 13 cadáveres em celas, sentados ou encostados na parede, sem armas, com sinais de execução.
Mais duas questões jurídicas atrasaram a ação. O segundo problema decorre do fato de que o principal acusado de comandar o massacre, o coronel Ubiratan Guimarães, assumiu cargo de deputado estadual em 1997 e ganhou foro especial.
Ele foi condenado em 2001 e voltou a ser eleito deputado em 2003, sendo a apelação analisada novamente no Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo - o coronel foi assassinado em 2006, antes de cumprir pena, em um caso de crime passional. O desmembramento, porém, acaba tendo efeitos importantes no caso dos demais réus.
O terceiro problema foi a discussão sobre o conflito de competência, para decidir se o processo deveria ser julgado pela Justiça Militar ou Comum.
Burocracia. Dessa maneira, apesar da complexidade da tragédia, as investigações não retardaram o andamento do processo e foram feitas em menos de um ano. Em compensação, nos corredores da burocracia da Justiça, o processo acabou tramitando por dez anos só no TJ-SP, para que fosse confirmada a decisão de pronúncia dos acusados.
"Quando o Código de Processo Penal foi criado, nos anos 1940, nunca seus autores imaginaram que haveria um caso com tantos réus. A quantidade de réus, dezenas, é o principal desafio para levar esse caso a júri", afirma o promotor de Justiça Norberto Joia, que atuou no julgamento do coronel Ubiratan.
Apesar de o júri de 26 réus ter sido marcado para o dia 28 de janeiro do ano que vem, a defesa pretende pedir a nulidade da decisão, adiando-o mais uma vez. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

A profecia que se concretizou

CARLOS EDUARDO ENTINI - O Estado de S.Paulo
"No dia em que houver uma rebelião vai ser uma coisa tão terrível que entrará para a história do mundo." E foi. As palavras proféticas do diretor do presídio nos anos 1980, Luiz Camargo Wolfmann, o Luizão, proferidas em 1983, descreviam a situação vivida durante quase toda a existência do Carandiru. Construído para acabar com o déficit prisional da cidade, em pouco tempo sofreu do mesmo mal.
Em 1974, 18 anos depois de ser inaugurado, tinha 5.346 presos, mais do que o dobro da capacidade, 2.200. A superlotação era regra. Em 1978, a capacidade foi ampliada para 3.500. Em 1981, chegou a abrigar 7.029 presos. No mesmo ano, a Justiça decretou que a população do presídio não poderia passar de 6 mil. Em 1992, tinha mais de 7 mil.
Além do excesso de presos, o Carandiru conviveu com o pior que um sistema prisional falho produz: falta de assistência jurídica e médica, detentos com penas cumpridas, deficientes mentais, presos de alta e baixa periculosidade misturados, falta de funcionários etc. E criou outras falhas piores: violência, motins, homicídios, tráfico de drogas.
Aquela "república", com leis próprias, era administrada com doses de complacência e rigidez dos diretores, para que o barril de pólvora não explodisse. Em 1985, quase explodiu. Um protesto pela não aplicação da Lei de Execuções Penais acabou em revolta e tomou conta de todos os pavilhões. Foram 11 mortos.
A confusão não foi pior porque a polícia não entrou. "Se a PM invadisse haveria chacina", publicou o Estado. A tragédia era questão de tempo. "Não seria melhor colocar toda essa gente na parede e metralhar?", era o que sempre falava Luizão. A resposta veio em 1992 da ação policial para controlar um tumulto iniciado após a briga entre dois presos no Pavilhão 9. "Eles (PMs) não deram chance, abriam as portas e apertavam o gatilho", disse um sobrevivente.


A década includente


OSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA , DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE EXCLUSÃO SOCIAL, A NOVA DESIGUALDADE (PAULUS) - O Estado de S.Paulo
Ouço, num link de transmissão sonora e visual do site do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), a exposição com que seu presidente, Marcelo Neri, dá aos jornalistas a boa notícia de que na última década a distribuição de renda no Brasil melhorou. Sumariza ele os resultados do estudo A Década Inclusiva (2001-2011) - Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda. Diminuiu a distância entre os mais ricos e os mais pobres. Ao mesmo tempo, tenho diante de mim a primeira página de O Estado de S. Paulo de 5ª feira. Nela, uma fotografia de Tiago Queiroz retrata um miserável encolhido de frio sob um improvisado barraco na rua, feito de placas de propaganda de candidatos a vereador na cidade de São Paulo.
O nó da feliz estatística anunciada está em baixo daquele tapume. A começar pelo fato de que os dados para medição da distribuição de renda se baseiam na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Aquele barraco não é domicílio, como não o é o chão em que milhares de pessoas, em nossas cidades, dormem no pesadelo cotidiano da incerteza. Os que mais carecem não são alcançados nem pela distribuição da renda nem pelas estatísticas sobre pobreza.
Neri não pretende passar um retrato descabidamente otimista sobre a melhora relativa na repartição dos ganhos da economia. Antes, assinala que estamos chegando ao padrão de distribuição de renda que tínhamos em 1960, embora a sociedade fosse mais pobre que hoje. Poderíamos definir esse meio século como o longo tempo da modernização da pobreza no Brasil, uma pobreza, agora, de privações dramáticas. Serão necessários pelo menos 20 anos para chegarmos ao padrão de distribuição desigual da riqueza de países como os EUA. Mas ainda temos lastro para incrementar a distribuição de renda e atenuar as desigualdades que nos afligem. Na média, nossos pobres estão se tornando apenas menos pobres.
O estudo se baseia no pressuposto de que a pobreza dos 10% mais pobres é apenas uma questão de grau em relação aos 10% mais ricos. O Bolsa-Família e o programa de Benefício de Prestação Continuada, programas compensatórios do governo que incrementam a renda dos mais pobres, são decisivos para atenuar a distribuição desigual de renda. O estudo econômico não avalia, porém, nem tem por que avaliar, que esses benefícios não deslocam necessariamente o eixo social de referência dos beneficiados, especialmente os pobres do campo, cuja economia pré-moderna é predominantemente baseada na produção direta dos meios de vida.
As doações financeiras do governo, não obstante, corroem a lógica econômica dessas populações, incrementando em sua vida necessidades sociais que dependem de mais dinheiro e mais mercadorias de fora de seu sistema econômico restrito. Um processo clássico de desenraizamento de populações retardatárias da história, tão característico do Brasil e da América Latina.
É nessa perspectiva que se pode analisar uma das importantes constatações do estudo, a de que "a renda daqueles que se identificam como pretos e pardos sobe 66,3% e 85,5% respectivamente, contra 47,6% dos brancos". Uma de suas conclusões é a de que: "Mais que o país do futuro entrando no novo milênio, o Brasil, último país do mundo ocidental a abolir a escravatura, começa a se libertar da sua herança escravagista".
Ora, a distinção censitária de pretos e pardos e, aqui, a indicação da melhora diferencial que tiveram na distribuição de renda precisam ser devidamente matizadas. O censo mostra que a maior concentração dos que se identificam como pardos está no Norte do País e a maior concentração dos que se identificam como pretos está no Nordeste litorâneo, o chamado Nordeste açucareiro. Embora haja uma tendência confusa no sentido de tratar os pardos como negros que se envergonham de sua negritude, o fato é que a concentração regional nos diz que os pardos não são mulatos, são pardos mesmo, como eram classificados no período colonial os índios administrados, aqueles submetidos a cativeiro. Oriundos, pois, de uma escravidão jurídica e sociologicamente distinta da escravidão negra, formalmente libertados pelo Diretório dos Índios do Maranhão e Grão-Pará, em 1755. Diferentes do negro libertado pela Lei Áurea de 1888. Ambos os grupos mantidos à margem da liberdade jurídica que lhes fora concedida e reduzidos a formas disfarçadas de servidão.
Nesse sentido, o que aparece como melhora na distribuição de renda, em relação sobretudo às populações oriundas das duas escravidões que tivemos (e da terceira que ainda temos), é também um avanço na emancipação que as libertou pela metade. O pequeno incremento de renda que os setores mais pobres da sociedade tiveram na década permite-lhes, ainda que na crua contradição de inserção mais ampla no mercado e maior corrosão de seus costumes e de seu modo de vida, acelerarem sua travessia histórica para a sociedade moderna.